O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

23 de janeiro de 2011

A verdade de Hans Küng

O Vaticano tirou do teólogo suíço Hans Küng a licença para ensinar teologia devido às suas críticas a João Paulo II. Agora, o teólogo coloca no alvo de suas memórias um dos seus antigos companheiros da Universidade de Tübingen: Joseph Ratzinger, hoje Bento XVI.
O jornal espanhol El País, 08-03-2009, publicos alguns extratos de Verdad controvertida, segunda parte das memórias de Hans Küng, livro editado na Espanha pela Editorial Trotta. A tradução é do Cepat.
Sempre esperei que me fosse concedido viver a sucessão de João Paulo II no Pontificado. Esta esperança se cumpriu, mas num sentido totalmente contrário ao que eu e todos os que aguardávamos um Papa na linha de João XXIII e do Concílio Vaticano II teríamos desejado (...) Quase todos os meus grandes companheiros de fadigas na renovação da teologia e da Igreja desde os tempos do Concílio estão mortos ou se aposentaram, salvo um. E esse foi eleito Papa. Joseph Ratzinger é Bento XVI.
(...) Ambos somos marcados pelos movimentos juvenis. O que, para mim, evoca entranháveis lembranças de uma juventude com excursões às montanhas, gincanas, competições e uma vida livre, que incluía a prática regular da oração em comum e eucaristias preparadas especialmente para jovens: um movimento juvenil católico livre, felizmente, de ideias nazistas. A ele, pelo visto, não lhe restou outro remédio que tornar-se membro da homogênea juventude estatal, da juventude hitlerista. As terríveis experiências que vive durante os últimos meses de guerra na defesa antiaérea, no serviço social masculino, na breve mobilização militar e na permanência nos campos norte-americanos de prisioneiros de guerra correspondem com as de meus companheiros alemães de estudos nascidos em 1927-1928 no Collegium Germanicum de Roma.
O enraizamento na Igreja católica nos brinda a ambos, nestes confusos tempos de ideologias totalitárias, uma pátria espiritual, uma orientação cosmovisional e um apoio moral. Ambos somos entusiastas coroinhas. Mas para ele a Igreja in situ é representada pelo tradicional pároco do lugar e pelo arcebispo de Munique; ao passo que para mim quem a visibiliza é um assistente do movimento juvenil – nada convencional em sua conduta, forma de vestir e mentalidade, um pregador da Boa Nova que convence com a palavra e os fatos – sem cuja influência mais de uma dezena de jovens nunca teria sido sacerdote católico. Minha Igreja não é tanto uma Igreja de idosos como de jovens. Também Ratzinger se decidiu pelo sacerdócio, mas sem conhecer um assistente de jovens com essas características; só por isso, seu ideal sacerdotal é mais tradicional, estático e hierárquico que o meu. Impressionado com o cardeal vestido de púrpura, o jovem Joseph disse a si mesmo que gostaria ser “algo assim”.
(...) Quero dedicar-me à prática pastoral e, entre 1957 e 1959, passo dois anos felizes no coração da Suíça. Como vigário da igreja palatina de Lucerna, trabalho numa paróquia na qual a renovação da liturgia, da pregação, do trabalho pastoral e do ecumenismo se desenvolve a toda marcha e é vigorosamente impulsionada pela convocação do Concílio (Vaticano II). Uma experiência com as pessoas e suas necessidades, problemas e esperanças que Joseph Ratzinger, em seu ano de coadjutor em Munique durante o curso 1951-1952 e já com a mente posta naFaculdade de Freising, não vive da mesma maneira; e que, contudo, determinará decisivamente a minha teologia. Mas mal me habituei a Lucerna, recebo de Karl Rahner um convite para participar do próximo encontro do grupo de trabalho de teologia dogmática e fundamental em língua alemã, que aconteceria em Innsbruck em outubro de 1957.
E ali conheci não só Michael Schmaus, mas também o meu coetâneo Joseph Ratzinger (...) Na ocasião, ele é professor de dogmática em Freising e já tinha escrito uma resenha, inteligente, laudatória e analítica da minha tese doutoral: “... por este presente merece Hans Küng o agradecimento de quantos rezam e trabalham pela unidade dos cristãos divididos”. Em seguida, nos tornamos simpáticos (...) Também estes anos de Münster são para mim um tempo feliz. Mas não passou sequer um ano quando me oferecem a cátedra de teologia fundamental na Universidade de Tübingen (...) Abre-se assim o caminho para a publicação de meu programático livro,O Concílio e a união dos cristãos, do qual a Faculdade de Tübingen tinha assim mesmo conhecimento, mas que havia sido retido por medo fundado de uma intervenção de Roma contra a minha nomeação (...) Em 1962, fomos os dois, já como professores de teologia fundamental, ao Concílio.
(...) Dois anos mais tarde advogo com dupla força – como decano e como ocupante da outra cátedra de teologia dogmática – pelo chamamento acadêmico do professorJoseph Ratzinger para Tübingen (...) O que na época pensava de Joseph Ratzinger se desprende com clareza da proposta da Faculdade, redigida por mim, que conclui com as seguintes palavras: “A obra extraordinariamente rica deste intelectual de 38 anos; a envergadura, o rigor e a perseverança de seu fazer, que permitem pressagiar grandes sucessos futuros; a autonomia de sua linha investigadora (...) seu grande sucesso docente em Bonn e Münster, assim como suas afáveis qualidades pessoais, permitem esperar uma frutífera cooperação com os companheiros...”. Ainda hoje guardo estas palavras.
Deste modo Ratzinger recebe e aceita em 1966 o convite do Ministério da Educação e Cultura de Baden-Würtemberg. (...) Nos vemos com freqüência nas reuniões da Faculdade, acertamos o conteúdo dos exames e examinamos de maneira alternativa os alunos: tudo sem problemas. (...) Durante três anos trabalhamos juntos de maneira colegial e harmônica em Tübingen (...) Só há uma ocasião em que ele se distancia não só de mim, mas de toda a Faculdade: o corpo de ajudantes apresentou uma moção para que intercedêssemos ante o bispo de Rottenburg pelo professor de pedagogia da religião Hubertus Halbfas (...) com a finalidade de que não lhe seja retirada a licença eclesiástica de docência sem novas avaliações. Todos os professores se pronunciaram a favor dessa gestão..., todos, menos Joseph Ratzinger, que agora é decano. Me assombra a sua oposição a uma ação colegial. No entanto, nossa possível intercessão ante o bispo perde sua razão de ser, porque o sacerdote católico Hubertus Halbfas, para alívio da cúria diocesana, anuncia o seu casamento; deste modo, a interrupção de sua atividade docente se produz, conforme o estipulado pela Concordata, de modo automático, por assim dizer.
(...) Quem sabe o que teria sido de Joseph Ratzinger se não tivesse abandonadoTübingen depois de três anos cheios de sucesso. Até este ponto nossos caminhos tinham seguido um curso em grande medida paralelo: as trajetórias vitais de dois teólogos que, não obstante todas as afinidades familiares, culturais e nacionais, são muito diferentes em sua estrutura psíquica e, desde muito cedo, adotam uma posição inteiramente divergente sobre a liturgia, a teologia e a hierarquia católicas e, em especial, a revelação e o dogma. Duas pessoas que, a despeito destas diferenças ou talvez por causa delas, se respeitam e valorizam mutuamente e, evidentemente, reconhecem o outro como teólogo católico na força da fé e na intelectualidade próprias de cada um. Por conseguinte, se quisermos, dois modos, formas, estilos, sim, dois caminhos muito diferentes de ser católico. Naturalmente, naquele momento não tínhamos tudo isto tão claro como agora, ao fazer uma análise retrospectiva. Mas em modo algum teria porque ter levado a uma ruptura.
(...) Para mim, a despedida de Joseph Ratzinger de Tübingen segue sendo enigmática. Em 26 de outubro de 1969, já como professor de Regensburg, oferece um almoço aos seus ex-companheiros de Faculdade no hotel Krone de Tübingen. O ambiente é inesquecível. Também me agradece pessoalmente pela boa colaboração. Apenas muitos anos depois leio um relatório do filósofo, tradutor e senador tcheco, doutor Karel Floss. (...) No final de julho ou começo de agosto de 1969 visita em Tübingen Joseph Ratzinger; este o recebe com amabilidade, mas não demora em deixá-lo em companhia de seu ajudante Martin Trimpe, com quem Floss passa toda a tarde (...) Trimpe informa a Floss de que a colaboração entre Ratzinger e Küngacabou. Pelo bem de ambos, urge a separação, posto que não é possível seguir trabalhando com uma pessoa como Küng; do contrário, Ratzinger e seus colaboradores acabariam pervertendo-se por completo (...) À pergunta de Floss sobre qual rumo o próprio Trimpe tomaria, este responde que Ratzinger vai paraRegensburg, onde o bispo Graber lhe garantiu todas as condições para um trabalho científico tranquilo e honrado. O que significou uma segunda comoção para Floss, já que ele sabia que todas as forças conservadoras, que também na Tchecoslováquia se haviam assustado com as consequências do Concílio, rechaçando especialmente o abandono do tomismo, haviam buscado refúgio junto a Graber. Até aqui o relato deKarel Floss.
(...) Não sei se nunca tive curiosidade de saber qual poderia ser a minha “pervertedora” influência sobre os mais estreitos colaboradores de Ratzinger. E, no que diz respeito à impossibilidade de prolongar a colaboração entre Ratzinger e eu, talvez o ajudante exagerasse ou inclusive desfigurasse a pessoa de seu mestre. O certo é que Ratzingerse retirou de Tübingen, onde, do ponto de vista científico, alguém se encontra sem dúvida em vanguarda, para a teologicamente dócil Regensburg, à província do mais reacionário dos bispos alemães da época, defensor do marianismo e do curialismo.
Mas, só tive notícia desta conversa anos depois. E a gente já tem que se colocar a pergunta formulada por outra testemunha da época, o conselheiro acadêmico doInstituto de Pesquisas Ecumênicas, Hermann Häring, que sustenta que me equivoquei enormemente em relação a Ratzinger. Não é apenas que este apenas se apercebesse de que na questão das revoltas estudantis, eu, no fundo, estava do seu lado. Segundo Häring, Ratzinger começa a se diferenciar claramente de mim sobretudo na interpretação do Vaticano II. O certo é que em 1968 assina aDeclaração pela liberdade da Teologia, redigida essencialmente por mim, à qual se somaram finalmente 1.322 teólogos e teólogas do mundo inteiro. E também apóia em 1969 a declaração de Tübingen sobre a escolha dos bispos e a limitação temporal do cargo, esta não redigida por mim, mas pelo canonista Naumann e outros companheiros. Mas assim que abandona Tübingen, Ratzinger retira a sua assinatura desta segunda declaração; segundo aduz, a havia assinada sob pressão dos companheiros. Já se via como futuro bispo?
(...) Para ele a Igreja antiga ou a Igreja dos Santos Padres é a medida de todas as coisas. Assim como ele a entende: Não vê Jesus de Nazaré como o viram os seus discípulos e as primeiras comunidades cristãs, mas como foi definido dogmaticamente pelos Concílios helenísticos dos séculos IV e V, que, de fato, mais que unir, dividiram o cristianismo. Interessa-lhe quase nada o Jesus da história e o pouco dogmático judeu-cristianismo dos começos; daí que não mostre muita compreensão pelo Islã. (...) Não é a Igreja do Novo Testamento que lhe interessa, mas a Igreja dos Padres (naturalmente, sem mães).
(...) Joseph Ratzinger não mudou. Não se faz nenhuma injustiça a ele quando se afirma: simplesmente ficou parado no tempo! Ele quis ficar ancorado: na Igreja e na teologia latinas antigas e medievais, assim como ele as conheceu e aprendeu a amar em seus estudos através de Agostinho e Boaventura, assim como em sua ascensão pela escala do poder hierárquico. O teólogo Ratzinger contribuiu pouco para a evolução da teologia, nem sequer em seu livro sobre Jesus. Essa também não era a sua pretensão. Nessa mesma medida tem, evidentemente, razão quando afirma que não é ele quem mudou, mas eu. Com efeito, eu não queria ficar parado no tempo, mas avançar (...) Assim, pois, em princípio (eu) mudo, de maneira simultânea com o avanço da pesquisa teológica, como resposta ao impulso que significa o ConcílioVaticano II (...) mas também incitado uma e outra vez pelas experiências contrárias que a comunidade eclesial vive por causa da Cúria romana pós-conciliar ou, melhor ainda, pré-conciliar.
(...) Em 1980 estou com 52 anos de idade; Joseph Ratzinger (...) tem 53. Apenas um ano depois será nomeado, em Roma, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Mas, curiosamente, interrompe suas memórias (escritas em 1998) no ano de 1977, exatamente quando entra na hierarquia, com as seguintes palavras, difíceis de entender: “O que mais poderia dizer e que coisas mais concretas poderia contar sobre os meus anos de bispo?” Ah, tudo o que poderia contar! Mas, o que o impede? É desconcertante que Ratzinger exclua de suas memórias exatamente os anos em que foi o segundo homem mais poderoso da Igreja católica, anos em que dezenas de teólogos e inúmeros católicos e católicas de base sofreram sob sua férula. Talvez se entenderiam melhor algumas coisas... Se desejaria ler mais e coisas mais concretas exatamente sobre os seus 24 anos no Palazzo del Sant’Uffizio.

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