O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

26 de setembro de 2018

Jean-Yves Leloup: "É um longo caminho aprender a doçura"


Jean Yves, tem sido nos ultimos quase 20 anos, um mestre, um mentor, seja por seus inúmeros livros, ou nos retiros de silencio que promove, tem me feito desenvolver uma mística e uma espiritualidade incômoda, que  me desinstala e me coloca em marcha.


Entrevista realizado por
 Tatiana Mendonça 
(http://atarde.uol.com.br/muito/noticias/1996608-jeanyves-leloup-e-um-longo-caminho-aprender-a-docura)



Antes Deus era uma ideia, depois passou a ser uma imagem, agora é um silêncio. Talvez por isso o francês Jean-Yves Leloup, 68, use tantas metáforas para falar dele, num esforço de traduzir o intraduzível. A relação cambiante entre os dois começou num hospital em Istambul. Leloup, até então ateu, estava entre a vida e a morte, vítima de uma grave intoxicação alimentar, quando reparou, num relance, que a consciência podia habitar fora do corpo. Desperto, saiu em busca de entender este além. Tornou-se doutor nas áreas de psicologia, filosofia e teologia e também padre da Igreja Ortodoxa. Mas ele não acredita que o cristianismo seja melhor que qualquer outra religião. “Todos os caminhos são bons. A condição é que a gente não pare no meio do caminho”, ri.  Presidente da Universidade Holística Internacional de Paris e autor de mais de 50 livros, Leloup vem frequentemente ao Brasil participar de palestras e seminários. Este mês, ele esteve em Salvador na abertura do 13º Simpósio Internacional sobre Consciência e Autoconhecimento: Nada Ocorre, promovido pela Fundação Ocidemnte – Organização Científica de Estudos Materiais, Naturais e Espirituais e pelo Instituto Superior de Educação Ocidemnte (Iseo). Antes do evento, Leloup conversou com a Muito – com tradução de Lucinei Caroso – sobre meditação, espiritualidade, sexo e política. Em tempos tumultuados de polarização, ele defende que é preciso investigar a real intenção dos políticos. Saber se são cordeiros ou dragões.
O senhor teve uma experiência de quase-morte em Istambul e depois enveredou por um caminho espiritual. Essa trajetória se repete com outras pessoas, talvez de modo não tão extremo... Quando estão num momento muito difícil da vida, vivendo uma situação-limite, é que passam a buscar algo ‘maior’ que a vida cotidiana. Por que isso acontece, na opinião do senhor?
Não é necessário beber o vinagre para saber que o vinho é bom. Não é necessário morrer para saber que a vida é boa. Alguém como eu precisava de uma situação extrema. Deus fala para cada um a linguagem que seja capaz de entender. Para alguns, é a linguagem da beleza e da natureza, para outros, é através de um acidente. Quando temos o ouvido entupido, é necessário falar mais alto. Quando temos o coração fechado, Deus precisa falar uma linguagem mais dura. Mas é sempre com o objetivo de nos despertar.
Ainda sobre este tema, fiquei impressionada com uma frase que o senhor escreveu: “Minha vida está em ruínas, não há obstáculo à visão daquilo que é”. E no entanto a gente vai num sentido contrário, lutando com todos os meios para que essa ruína nunca chegue, tentando a todo custo fugir da dor e do sofrimento...
Quanto mais nós procuramos o prazer, mais ele nos foge. Quanto mais a gente foge da dor, mais ela consegue nos alcançar. A morte faz parte da vida. Tentar negar a morte não impede que ela chegue. Isso faz com que a morte seja dolorosa. Eu amo muito o livro do Apocalipse, porque ele mostra que através da desintegração, seja no nível econômico, social ou cósmico, a vida se revela. O Apocalipse não é um livro dedicado às catástrofes, mas às revelações através das catástrofes. A grande questão é o que nós fazemos dos nossos fracassos. No cristianismo, acho muito interessante a imagem da cruz ser o caminho da ressurreição. A cruz não é o fim do caminho. A destruição não é o fim do caminho. O objetivo é a ressurreição. Mas quando nós estamos no sofrimento e na dor, a gente não sabe disso ainda. É necessário atravessar o caminho. Jesus não explica o sofrimento como um filósofo. Como uma criança, ele recebe, vive nele o sofrimento. Ele o atravessa, sem concessões. Não existe prazer em sofrer. É necessário atravessar o sofrimento.
O senhor é vinculado à Igreja Ortodoxa. Acredita que para desenvolver a espiritualidade é preciso estar conectado a uma religião, qualquer que seja ela, ou pelo menos à ideia de Deus, de uma força maior na qual se possa confiar?
Cada religião é como um poço. Podemos ficar na superfície e fazer uma publicidade para dizer que a nossa água é a melhor, mas o importante é ter sede. E beber na fonte. Não importa qual seja o poço que você vá beber. Existe um momento onde a forma é importante, mas são formas exteriores. Mas no fundo do fundo tem a fonte. E nesse caso, quando nós estamos no fundo, nós estamos além da forma, e fora inclusive do próprio poço, para além da religião. Mas cada um deve procurar o seu poço para ir na direção da fonte.
Mas o senhor acredita que esse poço precise ser religioso, necessariamente? Um ateu pode desenvolver sua espiritualidade? De que modo?
Sim, o importante é cavar (risos). No Evangelho de João, ele diz que a luz habita todos os homens vindos ao mundo. E todos os homens que procuram a luz, que procuram a fonte da vida, podem encontrá-la. O importante não é a forma do poço, mas a sede daquele que cava, que se aproxima da fonte. 

em salvador com crianças que meditam na escola
Para o senhor, a meditação é uma forma de reconectar-se com o divino. E muitas pessoas reclamam que é difícil meditar, apesar da popularização desta prática nos últimos anos. Estão lá sentadas brigando com seus pensamentos... Entre tantas técnicas, qual é a que o senhor prefere?
Meditar é estar consciente, estar atento, estar presente, quer estejamos em pé, sentados ou deitados. O que pode nos colocar na direção do interior é a atenção à respiração. Com a respiração, nós podemos nos aproximar do mistério da vida. Nossa vida se mantém através deste sopro. Este sopro é o fio que nos interliga à fonte. O sopro é uma maneira muito simples de estar atento, de estar presente. Eu gosto também muito de meditar estando na natureza, meditar como uma montanha, com todo meu peso, meditar como uma árvore, interligada ao céu e à terra. Meditar como um oceano... A meditação não é nem laica nem religiosa. Ela é natural. E é necessário reencontrar a oração primeira, a meditação original, a meditação de todos os elementos. É necessário aprender a orar como o pássaro que canta. Respirar com consciência. É importante não tentar controlar os pensamentos, mas abandonar-se.
O senhor é um ativista da paz, um dos criadores da Unipaz. O Brasil regista um dos maiores índices de violência do mundo. Foram 63 mil assassinatos no ano passado. Como promover de modo prático uma cultura da paz num cenário como este que vivemos?
É necessário não ter medo. O medo cria a violência. A violência é uma energia. A questão é como transformar essa energia de uma maneira criadora. Com a mesma força que nós carregamos as malas de alguém, nós podemos golpeá-lo na cabeça. Acredito que o esporte possa desempenhar um papel importante nessa transformação, como prática de energia. Mas isso não é o suficiente. É necessário introduzir a consciência, para que a gente possa saber o que fazer com a nossa energia, descobrir que existe mais prazer em construir do que em demolir. Mas a situação do Brasil é, de fato, um grande problema. É preciso se debruçar nas causas desta violência, nas suas origens, na desigualdade econômica, social que existe no país, mas também nas causas psicológicas e interiores. É preciso transformar a violência que está em nós. Antes de fazer grandes discursos contra a violência, é necessário aprender a transformá-la em si mesmo. Muitas vezes, são os nossos pensamentos que são violentos, nossos julgamentos. E é um longo caminho aprender a doçura. Jesus disse: ‘Aprendam de mim porque sou doce e humilde de coração’. E é o único momento que ele diz ‘aprendam de mim’. Como se fosse a coisa mais importante... E também é a coisa mais difícil. É necessário ser muito forte para ser doce. É necessário muita energia e muito autocontrole.
"
É necessário ser muito forte para ser doce. É necessário muita energia e muito autocontrole.
Jean-yves Leloup
Nós estamos às vésperas das eleições, e o país vive uma polarização exacerbada. É como se as pessoas fossem votar contra algo e não a favor de algo. Como podemos alimentar a serenidade nestes momentos de conflitos ideológicos?
Lembro das crianças com quem estive meditando na escola Ananda. No momento da meditação, se nós olhássemos de fora, havia crianças de diferentes cores. Quando olhamos para dentro, a consciência não tem cor, e nem tampouco tamanho. Não existe grande ou pequeno. Quando a gente olha para fora, existem diferentes partidos políticos, como existem diferentes religiões. Quando a gente olha para dentro, existem apenas seres humanos, procurando a justiça e a paz. E se os homens políticos meditassem juntos e descobrissem essa consciência interior? (Risos). Talvez nós pudéssemos ir na direção da justiça e da paz. O problema é a vontade de poder, de dominar. A vontade de poder te leva à vontade de apropriação, e a vontade de apropriação te leva à guerra, à fome. Dessa maneira, a gente encontra os quatro cavaleiros do Apocalipse. O cavaleiro branco representa a perversão da inteligência, que procura a dominação do outro. O cavaleiro vermelho é a guerra, a apropriação da terra, a possessão, que leva ao cavaleiro negro. O cavaleiro negro é a consumação, que leva na direção do cavaleiro verde, que é a cor da morte. É uma visão simbólica, mas é importante poder adaptá-la ao momento da atualidade. Esses quatro cavaleiros estão a serviço do dragão, e o dragão é o ego, que quer dominar, que quer devorar... A única força que pode vencer o dragão é a força do cordeiro, que simboliza a força invulnerável do amor. Somente o amor é mais forte do que a morte. Mas não sei como poderia traduzir isso em termos políticos... O importante é prestar atenção na intenção dos políticos. Se é o dragão ou o cordeiro que habita dentro deles.
O senhor já falou, em outras oportunidades, que a paz, na verdade, é a “grande paciência”. Vivemos hoje com as redes sociais uma era de imediatismos. Como conciliar tantas demandas com o silêncio interior?
A importância é estar livre. Livre com relação a qualquer tipo de tecnologia. E o momento de silêncio e de retraimento nos conduz à nossa liberdade. Nós não somos escravos das nossas máquinas. Mas existe um perigo, realmente.
O senhor já declarou que o sexo é um ritual divino, “fundamental para reconquistar a inteireza de corpo, mente e coração”. E no catolicismo ele permanece como um tabu. Por que isso acontece, na sua opinião?
Na origem, os rabinos perguntavam por que o homem não tinha sido criado redondo. A resposta era: para que não seja feliz sozinho. Para que não seja inteiro sozinho. Para que ele se torne inteiro com outra pessoa. Porque é na relação que está a imagem de Deus. Não é nem o homem, nem a mulher, mas é a relação entre eles. A sexualidade é o lugar do outro em si. E muitas vezes, é um lugar doloroso. Muitas vezes é difícil achar um local para o outro em si mesmo, aceitar não ser autossuficiente. O ser humano se completa através da relação. É por isso que a sexualidade é da ordem do sagrado. É por isso que essa parte do nosso corpo chama-se sacro. É nessa região que a vida é criada, que nós nascemos à imagem do Criador. E é por essa razão que é uma pena que essa dimensão não seja vivida de uma maneira espiritual e sagrada. Porque, de novo, é a consumação. A gente pode fazer do outro um objeto de consumo. E, dessa maneira, a gente passa ao largo da relação, ao largo da dimensão divina, do amor que transforma a sexualidade. Na tradição ortodoxa do primeiro milenário, é demandada à sexualidade essa transfiguração. É mais difícil transfigurar do que renunciar. Transfigurar quer dizer assumir, introduzindo a consciência e o amor em todos os nossos atos e, particularmente, nesse ato. Para algumas pessoas, pode parecer difícil. Preferem renunciar ou consumir, mas não conseguem transfigurar. Isso é um problema no cristianismo. A sexualidade não foi assumida e transfigurada. Ela se torna, dessa maneira, um assunto de idolatria ou desprezo. E esse assunto não deve ser tratado nem com idolatria, nem com desprezo, mas com respeito. O respeito é um belo nome do amor. Respeitar o próprio corpo e respeitar o corpo do outro. Nesse momento, se torna interessante.
"
O respeito é um belo nome do amor. Respeitar o próprio corpo e respeitar o corpo do outro.
Jean-yves Leloup
O senhor costuma visitar o Brasil para seminários e outros eventos. Já esteve em algum terreiro de candomblé? O que o senhor pensa sobre tradições politeístas?
Sim. Acho que é uma bela maneira de entrar em contato com as energias da natureza, que são personalizadas ali. De novo, é a mesma coisa. Não se trata de ideolatria. Para alguns, é um caminho, e um caminho muito sensível. Todos os caminhos são bons. A condição é que a gente não pare no meio do caminho (risos). Todos os poços são bons, se a gente não ficar na metade do poço. É preciso descer até a fonte.
O senhor cunhou há alguns anos o termo normose. Acredita que hoje estamos sofrendo mais ou menos desse mal?
A normose é querer ser como todo mundo. Com a incitação da mídia, todo mundo procura se parecer. Muitas vezes, no nível do pensamento, mas também na maneira de se vestir. Para muitos, é difícil aceitar as suas diferenças. No entanto, cada um de nós é único e diferente. Quando visitei a Ananda, eu dizia às crianças: a rã e os macacos são iguais, são animais, mas se a rã quiser se tornar tão grande quanto o macaco, ela vai explodir e não será nem uma rã, nem um macaco. É preciso aceitar a si próprio, aceitar que nós somos iguais uns aos outros, e ao mesmo tempo diferentes. Um elefante não é um gato. Não se deve procurar comparações, e sim ser você mesmo. O fato de sermos diferente nos faz ter medo de sermos rejeitados. É um sentimento muito forte o medo do ostracismo, medo de ser rejeitado pela família, pelos amigos, pelo partido, pela religião. É um longo caminho tornar-se livre.
Sua autobiografia, O Absurdo e a Graça, foi lançada em 1990 na França, quando o senhor estava com 40 anos. O senhor já disse que mudamos nossa forma de entender o que é divino em momentos diferentes da vida. De que maneira percebia Deus antes e como o percebe agora?
Antes, eu apreendia Deus de uma maneira muito mental, como sendo a causa primeira, como sendo uma abstração. Hoje em dia, eu tenho menos ideias ou imagens sobre Deus. É como Jó. Em determinado momento, Jó perde tudo: sua saúde, sua família, sua riqueza. E ele perde principalmente o bom Deus, porque ele acreditava que Deus era bom e justo. Mas apesar de tudo que acontece com ele, algo injusto e inaceitável, o sofrimento do inocente, ali ele descobre que talvez Deus não seja a imagem que ele tinha de Deus. Ele perde os conceitos, as representações que tinha de Deus, mas não a fé. Ele descobre que Deus é mais do que Deus. Está além do que nós chamamos do bem e do mal, além dos contrários. E para isso não existe um nome. Porque nosso cérebro funciona sempre em binários, positivo e negativo. E nesse momento, Jó entra no silêncio. E Deus existe nesse silêncio. Hoje em dia, para mim, Deus está no silêncio, além de todas as qualidades ou representações que a gente possa dar. É apenas o silêncio que pode conhecer o silêncio. Somente o silêncio que pode falar com o silêncio. E agora eu me calo.