O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

15 de agosto de 2014

O que é uma vida com êxito?


O famoso filósofo, teólogo ortodoxo e terapeuta Jean-Yves Leloup aponta
em palestra transcrita por Cláudio Azevedo o caminho da realização integral

Quem é que tem êxito? O que é a Vida? Jean-Yves diz que a Vida é algo que nos perpassa e que o êxito da vida se dá através de nós! Ele desenha um quadrado na tela, para representar essa vida em nós, baseado em Jung:

Razão Intuição
Sensação Emoção

1
Terra
Físico

Material

Sensação

Lucas

2
Água

Emocional

Afetivo

Emoção

Marcos

3
Fogo

Mental

Conhecimento

Razão

Mateus

4
Ar

Espiritual

Liberdade

Intuição

João



A palavra hebraica Shalom, traduzida como paz, na verdade tem o sentido de ‘ser-estar inteiro’. Só estaremos em paz se estivermos inteiros, e estar inteiro inclui todas essas quatro dimensões da existência: ter êxito nessas quatro dimensões. Mas o êxito inclui a aceitação de nossos fracassos. Aceitar nossos fracassos é reconhecer nossos limites!!

Mas estamos fragmentados! Para alguns o que interessa é o sentir, o tocar, o visualizar; para outros, o êxito afetivo-familiar ou sócio-profissional; para outros o êxito científico-intelectual; e para outros, o caminho da transcendência. Qual a nossa função dominante? Jean-Yves contrapõe ‘1’ e ‘4’ (sensação – intuição), o aterrado e o visionário, e ‘2’ e ‘3’ (emoção – razão), o compassivo e o inteligente, como caminhos complementares e não contrários.

Ele pergunta: como é o meu processo de tomada de decisões? Qual a minha função dominante? Quais as minhas funções esquecidas? Eu decido usando a razão ou num rompante de emoção? Eu decido esperando uma mensagem divina (ou angelical) ou usando meus instintos (a sabedoria que vem de minhas entranhas, de meu ventre)?

– Não existe outra realidade, a não ser a Realidade!

– Não existe outro infinito, a não ser o Infinito!

O que fez com que algumas de minhas funções adormecessem? O medo! Assim, ele pergunta: o que me dá medo?

• Recalcamos nossas sensações devido a experiências dolorosas vividas na infância, experiências registradas em meu corpo, traumas.

• Reprimimos nossos sentimentos, pois, no passado, nos deixamos levar por eles e acabamos sofrendo.

• Recalcamos e reprimimos nossa razão por traumas sofridos com as palavras e pensamentos dos outros. Passamos a desconfiar das palavras e pensamentos e não nos relacionamos bem com eles.

• Apesar disso, desconfiamos de tudo o que não pode ser explicado pela razão, dizendo simplesmente que não existe!

“Pouca ciência nos separa de Deus, mas muita ciência nos aproxima de Deus!”

Albert Einstein

Como viver essa síntese e integrar todos esses aspectos em nós; como viver essas inteligências: corporal, afetiva, racional e intuitiva? Como viver um momento de êxito, de inteireza, de Shalom? Para isso devemos estar atentos e perceber que funções nos dão medo e habitam em nós como sombras, esquecidas ou adormecidas. Jean-Yves pergunta: Como fazer minha sombra dançar com minha luz?

O lugar do êxito é no centro! Viver tudo a partir do Centro, nosso ‘Ponto C’. O que me falta para eu ser inteiro? Se há violência, é porque existe alguma necessidade não satisfeita! E temos quatro grandes delas: necessidades físicas, necessidade de reconhecimento, necessidade de conhecimento e necessidade de liberdade.

1. Necessidade de Segurança: como falar de êxito e de espiritualidade (ou de paz) a alguém que não tem o que comer, que não tem onde dormir ou que está doente?
2. Necessidade de Reconhecimento: como falar de êxito e de espiritualidade (ou de paz) para alguém que não é reconhecido como ser humano, na sua identidade humana? Temos necessidade de ser amados (da forma como somos) e de amar!
3. Necessidade de Conhecimento: como falar de êxito e de espiritualidade (ou de paz) se não sei qual o sentido de minha própria existência? Se não sei porque sofro?
4. Necessidade de Liberdade: como falar de êxito e de espiritualidade (ou de paz) se estou preso em meu próprio meio? Se não consigo sair de onde estou, se me sinto sufocado e sem ar? Com ter amigos e relacionamentos, mas me sentir livre?
– Sacramento é um gesto acompanhado de uma palavra...
Afinal, o que é uma refeição bem sucedida?? Preparar uma mesa pode ser como pintar um quadro: uma obra de arte! É necessário que tenha comida! É necessário que o alimento tenha qualidade! Mas também é necessário que tenha bons sentimentos à nossa volta, que boas palavras circulem no ambiente, nos fazendo aprender, e que nos sintamos livres para sair da mesa! Compartilhar o pão, o vinho, a amizade e as palavras, sem sermos obrigados a permanecer na mesa! Sem sermos sufocados!

– Como você gosta da sopa? – Quente e servida com amizade!

E o que é um casal bem sucedido? É necessário que a dimensão sexual exista! Em sua fecundidade, em seu prazer, em sua realização... é necessária muita paciência e muito respeito pelas memórias no corpo do outro: sua educação familiar, social e religiosa. É importante, também, a dimensão afetiva: a sexualidade com o coração presente! Com o coração presente nas mãos, o coração presente nos lábios. É importante que pelos lábios saiam palavras; saber o que o outro deseja, dizer-lhe: eu te amo. E também é importante a dimensão espiritual. Respeitar o caminho espiritual do outro:

– Eu respeito o que você pensa (e crê) e você respeita o que eu penso (e creio)!

Mas isso nem sempre é tão fácil! Não deixamos o outro livre em suas crenças! Temos que aprender a conhecer os nossos limites, e esses limites não incluem o outro! O que acontece é que amamos no outro uma imagem que temos de nós mesmos e quando o outro passa a ser ele mesmo nos decepcionamos. Queremos que o outro seja o que achamos que somos, quando deveríamos respeitar a dimensão corporal, afetiva, intelectual e espiritual do outro (e de nós mesmos). Orar juntos é tocar o Terceiro que existe entre nós dois...

Quando juntamos as mãos para orar, entre uma mão e a outra existe o espaço e sem o espaço não há uma mão separada da outra. O espaço entre as mãos é o que une e o que separa as mãos! O Terceiro é o Espaço entre os dois! O Terceiro é o Amor entre os dois! É Aquilo que nos une e nos diferencia, pois o outro não deve ser reduzido ao que eu sou nem eu ser reduzido ao que o outro é: “sem confusão (união) e sem separação!!

O vinho, em uma vida em comum, é despertar o deslumbramento e o embriagamento de estarmos juntos. E quando falta o vinho, quem deve ser chamado para nossas vidas? Cristo é quem transforma a água em vinho...

Pois tudo é solúvel no tempo! Do ponto de vista da pulsão (do instinto físico), fidelidade não existe! Do ponto de vista afetivo, fidelidade também não existe, pois podemos nos apaixonar por outro alguém. O mesmo ocorre do ponto de vista de uma escolha sensata e pensada. Quando as sensações e a paixão já não nos une, um projeto em comum, idéias e valores em comum, ou até pensamentos em comum, podem nos manter fiéis. Mas até isso é solúvel no tempo, pois nossos projetos, idéias, valores e pensamentos também mudam. E do ponto de vista religioso? Nossa religião muda, descobrimos outras práticas e religiões.

E o que é indissolúvel entre duas pessoas? Somente há união indissolúvel quando reconhecemos o Terceiro entre nós. Entre o amante e o amado existe o Amor. Somente o Amor, que está entre nós e nos perpassa, pode nos unir indissoluvelmente. Por isso devemos reconhecer essa Presença. Então, podemos não mais conviver juntos, mas uma ligação indelével persistirá! É o mesmo que acontece entre amigos que não mais convivem, mas que quando se encontram parece que nunca estiveram separados. É o que nos une quando as ligações sexual, afetiva, ideológica (profissional) ou religiosa se dissolvem no tempo.

E o que é uma empresa bem sucedida? Da mesma forma, as mesmas quatro dimensões têm que ser contempladas para o êxito. Uma empresa, no plano físico, tem que ganhar dinheiro, até por uma questão de justiça! Mas o que acontece é que a distribuição desse dinheiro se faz de uma forma não justa. Não há uma distribuição justa do lucro. Tem que haver respeito pelo trabalho de cada um, sem hierarquias de poder, mas hierarquias de competências. Reconhecer a nossa competência e a competência do outro.

Na tradição hebraica, numa cerimônia de casamento os noivos se coroam mutuamente. Isso é respeitar e reconhecer o outro e conduzir o outro à sua própria realização. Esse é o verdadeiro sentido do encontro com o outro, seja a dois, seja no campo das idéias, seja no campo profissional! Por isso a importância da dimensão afetiva, pois tenho que ir para a empresa em que trabalho por prazer. Além disso, temos que enriquecer culturalmente. Uma empresa tem que facilitar nosso aprendizado e nos manter crescendo intelectualmente.

Uma empresa com êxito é aquela que nos realiza internamente, que nos traz mais consciência e nos tira de nossos automatismos. Uma empresa que nos ajuda a, cada vez mais, sermos nós mesmos, a crescer em maturidade, a respeitar a liberdade dos outros funcionários é uma empresa que respeita a nossa própria liberdade.

Não podemos dar a nossa liberdade a ninguém, a nenhum patrão, a
nenhuma doutrina, pois Deus é a liberdade que existe em nós!

E o que é uma Igreja (um partido, ou uma Instituição) bem sucedida? Também temos que integrar os quatro níveis! Será que ela me torna mais vivo? Alimenta minhas fomes? Ou ela despreza o meu corpo? Será que ela me torna mais amoroso? Será que ela alimenta a minha confiança? Ou permanecemos desconfiando de todos os que não tem a nossa visão?

Será que ela me torna mais inteligente? Ou apenas me torna um repetidor de palavras e dogmas? Será que ela me ensina a pensar por mim mesmo? Ou minha própria reflexão não é respeitada?

E, por fim, será que ela me torna mais livre? Ou ela me torna mais culpado? Será que eu posso ir e vir? Será que ela me torna cada vez mais autônomo para viver em comunhão ou me distanciar quando sentir que devo, de acordo com os momentos de minha vida? Muitas vezes temos que usar um ‘barco’ (alguma doutrina) para nos ajudar a fazer alguma travessia em minha vida, mas depois que eu atravesso não há mais sentido em permanecer segurando o barco, pois isso vai retardar o meu prosseguir...

Liberdade é permitir que a vida se dê a cada momento, devemos permitir que a liberdade se expresse amorosamente... Existem coisas que não devem ser ditas, mas apenas cantadas, ou silenciadas... A beleza é o esplendor da Verdade (Platão), a beleza cura

E os nossos fracassos, o que fazemos com os nossos fracassos? Será que conseguimos ter êxito na doença, êxito na morte, êxito no divórcio, na falência ou no fracasso existencial? Será que nos deixamos expressar tanto a nossa grandeza quanto o nosso drama? Os nossos êxitos são apenas imagens que temos de nós mesmos. Quando o tempo passa, a fonte de nossos êxitos pode ser a fonte de nossa maior dor, quando não podemos mais sustentar o que fomos e conseguimos.

Uma vida bem sucedida é uma vida que responde ao nosso desejo. Mas não sabemos o que desejamos, no mais profundo de nosso ser. Qual o nosso desejo essencial? Para que estamos aqui? Qual o desejo da vida para conosco? O que podemos realizar que ninguém pode realizar? Os nossos fracassos são acontecimentos que nos trazem de volta ao essencial, pois num piscar de olhos podemos nos encontrar com a nossa fragilidade essencial.

Uma doença com êxito é quando fazemos dela uma ocasião de maturidade, um processo de Individuação acelerado. É quando somos o Sujeito, e não o objeto dos sintomas. É quando somos maiores que a doença. Sermos maiores que a doença é não nos identificarmos com ela. Tenho câncer, mas não sou o câncer.

O mais precioso no ser humano é sua maturidade, sua aceitação!

O fracasso nos traz à noção de Kairoz. Kairóz é uma ocasião de consciência, uma ocasião de crescimento, de despertar para algo mais elevado. Aliviar nossas dores sem perder a consciência... E o que é uma morte com êxito? Estamos preparados para morrer? A morte é sempre uma surpresa, algo inesperado, mas podemos fazer dela uma oferenda e um dom! O Livro Tibetano dos Mortos diz: que eu possa fazer desses derradeiros momentos, uma ocasião de despertar, para mim e para todos os seres!

Não é a morte que nos tira a vida, pois morrer é apenas perder nossos limites, perder o medo de morrer. A vida em mim prossegue sem o corpo. Não sou a vida que tenho, mas a vida que eu sou. Quando morro, eu vou para o local onde eu sou, onde estou desde sempre... Na realidade, a morte me aproxima da Vida que Sou. Aceitando minha vida mortal eu desperto para a minha dimensão eterna!!

Mas será que me lembrarei disso no momento de minha morte, quando passo para outro nível de realidade? A morte é a morte de uma realidade relativa!! Aceito que meu corpo e meu psiquismo nem sempre estão centrados no Ser que é, onde a morte sublime não aceita o medo. A doçura e a serenidade do intolerável demonstram que algo maior habita em nós mesmos e é maior que a nossa própria morte!! O desafio é nos abrir àquilo que não pode ser destruído...

Já estamos no Infinito, nosso inspirar vem do Infinito e retorna a Ele. Se soubéssemos o que existe no final de nosso expirar e antes de um inspirar, teríamos menos medo da morte. Amar é se dar; se perder... Não ter medo de morrer é não ter medo de viver nem de amar!! Um sofrimento, um fracasso ou uma doença com êxito é uma passagem para um novo nível de ser: uma Iniciação! A vida é um grande mestre, às vezes rude, às vezes doce! Um mestre zen usa um golpe de bastão para nos despertar. A vida não quer nos destruir, mas nos despertar para o melhor de nós mesmos.

Não devemos perdoar rápido demais, pois às vezes o que sofremos é real e devemos expressar isso, falar ao outro, reclamar justiça! Não é o ego que perdoa, mas o Self!! Às vezes é injusto demais, é nojento demais... e é por isso que chamamos Aquele que é maior que nós mesmos, que é capaz de amar o que o ‘eu’ não pode! Não somos obrigados a nos abrir a essa dimensão, mas nada pode nos impedir isso!!

O fracasso de um amor não é o fracasso do Amor!! Não devemos acrescentar culpa a um fracasso!

A cruz é o fracasso de um amor não aceito e a ressurreição nos mostra que o amor é maior que o fracasso! O sol brilha sobre o ouro e sobre o lixo, brilha até quando a janela está fechada! Aquele que compreende tudo pode perdoar tudo. Pode perdoar alguém e não fechar a pessoa nas conseqüências negativas de seus atos ou de meus atos. O perdão liberta o outro de seu karma: você me roubou, mas não é apenas um ladrão, me traiu, mas não é apenas um traidor...

A única falta que Deus não perdoa é aquela que não conseguimos perdoar

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