O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

18 de fevereiro de 2011

Matthew Fox - ''A bênção original''

''A bênção original''. Um livro polêmico. Entrevista com Matthew Fox
"Não um pecado original”, não uma humanidade caída, ferida e depois redimida por Jesus Cristo. Mas, um Deus criador panenteísta (presente em tudo e em todos). A morte como fato natural, parte do ciclo vital e não conseqüência do pecado de Adão. “A bênção originária” da criação prenuncia a Redenção. São as teses expressas no livro de Matthew Fox, intitulado precisamente Original Blessing (1) [Bênção original], que saiu nos EUA, em 2000 e agora é traduzido na Itália com o título In principio era la gioia [No princípio era a alegria]. Um texto no qual a tradição católica e apostólica se transmuda numa religiosidade sapiencial, feminista, ecológica, sensual, com forte veia vitalista e new age.
A entrevista é de Maria Antonietta Calabrò e publicada pelo jornal Corriere della Sera, 17-02-2011. A tradução é de Benno Dischenger.
Eis a entrevista.
Matthew Fox, o então cardeal Ratzinger “condenou” o seu livro como “perigoso e conduzindo em erro”. Qual tem sido sua reação à eleição a Papa de um “discípulo” de Agostinho, que o senhor acusa de estar na raiz da teologia negativa e pessimista do pecado?
Minha reação tem sido a de ir a Wittenberg, na Alemanha, durante o tempo de Pentecostes e afixar 95 teses na mesma porta onde Martinho Lutero havia afixado as suas. Pareceu-me particularmente apropriado porque Ratzinger foi o primeiro papa alemão em centenas de anos, mas principalmente por fazer ressaltar a profunda necessidade de uma reforma da Igreja em nossos dias. Penso que minhas 95 teses indiquem a direção apropriada para a qual devamos mover-nos. Os eventos que aconteceram depois que ele foi feito Papa, incluindo o tsunami de revelações sobe a pedofilia dos padres e sobre a cobertura do escândalo da parte da Congregação para a doutrina da fé que ele guiava, indicam que minhas ações eram justificadas”.
O grande convertido inglês Chesterton exprime conceitos muito semelhantes aos de “Original Blessing”. Mas, sustenta que a Igreja católica é o único “lugar onde todas as verdades se encontram”. Por que o senhor não está de acordo?
Chesterton era, de muitos modos, um celebrante da teologia da “bênção originária” ou da beleza e bondade originárias Em seu livro sobre Tomás de Aquino (que li como garoto e influenciou o meu desejo de me tornar frade dominicano) ele fala do “velho puritanismo agostiniano” e do pessimismo que o Aquinate combateu tão fortemente. Quanto à eclesiologia de Chesterton, o nosso conhecimento do mundo cresceu desde o início do século vinte, quando ele escrevia. E aprendemos do Concílio Vaticano II que o Espírito Santo trabalha através de todas as tradições. E que a Igreja institucional é semper reformanda. Chesterton escreveu que o diabo se encontra tanto na Igreja como no mundo”.
O Credo codificado em 325 no Concílio de Nicéia afirma: “Confesso um só batismo para o perdão dos pecados.
Este Credo fala da remissão dos pecados (no plural) e não da remissão de um só (o pecado original). O batismo dos adultos “re-limpava” as pessoas dos pecados do passado e os acolhia na nova vida em Cristo. O batismo dos neonatos os acolhe na comunidade dos fiéis no mundo e na plenitude de vida com Cristo. Opostamente à falsa caracterização feita por Ratzinger do meu livro, eu não nego o pecado original. Eu contesto o que nós entendemos com isto. A palavra “pecado” é muito problemática e não aparece em nenhuma parte na consciência hebraica (isto é, a de Jesus). Não é uma palavra bíblica.
O papa Wojtyla está para ser declarado beato: sua abordagem não era positiva, criativa, numa palavra, como diria ele, bendizente?
Há sérios questionamentos sobre esta beatificação. A começar pelo fato que defendeu a canonização de um homem violento como Escrivá, o fundador do Opus Dei.
E as multidões que o seguiram?
Não creio que o culto do papado ou grandes multidões falem necessariamente de renovação da Igreja. A papolatria não é uma virtude. Alguns escritos de João Paulo II são admiráveis, mas creio que a história mostrará que ele desenraizou a Teologia da Libertação e as comunidades de base na América Latina. Sem contar sua completa indiferença para com a coragem e a santidade de leigos e membros do clero, centenas dos quais foram torturados e assassinados na mesma América Latina para defender os pobres e proclamar a Boa Nova da Justiça de um modo concreto (Oscar Romero era apenas uma destas pessoas santas). Os encargos assinalados a uma hierarquia de extrema direita (frequentemente do Opus Dei); a recusa de honrar o princípio de colegialidade fixado pelo Concílio Vaticano II; o apoio ao padre Maciel, fundador da Legião de Cristo, mesmo depois que as revelações sobre sua pedofilia tinham sido tornadas públicas; o diminuir as mulheres, a recusa até de tomar em consideração o clero casado ou as mulheres padres, também quando os sacramentos são denegados a muitos pela falta de sacerdotes; o apoio a movimentos fanáticos de leigos que na realidade não são leigos, como Comunhão e Libertação, o Opus Dei e a Legião de Cristo; as denúncias profundamente homofóbicas; a restauração da Inquisição contrária ao ensinamento e ao espírito do Vaticano II: tudo isso não me faz exprimir admiração.
O senhor deixou a ordem dominicana durante o papado de Wojtyla...
Eu não deixei a Ordem dominicana, fui expulso. Lutei 12 anos para permanecer e tive o apoio de muitos dominicanos, sobretudo na Holanda. O Concílio Vaticano II era focalizado para a renovação da Igreja, mas a grande parte das declarações sobre isso foi negada durante os papados de Wojtyla e Ratzinger. Este é o motivo pelo qual muitos pensadores de Igreja que conhecem um pouco de história retêm que o atual pontificado e o precedente sejam cismáticos”.
Cismáticos?
Um papa e sua cúria (não importa quantas dezenas tenham sido feitas cardeais e quantos estejam ocupados em canonizar-se um ao outro) não superam um Concílio. No grande cisma do século XIV, no qual três pessoas reclamavam contemporaneamente o papado, foi o Concílio de Constança que destituiu todos os três papas e elegeu um novo. Penso que seja a época de um catolicismo pós-Vaticano, uma verdadeira cristandade católica. Talvez a Cidade do Vaticano tenha algo a aprender do Cairo. Seria preciso derrubar do trono os ditadores e repelir um sistema corrupto, tão distante dos ensinamentos do Evangelho. Penso que o próprio Jesus poderia novamente derrubar as mesas dos mercadores no templo, se ele viesse ao cenário eclesial corrente.
Transmite-se que no fim da vida Santo Tomás tenha dito: “Tudo o que escrevi é palha”. O senhor que é autor de best-seller; subscreveria esta frase?
Como ávido leitor do Aquinate, estou feliz que seus trabalhos tenham sido salvos e que não tenham tido o fim da palha. Sua experiência mística, em cuja perspectiva havia visto todo o seu trabalho “como palha” em comparação com a luz de Deus, é uma experiência profunda sobre a qual devemos meditar. Todos os nossos esforços no mundo do trabalho, da vida familiar e da nossa cidadania parecem palha no grande esquema da história. Isto não significa que nós não estejamos aqui para trabalhar duro, divertir-nos e amar generosamente. Isto significa somente que somos meros instrumentos de um drama de 13,7 bilhões de anos que chamamos universo. Mas, não era da evolução cósmica que falava Tomás...
Nota da IHU On-Line:
1.- O título completo do original do livro é: Original Blessing: A Primer in Creation Spirituality Presented in Four Paths, Twenty-Six Themes, and Two Questions.

João Batista Libânio - Igreja mergulha em longo processo neoconservador. Entrevista especial com João Batista Libânio

João Batista Libânio


Recentemente, teólogos e teólogas alemães, suíços e austríacos, lançaram um manifesto propondo reformas para a Igreja em 2011. A convite da IHU On-Line, o teólogo João Batista Libânioleu o documento e analisou as propostas, concedendo por e-mail a entrevista a seguir. Resumindo, ele é enfático: “A tônica do projeto do Papa e a do manifesto divergem”.

Com a experiência de quem presenciou “nítidos momentos no processo eclesiástico” da Igreja nas últimas décadas, Libanio ressalta que o manifesto “alude ao fato de que em 2010 ‘tantos cristãos, o que jamais ocorrera antes, deixaram a Igreja e apresentaram à autoridade da Igreja a desistência de sua pertença ou privatizaram sua vida de fé para defendê-la da instituição’”. A constatação do êxodo cristão, entretanto, “não abala a convicção do projeto de manter uma Igreja, embora minoritária, mas fiel aos ensinamentos dogmáticos, morais e à prática disciplinar eclesiástica”, assinala.
Para ele, Roma reforça a autoridade sobre as igrejas locais porque elas a solicitam. “A geração profética do porte de Dom Helder deixou-nos ou já está envelhecida. E a nova safra eclesiástica revela outro corte”, lamenta.
Libânio também comenta a nomeação de bispos brasileiros para integrarem a Cúria Romana e diz que as atuais nomeações “respondem ao atual perfil de Roma. (...) Isso não vem de nenhum prestígio especial do episcopado brasileiro, como tal, além do peso estatístico”.
João Batista Libânio é padre jesuíta, escritor e teólogo. É doutor em Teologia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) de Roma. Atualmente, leciona na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e é Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais. É autor de inúmeros livros, dentre os quais Teologia da revelação a partir da Modernidade(5. ed. Rio de Janeiro: Loyola, 2005), Qual o caminho entre o crer e o amar? (2. ed. São Paulo: Paulus, 2005) e Qual o futuro do Cristianismo? (2. ed. São Paulo: Paulus, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line Qual sua reação ao manifesto que propõe reformas para a Igreja em 2011, elaborado por teólogos alemães, suíços e austríacos?
João Batista Libânio Impressiona, logo à primeira vista, o conjunto de assinaturas de teólogos da mais alta competência e responsabilidade. Portanto, não subscreveriam nenhummanifesto superficial, imprudente. Concordemos ou não com as proposições, ele merece séria consideração e detida atenção.
Parte do inegável mal-estar que afetou não só a Igreja Católica alemã e de alguns países por causa do escândalo da pedofilia, mas de toda a Igreja por ver-se nele a ponta de um iceberg de maior amplitude: a falta de liberdade e de transparência no interior da Igreja devido ao cerceamento das instâncias de poder eclesiástico. Por isso, o manifesto bate forte na tecla das estruturas de governo da Igreja Católica.
IHU On-Line A partir da sua trajetória sacerdotal, o senhor também concorda que a Igreja precisa ser reformada? Quais seriam as reformas urgentes?
João Batista Libânio Os anos me permitem perceber três nítidos momentos no processo eclesiástico das últimas décadas. Ainda conheci estruturas hieráticas no pontificado de Pio XII, que lançava a imagem do poder eclesiástico onisciente e onipotente. Roma pronunciava-se sobre os mais diversos assuntos e com a consciência de dizer verdades inquestionáveis. Não se percebia sinal de dúvida ou perplexidade. Isso acontecia com duplo efeito. Positivamente, oferecia aos católicos fieis enorme segurança sobre temas desde a astronomia até a intimidade da vida conjugal. Para aqueles que já tinham recebido o impacto da modernidade liberal, democrática, marcada pela subjetividade, autonomia das pessoas, consciência história, práxis transformadora, tais declarações romanas produziam enormes dificuldades e mal-estar.
Veio então João XXIII. Convoca o Concílio Vaticano II que inicia, com certa coragem, o diálogo da Igreja com a modernidade. Usando a imagem da música “andante ma non troppo”, a Igreja caminha em direção ao repensamento doutrinal e pastoral, provocado pelos questionamentos teóricos e práticos levantados nos últimos séculos. No entanto, o tempo deaggiornamento não durou muito. Já no próprio Pontificado de Paulo VI, a partir de 1968, despontam sinais de contenção e retrocesso. E depois a Igreja Católica mergulha em longo processo neoconservador que dura até hoje. As inovações iniciadas no Vaticano II se interromperam e outras não surgiram, exceto em um ou outro gesto ousado de João Paulo II, como a Oração pela Paz em Assis com os líderes das diferentes religiões do mundo. Ainda que o clima geral não fala de abertura, entretanto percebe-se-lhe a necessidade.
IHU On-Line O manifesto também propõe uma reconversão da Igreja. O que o senhor entende por esta proposta?
João Batista Libânio A Igreja tem a enorme graça de pôr como referência última, principal, insuperável a pessoa de Jesus Cristo. E quanto mais se conhece o Jesus histórico, mais se percebe a força revolucionária de sua pessoa. Ele não deixa nenhuma estrutura esclerosar-se, sem que lhe seja acicate de mudança. Menciono de passagem o maravilhoso livro de J. Pagola,Jesus: aproximação histórica (Petrópolis: Vozes, 2010), que nos descreve e narra um Jesus colado à realidade no projeto maior de devolver às pessoas a dignidade.
Diante dessa figura de Jesus, muitas estruturas eclesiásticas sofrem terrível crítica. A partir dele, cabe falar de contínua reconversão da Igreja. Basta comparar a figura de Jesus andarilho, dePedro pescador e crucificado em Roma com certas aparências poderosas clericais para ver a gigantesca distância e a força crítica de Jesus. Santo Inácio de Loyola apostava na força de conversão da contemplação dos mistérios de Jesus. Isso vale em nível pessoal, comunitário e eclesiástico. Em confronto com a pessoa de Jesus, a Igreja se vê questionada continuamente a assumir formas de humildade, simplicidade, pobreza, abandonando o luxo, o esplendor, a arrogância triunfante.
IHU On-Line O manifesto diz ainda que somente através de uma comunicação aberta a Igreja pode reconquistar confiança. Em que consistiria uma comunicação aberta com a sociedade?
João Batista Libânio Só existe comunicação aberta se se abrem canais de entrada e saída. De entrada nos recônditos dos segredos, nas manipulações e jogadas maquiavélicas, nas tramas urdidas na noite do anonimato. Existe limite difícil de ser traçado do direito ao sigilo de consciência, de reputação das pessoas e comunicação transparente. Portanto, não se trata de questão fácil. Entre os extremos da cultura Big Brother da total e perversa transparência e dos sigilos cabalísticos de verdades a que os fiéis têm direito de conhecer, existe um meio termo de clareza e de possibilidade de acesso. O canal de saída refere-se à liberdade de expressão das pessoas no interior da Igreja a respeito da vida da Igreja. No embate da discussão encontram-se melhores caminhos que na proibição da mesma.
IHU On-Line É possível a Igreja romper com tradições, se renovar sem perder seus princípios básicos?
João Batista Libânio Não se trata nem de romper nem de engessar a Tradição, ou mais corretamente as tradições. Na polêmica com Mgr. Lefebvre, que defendia a literalidade da Tradição e das tradições, Paulo VI insistia na necessidade de interpretá-la (s). Eis a questão! Os princípios permanecem no nível universal, abstrato. Importa ver como eles são entendidos nas situações concretas. E aí está o problema. O trabalho interpretativo tem exigências. Implica esforço da inteligência de captar três coisas. O significado da questão no contexto primeiro em que ela foi formulada e respondida. Esta mesma questão como se entende hoje. E, então, como o significado de ontem se reinterpreta para hoje. Por exemplo, a usura, cobrar mais do que se emprestava, até o nascimento do capitalismo se considerava roubo, portanto eticamente condenável. Hoje, ela se chama juros e ninguém os considera imorais. Então, como se fez a transposição de um princípio ético no pré-capitalismo para o capitalismo?
Numa economia estável sem circulação monetária parecia injusto receber mais do que se emprestava. Nisso consistia a injustiça. Numa sociedade em que o dinheiro se tornou fonte de renda, se considera injustiça só quando as taxas de juros superam de muito a força de rentabilidade. Recebe o nome de agiotagem. Mas cobrar taxas razoáveis não contradiz o princípio ético pré-capitalista no significado, embora materialmente pareça opor-se a ele (usura). Problemas semelhantes se levantam em muitos campos.
IHU On-Line O documento também chama a atenção para a necessidade de reconhecer a liberdade de consciência individual, referindo-se também a opção sexual dos indivíduos. Entretanto, observa que “a alta consideração da Igreja pelo matrimônio e pela força de vida sem matrimônio está fora de discussão”. Parece algo contraditório?
João Batista Libânio A consideração anterior que fiz no campo das finanças vale no campo da sexualidade. Os ensinamentos morais da Igreja sobre o matrimônio permanecem válidos na linha dos princípios. E cabe perguntar-nos pelo seu significado profundo que diz respeito à dignidade humana, ao respeito das relações afetivas. Que significam o respeito e a dignidade nas relações humanas na união homoafetiva? Não se responde em abstrato, mas a partir das experiências que se fazem no concreto da vida. Tanto nas relações matrimoniais como nas homoafetivas existem tanto dignidade, respeito como o oposto. E as considerações éticas descem ao concreto de tais relações para aí interpretar o princípio fundamental da dignidade humana, do respeito entre as pessoas, o projeto de amor de Deus.

IHU On-Line O que significam os casos de pedofilia na Igreja?
João Batista Libânio Revelam a face pecadora dos homens e mulheres de Igreja em todos os níveis: do simples fiel até pessoas da alta hierarquia. Em face do pecado, cabem, em primeiro lugar, a conversão e o perdão de Deus. Quando o direito de outras pessoas é lesado, como no caso da pedofilia que fere gravemente a criança envolvida, entram fatores de reparação desde a econômica até a judicial. Nada justifica o ocultamento, mas importa tomar as medidas concretas para evitar outros casos, sanear o acontecido, reparar o estrago feito.
Evidentemente, não tem sentido entrar no sensacionalismo da mídia. Está em jogo algo sério demais para ser simplesmente assunto de folha policial em ocasião para jogar pedras na Igreja. Não se pensa em acabar com a família, embora nela aconteça a imensa maioria dos casos de pedofilia. A mesma mídia que divulga, “escandalizada” casos de pedofilia, termina sendo uma das causas importantes da decadência moral da sociedade com a enxurrada de programas de banalização do amor, de sexualização das crianças, de exibicionismo e voyeurismo sexual, da perda de senso de responsabilidade social. A luta contra a pedofilia exige programa complexo de purificação das fantasias, de presença maior de educação sadia, de melhoria de cultura veiculada pela mídia.
IHU On-Line Quais são as perspectivas e os desafios da Igreja para esta segunda década do século XXI?
João Batista Libânio Distingamos os níveis. No momento, em nível das estruturas internas da Igreja não se veem perspectivas animadoras. Durante o longo pontificado de João Paulo II, a Igreja Católica viveu o paradoxo, de um lado, de rasgos de abertura na prática do diálogo inter-religioso, na defesa dos direitos humanos, na oposição a toda guerra enfrentando, inclusive, as pretensões americanas, na proximidade com o mundo dos pobres e, de outro, de enrijecimento doutrinal e disciplinar interno. No horizonte, não se percebe que a Igreja enfrentará os novos desafios da cultura contemporânea por meio de mudanças internas, como fez, em parte, logo depois do Concílio Vaticano II. Falta o clima de abertura, de otimismo e de profetismo para lançar-se em transformações profundas. Em termo de hierarquia, reina antes momento de silêncio, de prudência sem muita inspiração e lanço de coragem inovadora. A geração profética do porte de Dom Helder deixou-nos ou já está envelhecida. E a nova safra eclesiástica revela outro corte.
No universo dos leigos há sinais de esperança nas comunidades de base, na crescente participação consciente e ativa das mulheres, no maior desejo de espiritualidade e teologia, na vitalidade de novos ministérios, na criatividade litúrgica, no acesso amplo às Escrituras pela via da leitura orante. Em algumas igrejas particulares a Assembleia do povo de Deus anuncia algo de novo, desde que a clericalização não a prejudique.
IHU On-Line O senhor concorda com a tese de que o Vaticano está enquadrando a Igreja no Brasil?
João Batista Libânio Cícero chamou a história “mestra da vida”. Lancemos um olhar para os últimos séculos a fim de entender a relação entre o Vaticano e as igrejas locais. Gregório VII, no século XI, deu a decisiva guinada da autonomia das igrejas locais para crescente poder de Roma. Ele pautou o governo pontifício pelo dictatus papae, que ressuda centralismo, autoritarismo desmedido. Esse longo processo de quase mil anos marcou uma linha de comportamento em que Roma exerce imensa influência sobre as Igrejas particulares ou regionais. O Concílio Vaticano II, com a colegialidade, tentou diminuir tal tendência, mas com pouco resultado. Faz parte, portanto, da consciência comum eclesiástica a dependência em relação a Roma. E a dialética de dependência de uma parte pede o exercício de domínio da outra.
A criança que pergunta a mãe que meia vai usar pede uma mãe cada vez mais absorvente que termina ditando-lhe tudo. Assim na Igreja. Roma responde com autoridade e a reforça porque as próprias igrejas locais a solicitam e ficam à espera. A liberdade se entende como relação entre duas liberdades. Não há liberdade de um lado só. Que o diga Erich Fromm no magistral livroMedo da liberdade. As análises que lá faz, baseadas em sua experiência do nazismo, valem para toda relação de submissão e de autoritarismo, onde ela se dê. No dia, porém, em que as igrejas locais tomarem maior consciência de outra eclesiologia, então a Igreja de Roma também lentamente afinar-se-á com ela. O processo se institui de ambas as partes simultaneamente em mútua relação e influência.
Quanto mais a Igreja do Brasil marcar a originalidade, a liberdade, a autonomia, tanto mais Roma a reconhecerá. Se ela, porém, está a esperar para cada palavra que disser um sorriso aprobatório de Roma, a liberdade se encurtará e a autonomia se dissolverá. Quem age sob o olhar de um outro, termina condicionando-se de tal modo que perde a própria identidade.
IHU On-Line Como avalia a notícia de três nomeações de bispos brasileiros para ocupar cargos importantes na Cúria Romana? O que isto significa? Terá algum impacto na CNBB?
João Batista Libânio A nomeação dos membros da Cúria Romana obedece ao difícil jogo de interesses e preocupações. Não creio que o caráter nacional, no caso, o fato de ser brasileiro, seja predominante. Entram em questão outros critérios de linha teológica, ideológica, de indicações de pessoas influentes, de vinculação a movimentos de igreja, de serviço prestado. Em termos modernos, falamos de “perfil”. As firmas, as instituições contratam ou dispensam funcionários dando como razão o fato de corresponderem ou não ao seu perfil. Analogamemte vale no caso da Igreja. Julgo que os bispos brasileiros escolhidos para cargos romanos respondem ao atual perfil de Roma. Coincide que vários brasileiros corresponderam a tal retrato e então foram escolhidos. Isso não vem de nenhum prestígio especial do episcopado brasileiro, como tal, além do peso estatístico.
IHU On-Line Como vê a atual internacionalização da Cúria Romana? Como propõe o manifesto, a sociedade deveria ajudar a escolher os representantes?
João Batista Libânio A internacionalização traz vantagens. Mas não decide por si mesma. Acontece que a cor internacional desaparece facilmente por homogeneização ideológica por força da instituição. Se cada nação levasse para dentro da Cúria Romana a própria originalidade e a conservasse em contínuo diálogo com a predominante cultura europeia e romana, então a internacionalização causaria outro efeito.
Bispos latino-americanos, africanos ou asiáticos que arribam a Roma se romanizam a ponto de não se distinguir muito dos outros. Outra coisa significaria se as igrejas locais se fizessem presentes em Roma por meio de seus representantes, escolhendo-os e eles fazendo-se porta-voz delas. Mais: se elas mesmas decidissem na escolha dos ministros que as servem ou vetassem aqueles que não as satisfizessem. Assim evitaríamos casos desastrosos que tivemos de bispos, párocos ou pessoas em outras funções que durante décadas exerceram funções com detrimento da vida eclesial em vez de construí-la e os fieis tiveram de suportá-los calados e sem poder de mudança. Certos aspectos da sociedade democrática não contradizem, teologalmente falando, a maneira de designar membros da hierarquia. A escolha pode ser democrática, embora a conferição se faça pela graça do sacramento.
IHU On-Line O que significa, para a Igreja brasileira, a nomeação de Dom Odilo Scherer no Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização?
João Batista Libânio Como disse acima, os critérios de escolha das pessoas respondem antes ao perfil buscado pelo Vaticano para determinada função e ao peso de influências indicativas que à origem nacional. E o perfil se define pela combinação do histórico do bispo em questão e as conveniências da Instituição. Para alguém que está fora desse jogo fica muito difícil fazer juízo objetivo sobre as indicações. No início de cada governo no mundo da política, assistimos ao delicado jogo da escolha das pessoas para os cargos. Nem todos os indicados e escolhidos respondem ao desejo do presidente ou do papa, no caso da Igreja, mas entram na lista para cumprir uma série de acordos necessários para o governo. A política eclesiástica não escapa totalmente dessa regra.
IHU On-Line Está em curso a consolidação do programa ratzingeriano para a Igreja do Brasil?
João Batista Libânio Teríamos que conhecer de antemão o programa do Papa. Os papas, em geral, não fazem discursos programáticos, mas dogmáticos. E supõe-se arguta análise para perceber sob as afirmações doutrinais que tipo de prática de governo subjaz. Aventuraria dizer que Bento XVI atribui relevância especial à qualidade da pertença à Igreja e não se impressiona tanto com a diminuição estatística. O manifesto dos teólogos alude ao fato de que em 2010 “tantos cristãos, o que jamais ocorrera antes, deixaram a Igreja e apresentaram à autoridade da Igreja a desistência de sua pertença ou privatizaram sua vida de fé para defendê-la da instituição”. Enquanto percebo, tal constatação não abala a convicção do projeto de manter uma Igreja, embora minoritária, mas fiel aos ensinamentos dogmáticos, morais e à prática disciplinar eclesiástica.
No projeto de Igreja em curso, a fidelidade, a exatidão doutrinal e a coerência prática disciplinar merecem relevo preponderante mesmo que à custa de êxodo de católicos.
O manifesto pondera a questão do isolamento da Igreja em relação à sociedade. Tal fato, porém, não se entende na percepção pontifícia de modo negativo, enquanto fechamento, mas como exigência de coerência com a própria mensagem a despeito da incompreensão por parte da mentalidade moderna.
Outra coisa, como parece supor o manifesto, tal aspecto implicaria incongruência com o projeto salvífico de Jesus. A questão teológica se desloca. Até onde tal programa eclesiástico afasta-se do reino anunciado por Jesus? Acusação grave que precisa ser bem pensada e discutida de ambos os lados. A tônica do projeto do Papa e a do manifesto são divergentes. No primeiro caso, volta-se para a Igreja e quer mantê-la na sua atual estrutura e, a partir daí, cumprir melhor sua função. No outro, propõe-se o projeto de Jesus e se pergunta como adequar as estruturas da Igreja a ele. Pontos divergentes que geram leituras diferenciadas. Só o diálogo mostra o limite e a positividade de cada perspectiva. O manifesto acentua: primeiro a liberdade individual e de consciência e a partir dela a fidelidade. A atual disciplina eclesiástica: primeiro a fidelidade à doutrina e à prática e aí dentro a liberdade.
O mesmo vale de outros pontos acentuados pelo manifesto: participação dos fiéis, comunidade de partilha, reconciliação dos pecadores e celebração ativa, enquanto o projeto eclesiástico em curso entende tais demandas a partir dos quadros jurídicos traçados para a participação, para a vida de comunidade, para a reconciliação e celebração e não à sua revelia ou à exigência da sua mudança. Nessa tensão consiste, segundo minha leitura, a divergência maior entre o manifesto e o que está em curso atualmente no seio da Igreja Católica.