O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

23 de fevereiro de 2011

A direita católica não atina com a verdade mais profunda de um Jesus Cristo plenamente humano

E se aquelas pessoas da direita católica mais preocupadas atualmente em defender a fé tiverem, na verdade, uma compreensão inadequada da mais central das doutrinas cristãs? Não a proibição doutrinal da contracepção artificial: a direita católica aprendeu esse ensinamento completamente.
Estou falando da reivindicação de que Deus se tornou um de nós.
A reportagem é de David DeCosse e publicada pelo National Catholic Reporter, 11-02-2011. A tradução é de Luiz Marcos Sander.
David DeCosse é diretor de programas de ética no Centro Markulla de Ética Aplicada da Universidade de Santa Clara, na Califórnia.
A controvérsia ocorrida em dezembro passado no Instituto Smithsoniano emWashington por causa da retirada, numa exposição, de um vídeo em que formigas se arrastavam sobre um crucifixo evoca tal pergunta. É claro que a pergunta também se levanta numa época em que a direita católica, dentro e fora das estruturas formais da igreja, está ligando em grau crescente a fé católica a uma série de testes de tornassol destinados a demarcar fronteiras.
É preciso se opor à legalização do aborto e ao casamento entre homossexuais. É preciso pensar que Cristo proibiu explicitamente que mulheres fossem sacerdotes. É preciso ter apreço pela profundidade redentora do tedioso e sangrento filme “A paixão de Cristo”, de Mel Gibson.
Geralmente, a justificação teológica desses testes se baseia em duas coisas. Em primeiro lugar, há um apelo a Cristo abstrato, sagrado mas distante de nosso mundo bagunçado e deficiente em termos de alma humana. Em segundo lugar, há um apelo a essa concepção de Cristo como justificação para a autoridade de medidas tomadas pelo magistério hierárquico da igreja.
Mas a controvérsia em torno daquele incidente no Instituto Smithsoniano oferece uma ocasião para perceber a debilidade teológica desses argumentos – e desses testes de tornassol. A controvérsia começou quando a Liga Católica pelos Direitos Religiosos e Civis questionou por que verbas governamentais foram usadas para mostrar um vídeo que, segundo a Liga, era ofensivo para os católicos.
Embora a Liga não tenha pedido que o vídeo fosse removido, o museu fez isso de qualquer modo. O filme supostamente ofensivo era um segmento curto de um vídeo muito mais longo, feito pelo falecido artista católico gay David Wojnarowicz, que era uma reflexão sobre o fato de ele próprio estar morrendo de AIDS.
O crítico de arte Holland Custer, do New York Times, disse a respeito do vídeo, chamado “A Fire in my Belly” [Um fogo em meu ventre], que Wojnarowicz “se sentia, com razão, envolvido num combate mortal, e o vídeo está repleto de símbolos da vulnerabilidade sob ataque: mendigos, animais mortos em matadouros, corpos deslocados e o Jesus crucificado. No simbolismo da natureza de Wojnarowicz – e isto é confirmado em outras obras – as formigas eram símbolos de uma vida humana movida mecanicamente por suas próprias necessidades, desatenta a qualquer outra coisa. Neste caso elas se apinham cegamente sobre um emblema de sofrimento e autossacrifício.”
A reivindicação central em toda a doutrina cristã é que o Filho de Deus se tornou plenamente humano. Isto não significa apenas que Cristo entrou no mundo como uma criança desamparada. Mas significa também que Cristo assumiu os fardos complexos da liberdade humana e da corporificação humana, chegando ao ponto de aceitar livremente a morte. E quando consideramos essa doutrina central, chegamos a duas conclusões surpreendentes. Primeiramente, que o vídeo de Wojnarowicz passa facilmente no teste dessa crença ortodoxa.
Em segundo lugar, a Liga Católica e seus aliados parecem estar atuando a partir de uma compreensão inadequada dessa convicção cristã central.
A controvérsia em torno do vídeo de Wojnarowicz tem a ver com a aceitação da humanidade plena de Cristo. Particularmente, a questão doutrinal em jogo está representada pela antiga máxima cristã: Quod non est assumptum non est sanatum [O que não foi assumido também não foi redimido]. Ou, em outras palavras, a menos que se entenda que o Filho de Deus assumiu as profundezas da experiência humana – incluindo o medo e a solidão da morte –, não se poderia dizer que Cristo também redimiu essa experiência.
Essa é uma máxima dura porque exige que se veja Jesus Cristo não como uma figura abstrata e sagrada cujo poder sobre o pecado combina com sua distância em relação a tudo que poderia enodoá-lo. Pelo contrário: exige que se o veja como uma figura cuja sacralidade é obtida em sua presença para com tudo que está enodoado e através dessa presença.
E aí podemos ver as raízes da tensão relacionada ao vídeo mostrado no Instituto Smithsoniano. Para um grupo como a Liga Católica, o vídeo é um ataque – ou, como eles preferem se expressar, um “golpe” – contra algo sagrado: o fato de formigas andarem sobre uma estátua de Cristo sinaliza um ato indiferente de macular o que é santo e puro.
Mas para Wojnarowicz, a imagem supostamente ofensiva representa uma forma vigorosa de imaginar um Cristo compassivo, um acompanhante do artista moribundo e de todas as outras pessoas no desamparo e na vergonha da morte. Num processo judicial que ganhou contra Donald Wildmon, um ralhador moral de uma geração mais antiga, Wojnarowicz falou dessas convicções teológicas que animavam sua arte.
Podemos ver um problema teológico afim no apreço que os guerreiros da cultura católica têm pelo filme “A paixão de Cristo”, de Mel Gibson. Aos olhos deles, o retrato extenso e brutal da crucificação de Jesus feito pelo filme tornou claro o grau do sacrifício de Cristo. Mas seu louvor do filme se fundamentou no erro sutil, porém significativo, de pensar que a mera capacidade de Jesus de suportar a dor física era, em si mesma, um testemunho de seu nobre compromisso de aceitar o fardo de uma morte dolorosa.
A dor, na opinião deles, provava o amor. Certamente esse juízo pode ser correlacionado com a melhor avaliação crítica do filme enquanto filme: Gibsonconseguiu, de modo esquisito, criar as visões e sons vívidos de uma crucificação de uma forma dramaticamente rasa. Foi um desfile de sangue coagulado em exibição – não o retrato da destruição de um homem.
Mas essa forma de estimar a dor como prova de amor tem afinidades com uma heresia rejeitada nos primeiros séculos pela igreja. Essa heresia sustentava que Cristo assumiu um corpo humano, mas não uma alma plenamente humana com toda a liberdade, emoção e racionalidade de uma pessoa.
O teólogo e cardeal católico Walter Kasper falou dessa “heresia subliminar” que persiste até a atualidade entre as pessoas que consideram a redenção da Sexta-Feira Santa apenas em termos “da dor física de Jesus e quase nada em termos de sua obediência pessoal e entrega completa ao Pai”.
Tudo indica que podemos esperar mais testes de tornassol da fé católica nos anos vindouros. A hierarquia cada vez mais conservadora favorece tal política temerária em detrimento da solicitude pastoral. E a sempre vigilante Liga Católica não precisa de motivação para denunciar outro caso de “golpe”.
Mas nós faríamos bem em examinar os compromissos teológicos que estão por trás desses testes de tornassol. Uma defesa da fé católica que esteja animada por uma concepção abstrata de Cristo desligada do mundo faz com que as pessoas se sintam ofendidas onde não há razão para isso – e com que absolutamente não atinem com o sentido de um vídeo como o de Wojnarowicz.
De modo semelhante, uma defesa da fé que esteja animada por uma concepção de Cristo com uma alma humana diminuída faz com que se valorize o meramente físico às custas do espiritual.
Também deveríamos nos lembrar de outra admoestação de Kasper no sentido de tomar cuidado com as pessoas que invocam esse Cristo abstrato como ideologia para defender como eternas as estruturas eclesiásticas de feitura humana e, ao fazerem isso, confundem as fronteiras fixas dos testes de tornassol com a verdade católica mais profunda de que estamos sempre a caminho de Jesus Cristo.

UMA IGREJA QUE MARIA PODE AMAR

por Nicholas D. Kristof
Nicholas D. Kristof é colunista do New York Times
Tradução: Rodrigo Garcia

É bom lembrar que o Vaticano não é sinônimo da Igreja Católica, que tem inúmeros exemplos de freiras, padres e leigos que realizam um grande trabalho em favor do próximo. Dia desses, ouviuma piada sobre um devoto que morre, vai para o céu e tem direito a uma audiência com a Virgem Maria. O visitante pergunta a Nossa Senhora por que, mesmo com todas as suas graças, ela sempre aparece nos quadros como se estivesse um pouco triste, um pouco melancólica: "Está tudo bem"? Maria tranquiliza o visitante: "Sim, tudo está ótimo. Nenhum problema, é só que nós sempre quisemos ter uma filha". Lembro-me da história nesse momento em que o Vaticano enfrenta as consequências de uma mentalidade patriarcal pré-moderna: escândalo, acobertamento e a autodefesa mais desastrada desde Watergate. É isso que ocorre com clubes de garotos velhos. Não era inevitável que a Igreja Católica crescesse tão vinculada ao domínio masculino, ao celibato e a hierarquias rígidas. O próprio Jesus se fixou mais nos necessitados do que nos dogmas; ele desviou-se de sua rota para ir ao encontro das mulheres e as tratava com respeito. A Igreja do primeiro século era inclusiva e democrática, englobando até mesmo uma ala e textos protofeministas. O Evangelho de Felipe, um texto gnóstico do século 3, afirma sobre Maria Madalena: "Ela era a quem o Salvador amava mais do que a todos os seus discípulos". Da mesma forma, o Evangelho de Maria (do início do século 2) sugere que Jesus confiou a Maria Madalena a tarefa de ensinar aos apóstolos suas pregações religiosas. São Paulo se refere, em Romanos 16, a uma mulher do primeiro século, chamada Júnias, como figura importante entre os primeiros apóstolos, e a uma mulher de nome Febe que trabalhava como diaconisa. A apóstola Júnias se tornou cristã antes de São Paulo (tradutores machistas às vezes usam o nome como se fosse de um homem, sem nenhuma base histórica para isso). Ao longo dos séculos seguintes, a Igreja se voltou para atitudes fortemente patriarcais, ao mesmo tempo que ficava cada vez mais desconfortável com a sexualidade. A mudança pode ter surgido com as igrejas sendo transferidas das casas, onde as mulheres eram naturalmente aceitas, para reuniões mais públicas. A consequência foi que os textos protofeministas não foram incluídos quando a Bíblia foi compilada e, em grande parte, ficaram perdidos até a época moderna. Tertuliano, um líder cristão primitivo, denunciou as mulheres como "a porta para o demônio", enquanto crônicas da época relatam que o eminente Orígenesde Alexandria levou sua devoção até um passo além e se castrou. A Igreja Católica de hoje ainda parece presa a esse comportamento patriarcal. A mesma fé tão pioneira, que teve Júnias como apóstola logo no primeiro século, não consegue atualmente sequer ter uma mulher como simples sacerdotisa de paróquia. Diaconisas, permitidas durante século, são proibidas hoje. O clube do garotos velhos do Vaticano ficou tão autocentrado quanto outros clubes de garotos velhos, como o Lehman Brothers, com resultados parecidos. E essa é a razão pela qual o Vaticano está cambaleando agora. Contudo, existe mais para ser mostrado do que isso. Em minhas viagens pelo mundo, encontrei duas Igrejas Católicas. Uma é a rígida hierarquia do Vaticano, composta apenas de homens, que parece estar fora da realidade quando proíbe preservativos até para casais casados quando um dos cônjuge é HIV positivo. Pelo menos para mim, essa Igreja –obsecada por dogmas e regras e afastada da justiça social – é uma repetição moderna dosfariseus que Jesus criticou. Mas também existe outra Igreja Católica, que admiro intensamente. Essa é a Igreja Católica das bases, que faz muito mais coisas boas para o mundo do que recebe em créditos. É a Igreja que apoia extraordinárias organizações de ajuda, como a Catholic Relief Services (CRS) e a Caritas, salvando vidas todos os dias, e que mantém escolas fantásticas, garantindo a crianças necessitadas uma escada para sair da pobreza. É a Igreja de freiras e padres no Congo, trabalhando no anonimato para alimentar e educar crianças. É a Igreja do padre brasileiro que combate a aids e que me disse que, se fosse papa, ergueria uma fábrica de preservativos no Vaticano para salvar vidas. Essa é a Igreja das irmãs Maryknoll , na América Central, e das irmãs Cabrini na África. Existe um estereótipo de freiras como tradicionalistas vitorianas enfadonhas. Eu vi o contrário na Suazilândia – enquanto me agarrava à vida no banco de passageiros e uma irmã norte-americana, com pé de chumbo, dirigia seu jipe por entre picadas e cruzava riachos para visitar órfãos da aids. Após vários encontro como esses, comecei a crer que as pessoas mais divertidas e interessantes do mundo podem ser freiras. Então, quando você ler sobre os escândalos, lembre-se que o Vaticano não é a mesma coisa que a Igreja Católica. Leprosos, prostitutas e moradores de favelas talvez nunca vejam um cardeal, mas diariamente encontram um verdadeiro nobre da Igreja Católica na forma de padres, freiras e membros leigos lutando para fazer a diferença. É a última chance do Vaticano se inspirar nesse sublime – até divino – lado da Igreja Católica, com seus membros cuja grandeza se baseia não em suas vestes, mas em seu altruísmo. Eles são o suficiente para fazer a Virgem Maria sorrir.
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"O nosso testemunho no campo missionário e político é estarmos ao lado dos deserdados, sofrendo com os que sofrem, chorando com os que choram, nos alegrando com os que se alegram" - Paulo Wright - cristão e subversivo

22 de fevereiro de 2011

"A bênção original". Um livro polêmico


 Entrevista com Matthew Fox
"Não um pecado original”, não uma humanidade caída, ferida e depois redimida por Jesus Cristo. Mas, um Deus criador panenteísta (presente em tudo e em todos). A morte como fato natural, parte do ciclo vital e não conseqüência do pecado de Adão. “A bênção originária” da criação prenuncia a Redenção. São as teses expressas no livro de Matthew Fox, intitulado precisamente Original Blessing (1) [Bênção original], que saiu nos EUA, em 2000 e agora é traduzido na Itália com o título In principio era la gioia [No princípio era a alegria]. Um texto no qual a tradição católica e apostólica se transmuda numa religiosidade sapiencial, feminista, ecológica, sensual, com forte veia vitalista e new age.
A entrevista é de Maria Antonietta Calabrò e publicada pelo jornal Corriere della Sera, 17-02-2011. A tradução é deBenno Dischenger.
Eis a entrevista.
Matthew Fox, o então cardeal Ratzinger “condenou” o seu livro como “perigoso e conduzindo em erro”. Qual tem sido sua reação à eleição a Papa de um “discípulo” de Agostinho, que o senhor acusa de estar na raiz da teologia negativa e pessimista do pecado?
Minha reação tem sido a de ir a Wittenberg, na Alemanha, durante o tempo de Pentecostes e afixar 95 teses na mesma porta onde Martinho Lutero havia afixado as suas. Pareceu-me particularmente apropriado porque Ratzinger foi o primeiro papa alemão em centenas de anos, mas principalmente por fazer ressaltar a profunda necessidade de uma reforma da Igreja  em nossos dias. Penso que minhas 95 teses indiquem a direção apropriada para a qual devamos mover-nos. Os eventos que aconteceram depois que ele foi feito Papa, incluindo o tsunami de revelações sobe a pedofilia dos padres e sobre a cobertura do escândalo da parte da Congregação para a doutrina da fé que ele guiava, indicam que minhas ações eram justificadas”.
O grande convertido inglês Chesterton exprime conceitos muito semelhantes aos de “Original Blessing”.  Mas, sustenta que a Igreja católica é o único “lugar onde todas as verdades se encontram”. Por que o senhor não está de acordo?
Chesterton era, de muitos modos, um celebrante da teologia da “bênção originária” ou da beleza e bondade originárias Em seu livro sobre Tomás de Aquino (que li como garoto e influenciou o meu desejo de me tornar frade dominicano) ele fala do “velho puritanismo agostiniano” e do pessimismo que o Aquinate combateu tão fortemente. Quanto à eclesiologia de Chesterton, o nosso conhecimento do mundo cresceu desde o início do século vinte, quando ele escrevia. E aprendemos do Concílio Vaticano II que o Espírito Santo trabalha através de todas as tradições. E que a Igreja institucional é semper reformanda. Chesterton escreveu que o diabo se encontra tanto na Igreja como no mundo”.
O Credo codificado em 325 no Concílio de Nicéia afirma: “Confesso um só batismo para o perdão dos pecados.
Este Credo fala da remissão dos pecados (no plural) e não da remissão de um só (o pecado original). O batismo dos adultos “re-limpava” as pessoas dos pecados do passado e os acolhia na nova vida em Cristo. O batismo dos neonatos os acolhe na comunidade dos fiéis no mundo e na plenitude de vida com Cristo. Opostamente à falsa caracterização feita por Ratzinger do meu livro, eu não nego o pecado original. Eu contesto o que nós entendemos com isto. A palavra “pecado” é muito problemática e não aparece em nenhuma parte na consciência hebraica (isto é, a de Jesus). Não é uma palavra bíblica.
O papa Wojtyla está para ser declarado beato: sua abordagem não era positiva, criativa, numa palavra, como diria ele, bendizente?
Há sérios questionamentos sobre esta beatificação. A começar pelo fato que defendeu a canonização de um homem violento como Escrivá, o fundador do Opus Dei.
E as multidões que o seguiram?
Não creio que o culto do papado ou grandes multidões falem necessariamente de renovação da Igreja. A papolatria não é uma virtude. Alguns escritos de João Paulo II são admiráveis, mas creio que a história mostrará que ele desenraizou aTeologia da Libertação e as comunidades de base na América Latina. Sem contar sua completa indiferença para com a coragem e a santidade de leigos e membros do clero, centenas dos quais foram torturados e assassinados na mesma América Latina para defender os pobres e proclamar a Boa Nova da Justiça de um modo concreto (Oscar Romero era apenas uma destas pessoas santas). Os encargos assinalados a uma hierarquia de extrema direita (frequentemente doOpus Dei); a recusa de honrar o princípio de colegialidade fixado pelo Concílio Vaticano II; o apoio ao padre Maciel, fundador da Legião de Cristo, mesmo depois que as revelações sobre sua pedofilia tinham sido tornadas públicas; o diminuir as mulheres, a recusa até de tomar em consideração o clero casado ou as mulheres padres, também quando os sacramentos são denegados a muitos pela falta de sacerdotes; o apoio a movimentos fanáticos de leigos que na realidade não são leigos, como Comunhão e Libertação, o Opus Dei e a Legião de Cristo; as denúncias profundamente homofóbicas; a restauração da Inquisição contrária ao ensinamento e ao espírito do Vaticano II: tudo isso não me faz exprimir admiração.
O senhor deixou a ordem dominicana durante o papado de Wojtyla...
Eu não deixei a Ordem dominicana, fui expulso. Lutei 12 anos para permanecer e tive o apoio de muitos dominicanos, sobretudo na Holanda. O Concílio Vaticano II era focalizado para a renovação da Igreja, mas a grande parte das declarações sobre isso foi negada durante os papados de Wojtyla e Ratzinger. Este é o motivo pelo qual muitos pensadores de Igreja que conhecem um pouco de história retêm que o atual pontificado e o precedente sejam cismáticos”.
Cismáticos?
Um papa e sua cúria (não importa quantas dezenas tenham sido feitas cardeais e quantos estejam ocupados em canonizar-se um ao outro) não superam um Concílio. No grande cisma do século XIV, no qual três pessoas reclamavam contemporaneamente o papado, foi o Concílio de Constança que destituiu todos os três papas e elegeu um novo. Penso que seja a época de um catolicismo pós-Vaticano, uma verdadeira cristandade católica. Talvez a Cidade do Vaticano tenha algo a aprender do Cairo. Seria preciso derrubar do trono os ditadores e repelir um sistema corrupto, tão distante dos ensinamentos do Evangelho. Penso que o próprio Jesus poderia novamente derrubar as mesas dos mercadores no templo, se ele viesse ao cenário eclesial corrente.
Transmite-se que no fim da vida Santo Tomás tenha dito: “Tudo o que escrevi é palha”. O senhor que  é autor de best-seller; subscreveria esta frase?
Como ávido leitor do Aquinate, estou feliz que seus trabalhos tenham sido salvos e que não tenham tido o fim da palha. Sua experiência mística, em cuja perspectiva havia visto todo o seu trabalho “como palha” em comparação com a luz de Deus, é uma experiência profunda sobre a qual devemos meditar. Todos os nossos esforços no mundo do trabalho, da vida familiar e da nossa cidadania parecem palha no grande esquema da história. Isto não significa que nós não estejamos aqui para trabalhar duro, divertir-nos e amar generosamente. Isto significa somente que somos meros instrumentos de um drama de 13,7 bilhões de anos que chamamos universo. Mas, não era da evolução cósmica que falava Tomás...
Nota da IHU On-Line:
1.- O título completo do original do livro é: Original Blessing: A Primer in Creation Spirituality Presented in Four Paths, Twenty-Six Themes, and Two Questions.


Consertando a Igreja quebrada

"Um sacerdócio casado mais abrangente, não restrito a alguns clérigos anglicanos descontentes, seria um passo gigantesco no resgate da confiança de muitíssimos católicos que estão observando, esperando, torcendo por uma renovação substancial daquilo que rapidamente está se tornando uma Igreja moribunda", propõe a teóloga norte-americana.
Phyllis Zagano é professora e pesquisadora na Universidade de Hofstra, Nova York, e autora de vários livros sobre o catolicismo. Seu livro Women & Catholicism [As mulheres e o catolicismo] será publicado pela Palgrave-Macmillan em 2011.). Ela leciona "Introdução às Religiões Ocidentais", "Misticismo e questão espiritual" e "História da Espiritualidade irlandesa".
O artigo foi publicado por National Catholic Reporter, 16-02-2011. A tradução é deWalter O. Schlupp.
Eis o artigo.
O que dói no coração é que ninguém no Vaticano parece saber juntar ponto com ponto. Por maior que seja o número de relatórios oficiais, de revelações na mídia, de visitas ad limina ou de memórias publicadas por bispos, a burocracia simplesmente não entende.
A Igreja irlandesa está à beira do colapso total. Um terço dos teólogos naAlemanha está pedindo reformas. A Igreja nos EUA sofre um escândalo por dia.
Estou farta disso. Você também. Conversemos, então.
Mas vamos estabelecer alguns parâmetros. Para começar, não penso que haja qualquer coisa errada no voto do celibato. Centenas de milhares de homens e mulheres têm vivido vidas contemplativas ou ativas dedicadas a Deus e à Igreja – o povo de Deus. Muitos/as têm vivido em instituições e ordens religiosas. Alguns e algumas têm vivido como eremitas ou virgens consagradas.
Depois existe o outro celibato, aquele exigido da maioria dos sacerdotes seculares e de todos os bispos na Igreja ocidental. Esse também não tem problema, até certo ponto. Muitos sacerdotes seculares não conseguem lidar com ele. Alguns são infantilizados por suas exigências.
Por que as coisas precisam ser desse jeito? Vamos supor que a rede dos apóstolos pesque 153 peixes. Na maioria, são leigos e leigas. Além disso, freiras e irmãs, monges e irmãos, eremitas, virgens e grande número de homens solteiros que integram o clero diocesano. Naturalmente alguns peixes apresentam defeito, estão em pedaços, mas o que se enxerga principalmente é a diversidade de vocações. Então, que há de errado com um padre casado?
Esta é a questão central nas queixas e em muitos escândalos. Qual ministro casado, qual esposa de ministro permitiria que algum esquisitão cultive relações com adolescentes? Ninguém. Você sabe disso. Eu sei disso.
As mães irlandesas deixaram de torcer que um filho se torne padre. Os teólogos alemães não se conformam mais com o declínio da fé e da prática. Americanos de uma costa a outra estão arquejando sob o peso das reportagens sobre rolos que não acabam mais.
Ultimamente os casos têm sido na Filadélfia (um superior de religiosos foi preso por transferir pederastas), Los Angeles (um padre liga para uma mulher de 61 anos de idade da qual ele abusou quando adolescente), Louisville (um dedo-duro alega retaliação) e sacerdotes vão para a cadeia ou tendem para a mesma em Albany e em outros lugares do mundo.
Naturalmente também há as alegações de encrencas financeiras em Milwaukee, processos judiciais contra o atual e antigos arcebispos de Filadélfia e as memórias de tantos católicos comuns, que sempre voltam à mente. Algumas destas vieram à baila na hora do almoço esta semana: o professor-sacerdote em Phoenix, conhecido pelos meninos por suas apalpadelas, e o padre-professor em Nova York que dava nota máxima aos jogadores de futebol americano enquanto lhe dessem o que ele queria.
Tanto faz quantas vezes as histórias são contadas: cada repetição é embaraçosa e incrível. Elas simplesmente não acabam.
Esta é uma das minhas: indo de ônibus para meu primeiro dia no colégio católico, colegas do segundo ano alertaram as novatas sobre o Padre Mott, que "gostava" de garotas adolescentes.
Anos depois a diocese entrou em acordo com algumas delas. Isto não me sai da cabeça. Se cada garota no ônibus sabia, como é que o bispo não sabia? E se o bispo sabia – e eu suspeito que ele tenha sabido – por que ele não tomou providência alguma?
Anos atrás mencionei isto para um religioso graúdo, da geração de Mott. “Oh, ho, ho,Jack Mott velho sacana", riu. Isto também não consigo esquecer.
Você também tem suas histórias. As memórias se juntam à goteira constante e enjoativa. Qual é a próxima? Outro caso da Holanda? Outro processo na Bélgica? Outra carta da Cúria, de trinta anos atrás, varrendo as coisas para debaixo do tapete?
Esses teólogos alemães e centenas de outros que se juntaram a eles têm um monte de itens em sua agenda de reforma. Alguns são fáceis. Outros, difíceis.
Tomemos um fácil: padres casados.
Um sacerdócio casado mais abrangente, não restrito a alguns clérigos anglicanos descontentes, seria um passo gigantesco no resgate da confiança de muitíssimos católicos que estão observando, esperando, torcendo por uma renovação substancial daquilo que rapidamente está se tornando uma Igreja moribunda.
Os detalhes são problema? Então comecemos ordenando homens casados que tenham ou possam conseguir empregos de tempo integral, como capelães militares ou de hospital, como docentes e professores, assistentes sociais e juristas do direito canônico. Desta forma nada muda – e tudo muda.
Não é tão difícil. Tudo se reduz a conseguir que a burocracia, e por extensão o grande número de padres celibatários malformados mundo afora, amadureçam.

Luke Tobin, Sênior em Loreto [Convent College], frequentemente comentava ter ouvido dois bispos voltando do cafezinho durante o Concílio Vaticano II, onde ela fora observadora.
"Ora, eles querem se casar?", dizia um conciliar ao outro, "Que deixem eles ter suas esposas a seu lado."
Isto precisa acabar. Enquanto o carro da Igreja segue corcoveando pela estrada, todos a bordo sofrem de enjôo com os buracos e a fumaça.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=40847

Religião, não; Cristianismo, sim


                                 


Um dos pesadelos do catolicismo romano é que são abundantes os crentes em Deus e em Jesus Cristo – Hans Küng, por exemplo – e que não obstante negam a Igreja como estrutura, hierarquia ou autoridade em matéria de costumes (moral). Contudo, a atitude eclesial oficial foi menos temerosa daqueles que negam a religião ou as religiões, mas afirmam os valores do cristianismo, e particularmente do catolicismo, como fundamentos do mundo moderno e contemporâneo.

A reportagem é de Javier Morán e está publicada no jornal espanhol La Nueva España, 20-02-2011. A tradução é do Cepat.
A escritora Oriana Fallaci morreu, em 2006, exaltando Bento XVI pelo que representava na defesa dos valores católicos europeus. A uma órbita similar, ainda que menos complacente com o Pontífice, pertence o filósofo italiano Gianni Vattimo, representante da pós-modernidade nos anos 1980, criador do conceito “pensamento fraco”, e há anos alinhado com o “ateísmo católico”, representado também na Espanha pelo filósofo Gustavo Bueno, ainda que com modulações próprias em seus trabalhosA fé do ateu ou Deus salve a razão.
Vattimo debate com o antropólogo francês René Girard no recente livro Verdade ou fé fraca? (Editorial Paidós), no qual o pensador italiano cita a célebre frase do teólogo protestante Dietrich Bonhoeffer: “Ele escrevia que um Deus que ‘existe’ não existe, porque Deus não é um objeto, nem sua existência pode ser artigo de fé”.
Vattimo acrescenta em outro ponto da obra que, portanto, “a missão ecumênica do Cristianismo” consiste em “se despojar das pretendidas declarações metafísicas, de definir a natureza humana, ou dizer como Deus é feito”. Este desafio de um Cristianismo sem metafísica é o que o teólogo espanhol José Ignacio González Fausdefine como a necessidade de “deshelenizar” a fé cristã, a qual desde muito cedo se fundiu com os conceitos da filosofia grega, graças a influências como a de Filão de Alexandria.
Contudo, essa fé helenizada e introduzida nas categorias racionais que foram a base do Ocidente é um dos processos mais louvados por Bento XVI, como mostrou no famoso discurso de Regensburg, em 2006: “Agir contra a razão está em contradição com a natureza de Deus”.
Não obstante, Vattimo aceita um papel contraditório da religião: “Me defino como cristão porque creio que o Cristianismo é mais verdadeiro que todas as outras religiões, precisamente porque em certo sentido não é uma religião”. Isso se explica porque “Jesus Cristo me libertou da crença em ídolos, nas divindades e nas leis naturais”.
O Critianismo como “religião que é a saída da religião” é uma ideia que funde suas raízes em Max Weber, recorda Pierpaolo Antonello na introdução ao livro deVattimo e Girard. “A secularização (e o laicismo) são substancialmente produtos do Cristianismo”, acrescenta, e o processo que o explica é que “a morte de Deus é encarnação, kenosis: um enfraquecimento de sua potência transcendental que nos levou historicamente à conseguinte desestruturação de todas as verdades ontológicas que caracterizaram a história e o pensamento humanos”.
Afora suas raízes filosóficas em Nietzsche (filósofo ao qual Vattimo dedicou grande parte de suas indagações), a “morte de Deus” se popularizou em 1965, quando a revista Time publicou uma capa com a pergunta “Deus está morto?” e a reportagem “Ateísmo cristão. O movimento ‘Deus está morto’”. A teologia protestante americana sobre a “morte de Deus” foi efêmera e sensacionalista, própria da cultura popular.
Contudo, Vattimo fez fortuna com colocações sobre a religião como esta: “Nenhuma prova natural de Deus, mas só caridade e certamente a ética”, o que matiza no citado livro com que “sempre digo que a ética é simplesmente a caridade, mais as leis de trânsito. Respeito as leis de trânsito porque não quero matar meu próximo, e porque devo amá-lo. Mas crer que passar no sinal vermelho seja algo não natural é ridículo”.
Este marco ético cristão do amor e da caridade leva, assim mesmo, Vattimo a rechaçar a regulação moral da Igreja católica em certas matérias. Em uma recenteentrevista publicada no El País, o pensador italiano se revolvia contra a “tradição repressiva e familiarista” da Igreja, que “tradicionalmente se baseou na repressão: fazemos um pouco de caridade ou um pouco de amor?”. Vattimo se perguntava, finalmente: “O Papa precisa pregar sobre o uso dos preservativos? Não”.
Salvo nessas partes, o filósofo da pós-modernidade compartilha o pressuposto de que “a democracia, o livre mercado, os direitos civis e a liberdade individual foram facilitados pela cultura cristã”, como destaca Antonello na citada introdução ao livroVerdade ou fé fraca?. Além disso, o que já não é pouco, Vattimo comenta: “Graças a Deus, sou ateu”.
Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=40842


18 de fevereiro de 2011

Matthew Fox - ''A bênção original''

''A bênção original''. Um livro polêmico. Entrevista com Matthew Fox
"Não um pecado original”, não uma humanidade caída, ferida e depois redimida por Jesus Cristo. Mas, um Deus criador panenteísta (presente em tudo e em todos). A morte como fato natural, parte do ciclo vital e não conseqüência do pecado de Adão. “A bênção originária” da criação prenuncia a Redenção. São as teses expressas no livro de Matthew Fox, intitulado precisamente Original Blessing (1) [Bênção original], que saiu nos EUA, em 2000 e agora é traduzido na Itália com o título In principio era la gioia [No princípio era a alegria]. Um texto no qual a tradição católica e apostólica se transmuda numa religiosidade sapiencial, feminista, ecológica, sensual, com forte veia vitalista e new age.
A entrevista é de Maria Antonietta Calabrò e publicada pelo jornal Corriere della Sera, 17-02-2011. A tradução é de Benno Dischenger.
Eis a entrevista.
Matthew Fox, o então cardeal Ratzinger “condenou” o seu livro como “perigoso e conduzindo em erro”. Qual tem sido sua reação à eleição a Papa de um “discípulo” de Agostinho, que o senhor acusa de estar na raiz da teologia negativa e pessimista do pecado?
Minha reação tem sido a de ir a Wittenberg, na Alemanha, durante o tempo de Pentecostes e afixar 95 teses na mesma porta onde Martinho Lutero havia afixado as suas. Pareceu-me particularmente apropriado porque Ratzinger foi o primeiro papa alemão em centenas de anos, mas principalmente por fazer ressaltar a profunda necessidade de uma reforma da Igreja em nossos dias. Penso que minhas 95 teses indiquem a direção apropriada para a qual devamos mover-nos. Os eventos que aconteceram depois que ele foi feito Papa, incluindo o tsunami de revelações sobe a pedofilia dos padres e sobre a cobertura do escândalo da parte da Congregação para a doutrina da fé que ele guiava, indicam que minhas ações eram justificadas”.
O grande convertido inglês Chesterton exprime conceitos muito semelhantes aos de “Original Blessing”. Mas, sustenta que a Igreja católica é o único “lugar onde todas as verdades se encontram”. Por que o senhor não está de acordo?
Chesterton era, de muitos modos, um celebrante da teologia da “bênção originária” ou da beleza e bondade originárias Em seu livro sobre Tomás de Aquino (que li como garoto e influenciou o meu desejo de me tornar frade dominicano) ele fala do “velho puritanismo agostiniano” e do pessimismo que o Aquinate combateu tão fortemente. Quanto à eclesiologia de Chesterton, o nosso conhecimento do mundo cresceu desde o início do século vinte, quando ele escrevia. E aprendemos do Concílio Vaticano II que o Espírito Santo trabalha através de todas as tradições. E que a Igreja institucional é semper reformanda. Chesterton escreveu que o diabo se encontra tanto na Igreja como no mundo”.
O Credo codificado em 325 no Concílio de Nicéia afirma: “Confesso um só batismo para o perdão dos pecados.
Este Credo fala da remissão dos pecados (no plural) e não da remissão de um só (o pecado original). O batismo dos adultos “re-limpava” as pessoas dos pecados do passado e os acolhia na nova vida em Cristo. O batismo dos neonatos os acolhe na comunidade dos fiéis no mundo e na plenitude de vida com Cristo. Opostamente à falsa caracterização feita por Ratzinger do meu livro, eu não nego o pecado original. Eu contesto o que nós entendemos com isto. A palavra “pecado” é muito problemática e não aparece em nenhuma parte na consciência hebraica (isto é, a de Jesus). Não é uma palavra bíblica.
O papa Wojtyla está para ser declarado beato: sua abordagem não era positiva, criativa, numa palavra, como diria ele, bendizente?
Há sérios questionamentos sobre esta beatificação. A começar pelo fato que defendeu a canonização de um homem violento como Escrivá, o fundador do Opus Dei.
E as multidões que o seguiram?
Não creio que o culto do papado ou grandes multidões falem necessariamente de renovação da Igreja. A papolatria não é uma virtude. Alguns escritos de João Paulo II são admiráveis, mas creio que a história mostrará que ele desenraizou a Teologia da Libertação e as comunidades de base na América Latina. Sem contar sua completa indiferença para com a coragem e a santidade de leigos e membros do clero, centenas dos quais foram torturados e assassinados na mesma América Latina para defender os pobres e proclamar a Boa Nova da Justiça de um modo concreto (Oscar Romero era apenas uma destas pessoas santas). Os encargos assinalados a uma hierarquia de extrema direita (frequentemente do Opus Dei); a recusa de honrar o princípio de colegialidade fixado pelo Concílio Vaticano II; o apoio ao padre Maciel, fundador da Legião de Cristo, mesmo depois que as revelações sobre sua pedofilia tinham sido tornadas públicas; o diminuir as mulheres, a recusa até de tomar em consideração o clero casado ou as mulheres padres, também quando os sacramentos são denegados a muitos pela falta de sacerdotes; o apoio a movimentos fanáticos de leigos que na realidade não são leigos, como Comunhão e Libertação, o Opus Dei e a Legião de Cristo; as denúncias profundamente homofóbicas; a restauração da Inquisição contrária ao ensinamento e ao espírito do Vaticano II: tudo isso não me faz exprimir admiração.
O senhor deixou a ordem dominicana durante o papado de Wojtyla...
Eu não deixei a Ordem dominicana, fui expulso. Lutei 12 anos para permanecer e tive o apoio de muitos dominicanos, sobretudo na Holanda. O Concílio Vaticano II era focalizado para a renovação da Igreja, mas a grande parte das declarações sobre isso foi negada durante os papados de Wojtyla e Ratzinger. Este é o motivo pelo qual muitos pensadores de Igreja que conhecem um pouco de história retêm que o atual pontificado e o precedente sejam cismáticos”.
Cismáticos?
Um papa e sua cúria (não importa quantas dezenas tenham sido feitas cardeais e quantos estejam ocupados em canonizar-se um ao outro) não superam um Concílio. No grande cisma do século XIV, no qual três pessoas reclamavam contemporaneamente o papado, foi o Concílio de Constança que destituiu todos os três papas e elegeu um novo. Penso que seja a época de um catolicismo pós-Vaticano, uma verdadeira cristandade católica. Talvez a Cidade do Vaticano tenha algo a aprender do Cairo. Seria preciso derrubar do trono os ditadores e repelir um sistema corrupto, tão distante dos ensinamentos do Evangelho. Penso que o próprio Jesus poderia novamente derrubar as mesas dos mercadores no templo, se ele viesse ao cenário eclesial corrente.
Transmite-se que no fim da vida Santo Tomás tenha dito: “Tudo o que escrevi é palha”. O senhor que é autor de best-seller; subscreveria esta frase?
Como ávido leitor do Aquinate, estou feliz que seus trabalhos tenham sido salvos e que não tenham tido o fim da palha. Sua experiência mística, em cuja perspectiva havia visto todo o seu trabalho “como palha” em comparação com a luz de Deus, é uma experiência profunda sobre a qual devemos meditar. Todos os nossos esforços no mundo do trabalho, da vida familiar e da nossa cidadania parecem palha no grande esquema da história. Isto não significa que nós não estejamos aqui para trabalhar duro, divertir-nos e amar generosamente. Isto significa somente que somos meros instrumentos de um drama de 13,7 bilhões de anos que chamamos universo. Mas, não era da evolução cósmica que falava Tomás...
Nota da IHU On-Line:
1.- O título completo do original do livro é: Original Blessing: A Primer in Creation Spirituality Presented in Four Paths, Twenty-Six Themes, and Two Questions.

João Batista Libânio - Igreja mergulha em longo processo neoconservador. Entrevista especial com João Batista Libânio

João Batista Libânio


Recentemente, teólogos e teólogas alemães, suíços e austríacos, lançaram um manifesto propondo reformas para a Igreja em 2011. A convite da IHU On-Line, o teólogo João Batista Libânioleu o documento e analisou as propostas, concedendo por e-mail a entrevista a seguir. Resumindo, ele é enfático: “A tônica do projeto do Papa e a do manifesto divergem”.

Com a experiência de quem presenciou “nítidos momentos no processo eclesiástico” da Igreja nas últimas décadas, Libanio ressalta que o manifesto “alude ao fato de que em 2010 ‘tantos cristãos, o que jamais ocorrera antes, deixaram a Igreja e apresentaram à autoridade da Igreja a desistência de sua pertença ou privatizaram sua vida de fé para defendê-la da instituição’”. A constatação do êxodo cristão, entretanto, “não abala a convicção do projeto de manter uma Igreja, embora minoritária, mas fiel aos ensinamentos dogmáticos, morais e à prática disciplinar eclesiástica”, assinala.
Para ele, Roma reforça a autoridade sobre as igrejas locais porque elas a solicitam. “A geração profética do porte de Dom Helder deixou-nos ou já está envelhecida. E a nova safra eclesiástica revela outro corte”, lamenta.
Libânio também comenta a nomeação de bispos brasileiros para integrarem a Cúria Romana e diz que as atuais nomeações “respondem ao atual perfil de Roma. (...) Isso não vem de nenhum prestígio especial do episcopado brasileiro, como tal, além do peso estatístico”.
João Batista Libânio é padre jesuíta, escritor e teólogo. É doutor em Teologia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) de Roma. Atualmente, leciona na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e é Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais. É autor de inúmeros livros, dentre os quais Teologia da revelação a partir da Modernidade(5. ed. Rio de Janeiro: Loyola, 2005), Qual o caminho entre o crer e o amar? (2. ed. São Paulo: Paulus, 2005) e Qual o futuro do Cristianismo? (2. ed. São Paulo: Paulus, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line Qual sua reação ao manifesto que propõe reformas para a Igreja em 2011, elaborado por teólogos alemães, suíços e austríacos?
João Batista Libânio Impressiona, logo à primeira vista, o conjunto de assinaturas de teólogos da mais alta competência e responsabilidade. Portanto, não subscreveriam nenhummanifesto superficial, imprudente. Concordemos ou não com as proposições, ele merece séria consideração e detida atenção.
Parte do inegável mal-estar que afetou não só a Igreja Católica alemã e de alguns países por causa do escândalo da pedofilia, mas de toda a Igreja por ver-se nele a ponta de um iceberg de maior amplitude: a falta de liberdade e de transparência no interior da Igreja devido ao cerceamento das instâncias de poder eclesiástico. Por isso, o manifesto bate forte na tecla das estruturas de governo da Igreja Católica.
IHU On-Line A partir da sua trajetória sacerdotal, o senhor também concorda que a Igreja precisa ser reformada? Quais seriam as reformas urgentes?
João Batista Libânio Os anos me permitem perceber três nítidos momentos no processo eclesiástico das últimas décadas. Ainda conheci estruturas hieráticas no pontificado de Pio XII, que lançava a imagem do poder eclesiástico onisciente e onipotente. Roma pronunciava-se sobre os mais diversos assuntos e com a consciência de dizer verdades inquestionáveis. Não se percebia sinal de dúvida ou perplexidade. Isso acontecia com duplo efeito. Positivamente, oferecia aos católicos fieis enorme segurança sobre temas desde a astronomia até a intimidade da vida conjugal. Para aqueles que já tinham recebido o impacto da modernidade liberal, democrática, marcada pela subjetividade, autonomia das pessoas, consciência história, práxis transformadora, tais declarações romanas produziam enormes dificuldades e mal-estar.
Veio então João XXIII. Convoca o Concílio Vaticano II que inicia, com certa coragem, o diálogo da Igreja com a modernidade. Usando a imagem da música “andante ma non troppo”, a Igreja caminha em direção ao repensamento doutrinal e pastoral, provocado pelos questionamentos teóricos e práticos levantados nos últimos séculos. No entanto, o tempo deaggiornamento não durou muito. Já no próprio Pontificado de Paulo VI, a partir de 1968, despontam sinais de contenção e retrocesso. E depois a Igreja Católica mergulha em longo processo neoconservador que dura até hoje. As inovações iniciadas no Vaticano II se interromperam e outras não surgiram, exceto em um ou outro gesto ousado de João Paulo II, como a Oração pela Paz em Assis com os líderes das diferentes religiões do mundo. Ainda que o clima geral não fala de abertura, entretanto percebe-se-lhe a necessidade.
IHU On-Line O manifesto também propõe uma reconversão da Igreja. O que o senhor entende por esta proposta?
João Batista Libânio A Igreja tem a enorme graça de pôr como referência última, principal, insuperável a pessoa de Jesus Cristo. E quanto mais se conhece o Jesus histórico, mais se percebe a força revolucionária de sua pessoa. Ele não deixa nenhuma estrutura esclerosar-se, sem que lhe seja acicate de mudança. Menciono de passagem o maravilhoso livro de J. Pagola,Jesus: aproximação histórica (Petrópolis: Vozes, 2010), que nos descreve e narra um Jesus colado à realidade no projeto maior de devolver às pessoas a dignidade.
Diante dessa figura de Jesus, muitas estruturas eclesiásticas sofrem terrível crítica. A partir dele, cabe falar de contínua reconversão da Igreja. Basta comparar a figura de Jesus andarilho, dePedro pescador e crucificado em Roma com certas aparências poderosas clericais para ver a gigantesca distância e a força crítica de Jesus. Santo Inácio de Loyola apostava na força de conversão da contemplação dos mistérios de Jesus. Isso vale em nível pessoal, comunitário e eclesiástico. Em confronto com a pessoa de Jesus, a Igreja se vê questionada continuamente a assumir formas de humildade, simplicidade, pobreza, abandonando o luxo, o esplendor, a arrogância triunfante.
IHU On-Line O manifesto diz ainda que somente através de uma comunicação aberta a Igreja pode reconquistar confiança. Em que consistiria uma comunicação aberta com a sociedade?
João Batista Libânio Só existe comunicação aberta se se abrem canais de entrada e saída. De entrada nos recônditos dos segredos, nas manipulações e jogadas maquiavélicas, nas tramas urdidas na noite do anonimato. Existe limite difícil de ser traçado do direito ao sigilo de consciência, de reputação das pessoas e comunicação transparente. Portanto, não se trata de questão fácil. Entre os extremos da cultura Big Brother da total e perversa transparência e dos sigilos cabalísticos de verdades a que os fiéis têm direito de conhecer, existe um meio termo de clareza e de possibilidade de acesso. O canal de saída refere-se à liberdade de expressão das pessoas no interior da Igreja a respeito da vida da Igreja. No embate da discussão encontram-se melhores caminhos que na proibição da mesma.
IHU On-Line É possível a Igreja romper com tradições, se renovar sem perder seus princípios básicos?
João Batista Libânio Não se trata nem de romper nem de engessar a Tradição, ou mais corretamente as tradições. Na polêmica com Mgr. Lefebvre, que defendia a literalidade da Tradição e das tradições, Paulo VI insistia na necessidade de interpretá-la (s). Eis a questão! Os princípios permanecem no nível universal, abstrato. Importa ver como eles são entendidos nas situações concretas. E aí está o problema. O trabalho interpretativo tem exigências. Implica esforço da inteligência de captar três coisas. O significado da questão no contexto primeiro em que ela foi formulada e respondida. Esta mesma questão como se entende hoje. E, então, como o significado de ontem se reinterpreta para hoje. Por exemplo, a usura, cobrar mais do que se emprestava, até o nascimento do capitalismo se considerava roubo, portanto eticamente condenável. Hoje, ela se chama juros e ninguém os considera imorais. Então, como se fez a transposição de um princípio ético no pré-capitalismo para o capitalismo?
Numa economia estável sem circulação monetária parecia injusto receber mais do que se emprestava. Nisso consistia a injustiça. Numa sociedade em que o dinheiro se tornou fonte de renda, se considera injustiça só quando as taxas de juros superam de muito a força de rentabilidade. Recebe o nome de agiotagem. Mas cobrar taxas razoáveis não contradiz o princípio ético pré-capitalista no significado, embora materialmente pareça opor-se a ele (usura). Problemas semelhantes se levantam em muitos campos.
IHU On-Line O documento também chama a atenção para a necessidade de reconhecer a liberdade de consciência individual, referindo-se também a opção sexual dos indivíduos. Entretanto, observa que “a alta consideração da Igreja pelo matrimônio e pela força de vida sem matrimônio está fora de discussão”. Parece algo contraditório?
João Batista Libânio A consideração anterior que fiz no campo das finanças vale no campo da sexualidade. Os ensinamentos morais da Igreja sobre o matrimônio permanecem válidos na linha dos princípios. E cabe perguntar-nos pelo seu significado profundo que diz respeito à dignidade humana, ao respeito das relações afetivas. Que significam o respeito e a dignidade nas relações humanas na união homoafetiva? Não se responde em abstrato, mas a partir das experiências que se fazem no concreto da vida. Tanto nas relações matrimoniais como nas homoafetivas existem tanto dignidade, respeito como o oposto. E as considerações éticas descem ao concreto de tais relações para aí interpretar o princípio fundamental da dignidade humana, do respeito entre as pessoas, o projeto de amor de Deus.

IHU On-Line O que significam os casos de pedofilia na Igreja?
João Batista Libânio Revelam a face pecadora dos homens e mulheres de Igreja em todos os níveis: do simples fiel até pessoas da alta hierarquia. Em face do pecado, cabem, em primeiro lugar, a conversão e o perdão de Deus. Quando o direito de outras pessoas é lesado, como no caso da pedofilia que fere gravemente a criança envolvida, entram fatores de reparação desde a econômica até a judicial. Nada justifica o ocultamento, mas importa tomar as medidas concretas para evitar outros casos, sanear o acontecido, reparar o estrago feito.
Evidentemente, não tem sentido entrar no sensacionalismo da mídia. Está em jogo algo sério demais para ser simplesmente assunto de folha policial em ocasião para jogar pedras na Igreja. Não se pensa em acabar com a família, embora nela aconteça a imensa maioria dos casos de pedofilia. A mesma mídia que divulga, “escandalizada” casos de pedofilia, termina sendo uma das causas importantes da decadência moral da sociedade com a enxurrada de programas de banalização do amor, de sexualização das crianças, de exibicionismo e voyeurismo sexual, da perda de senso de responsabilidade social. A luta contra a pedofilia exige programa complexo de purificação das fantasias, de presença maior de educação sadia, de melhoria de cultura veiculada pela mídia.
IHU On-Line Quais são as perspectivas e os desafios da Igreja para esta segunda década do século XXI?
João Batista Libânio Distingamos os níveis. No momento, em nível das estruturas internas da Igreja não se veem perspectivas animadoras. Durante o longo pontificado de João Paulo II, a Igreja Católica viveu o paradoxo, de um lado, de rasgos de abertura na prática do diálogo inter-religioso, na defesa dos direitos humanos, na oposição a toda guerra enfrentando, inclusive, as pretensões americanas, na proximidade com o mundo dos pobres e, de outro, de enrijecimento doutrinal e disciplinar interno. No horizonte, não se percebe que a Igreja enfrentará os novos desafios da cultura contemporânea por meio de mudanças internas, como fez, em parte, logo depois do Concílio Vaticano II. Falta o clima de abertura, de otimismo e de profetismo para lançar-se em transformações profundas. Em termo de hierarquia, reina antes momento de silêncio, de prudência sem muita inspiração e lanço de coragem inovadora. A geração profética do porte de Dom Helder deixou-nos ou já está envelhecida. E a nova safra eclesiástica revela outro corte.
No universo dos leigos há sinais de esperança nas comunidades de base, na crescente participação consciente e ativa das mulheres, no maior desejo de espiritualidade e teologia, na vitalidade de novos ministérios, na criatividade litúrgica, no acesso amplo às Escrituras pela via da leitura orante. Em algumas igrejas particulares a Assembleia do povo de Deus anuncia algo de novo, desde que a clericalização não a prejudique.
IHU On-Line O senhor concorda com a tese de que o Vaticano está enquadrando a Igreja no Brasil?
João Batista Libânio Cícero chamou a história “mestra da vida”. Lancemos um olhar para os últimos séculos a fim de entender a relação entre o Vaticano e as igrejas locais. Gregório VII, no século XI, deu a decisiva guinada da autonomia das igrejas locais para crescente poder de Roma. Ele pautou o governo pontifício pelo dictatus papae, que ressuda centralismo, autoritarismo desmedido. Esse longo processo de quase mil anos marcou uma linha de comportamento em que Roma exerce imensa influência sobre as Igrejas particulares ou regionais. O Concílio Vaticano II, com a colegialidade, tentou diminuir tal tendência, mas com pouco resultado. Faz parte, portanto, da consciência comum eclesiástica a dependência em relação a Roma. E a dialética de dependência de uma parte pede o exercício de domínio da outra.
A criança que pergunta a mãe que meia vai usar pede uma mãe cada vez mais absorvente que termina ditando-lhe tudo. Assim na Igreja. Roma responde com autoridade e a reforça porque as próprias igrejas locais a solicitam e ficam à espera. A liberdade se entende como relação entre duas liberdades. Não há liberdade de um lado só. Que o diga Erich Fromm no magistral livroMedo da liberdade. As análises que lá faz, baseadas em sua experiência do nazismo, valem para toda relação de submissão e de autoritarismo, onde ela se dê. No dia, porém, em que as igrejas locais tomarem maior consciência de outra eclesiologia, então a Igreja de Roma também lentamente afinar-se-á com ela. O processo se institui de ambas as partes simultaneamente em mútua relação e influência.
Quanto mais a Igreja do Brasil marcar a originalidade, a liberdade, a autonomia, tanto mais Roma a reconhecerá. Se ela, porém, está a esperar para cada palavra que disser um sorriso aprobatório de Roma, a liberdade se encurtará e a autonomia se dissolverá. Quem age sob o olhar de um outro, termina condicionando-se de tal modo que perde a própria identidade.
IHU On-Line Como avalia a notícia de três nomeações de bispos brasileiros para ocupar cargos importantes na Cúria Romana? O que isto significa? Terá algum impacto na CNBB?
João Batista Libânio A nomeação dos membros da Cúria Romana obedece ao difícil jogo de interesses e preocupações. Não creio que o caráter nacional, no caso, o fato de ser brasileiro, seja predominante. Entram em questão outros critérios de linha teológica, ideológica, de indicações de pessoas influentes, de vinculação a movimentos de igreja, de serviço prestado. Em termos modernos, falamos de “perfil”. As firmas, as instituições contratam ou dispensam funcionários dando como razão o fato de corresponderem ou não ao seu perfil. Analogamemte vale no caso da Igreja. Julgo que os bispos brasileiros escolhidos para cargos romanos respondem ao atual perfil de Roma. Coincide que vários brasileiros corresponderam a tal retrato e então foram escolhidos. Isso não vem de nenhum prestígio especial do episcopado brasileiro, como tal, além do peso estatístico.
IHU On-Line Como vê a atual internacionalização da Cúria Romana? Como propõe o manifesto, a sociedade deveria ajudar a escolher os representantes?
João Batista Libânio A internacionalização traz vantagens. Mas não decide por si mesma. Acontece que a cor internacional desaparece facilmente por homogeneização ideológica por força da instituição. Se cada nação levasse para dentro da Cúria Romana a própria originalidade e a conservasse em contínuo diálogo com a predominante cultura europeia e romana, então a internacionalização causaria outro efeito.
Bispos latino-americanos, africanos ou asiáticos que arribam a Roma se romanizam a ponto de não se distinguir muito dos outros. Outra coisa significaria se as igrejas locais se fizessem presentes em Roma por meio de seus representantes, escolhendo-os e eles fazendo-se porta-voz delas. Mais: se elas mesmas decidissem na escolha dos ministros que as servem ou vetassem aqueles que não as satisfizessem. Assim evitaríamos casos desastrosos que tivemos de bispos, párocos ou pessoas em outras funções que durante décadas exerceram funções com detrimento da vida eclesial em vez de construí-la e os fieis tiveram de suportá-los calados e sem poder de mudança. Certos aspectos da sociedade democrática não contradizem, teologalmente falando, a maneira de designar membros da hierarquia. A escolha pode ser democrática, embora a conferição se faça pela graça do sacramento.
IHU On-Line O que significa, para a Igreja brasileira, a nomeação de Dom Odilo Scherer no Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização?
João Batista Libânio Como disse acima, os critérios de escolha das pessoas respondem antes ao perfil buscado pelo Vaticano para determinada função e ao peso de influências indicativas que à origem nacional. E o perfil se define pela combinação do histórico do bispo em questão e as conveniências da Instituição. Para alguém que está fora desse jogo fica muito difícil fazer juízo objetivo sobre as indicações. No início de cada governo no mundo da política, assistimos ao delicado jogo da escolha das pessoas para os cargos. Nem todos os indicados e escolhidos respondem ao desejo do presidente ou do papa, no caso da Igreja, mas entram na lista para cumprir uma série de acordos necessários para o governo. A política eclesiástica não escapa totalmente dessa regra.
IHU On-Line Está em curso a consolidação do programa ratzingeriano para a Igreja do Brasil?
João Batista Libânio Teríamos que conhecer de antemão o programa do Papa. Os papas, em geral, não fazem discursos programáticos, mas dogmáticos. E supõe-se arguta análise para perceber sob as afirmações doutrinais que tipo de prática de governo subjaz. Aventuraria dizer que Bento XVI atribui relevância especial à qualidade da pertença à Igreja e não se impressiona tanto com a diminuição estatística. O manifesto dos teólogos alude ao fato de que em 2010 “tantos cristãos, o que jamais ocorrera antes, deixaram a Igreja e apresentaram à autoridade da Igreja a desistência de sua pertença ou privatizaram sua vida de fé para defendê-la da instituição”. Enquanto percebo, tal constatação não abala a convicção do projeto de manter uma Igreja, embora minoritária, mas fiel aos ensinamentos dogmáticos, morais e à prática disciplinar eclesiástica.
No projeto de Igreja em curso, a fidelidade, a exatidão doutrinal e a coerência prática disciplinar merecem relevo preponderante mesmo que à custa de êxodo de católicos.
O manifesto pondera a questão do isolamento da Igreja em relação à sociedade. Tal fato, porém, não se entende na percepção pontifícia de modo negativo, enquanto fechamento, mas como exigência de coerência com a própria mensagem a despeito da incompreensão por parte da mentalidade moderna.
Outra coisa, como parece supor o manifesto, tal aspecto implicaria incongruência com o projeto salvífico de Jesus. A questão teológica se desloca. Até onde tal programa eclesiástico afasta-se do reino anunciado por Jesus? Acusação grave que precisa ser bem pensada e discutida de ambos os lados. A tônica do projeto do Papa e a do manifesto são divergentes. No primeiro caso, volta-se para a Igreja e quer mantê-la na sua atual estrutura e, a partir daí, cumprir melhor sua função. No outro, propõe-se o projeto de Jesus e se pergunta como adequar as estruturas da Igreja a ele. Pontos divergentes que geram leituras diferenciadas. Só o diálogo mostra o limite e a positividade de cada perspectiva. O manifesto acentua: primeiro a liberdade individual e de consciência e a partir dela a fidelidade. A atual disciplina eclesiástica: primeiro a fidelidade à doutrina e à prática e aí dentro a liberdade.
O mesmo vale de outros pontos acentuados pelo manifesto: participação dos fiéis, comunidade de partilha, reconciliação dos pecadores e celebração ativa, enquanto o projeto eclesiástico em curso entende tais demandas a partir dos quadros jurídicos traçados para a participação, para a vida de comunidade, para a reconciliação e celebração e não à sua revelia ou à exigência da sua mudança. Nessa tensão consiste, segundo minha leitura, a divergência maior entre o manifesto e o que está em curso atualmente no seio da Igreja Católica.

15 de fevereiro de 2011

O cântico da terra

Cora Coralina

Eu sou a terra, eu sou a vida.

Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.
Eu sou a fonte original de toda vida.
Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.
A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de teu gado
e certeza tranqüila ao teu esforço.
Sou a razão de tua vida.
De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da lida.
Só em mim acharás descanso e Paz.
Eu sou a grande Mãe Universal.
Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.
A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.
Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.
E um dia bem distante
a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu seio
tranqüilo dormirás.
Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.

12 de fevereiro de 2011

Uma mensagem de Jean Yves Leloup

A linguagem do poeta, a linguagem da arte, é , talvez uma das linguagens que poderia ser utilizada para ousarmos falar a respeito de Deus porque trata-se de uma linguagem que não nos confina, não conceitualiza,, não distribui rótulos, mas nos deixa livres e nos convida a fazer uma experiência, a empreender uma transformação.

A imagem que me ocorre, é a de alguém que escava em busca de uma nascente que jorra; não basta falar de nascente, não basta falar de água, é também necessário escavar seu poço, avançar em direção à água viva que está no fundo, assim como em direção à água viva que jorra. Não basta escavar para que apareça a água viva , mas o fato de escavar irá permitir que reencontre a água viva que jorre. Além de nossa tentativa, de nossa busca em direção às profundezas, temos que reconhecer que não é o fato de escavarmos, não são nossas enxadas que irão criar a água. Do mesmo modo que não é o despertador que fará o dia nascer... No entanto, convém tomarmos consciência de que o dia está aí!

Trata-se de despertarmos, de escavarmos, de avançarmos em direção à nascente e de sabermos que essa não é nossa propriedade: ela jorra, ela nos é oferecida. Nesse momento surge a palavra graça. independentemente de seguirmos uma via zen ou de ioga, o autêntico mestre ou discípulo sabe perfeitamente que não é esse exercício que irá provocar a iluminação. O exercício, a meditação, o método, todas as técnicas utilizadas tornam-se somente disponíveis à experiência.

Aqui identificamo-nos com a tradição antiga dos Padres do deserto que dizia: “Existe o trabalho do homem, a ascese, a liberdade do homem, e , ao mesmo tempo, a graça.“ E´como um pássaro que para voar, tem necessidade de duas asas, ou seja, de sua liberdade, de seu trabalho, interior e, ao mesmo tempo, da graça, isto é, da nascente que jorra em direção ao seu esforço, ao ato de escavar. Por um lado, o trabalho do homem procura Deus; por outro, como uma fonte de água viva, Deus empe

9 de fevereiro de 2011

A escandalosa tolerância de Jesus


Muitas vezes sou surpreendido por comentários e criticas às minhas mensagens e a artigos que publico em meu blog. Já fui chamado de Herege, relativista, comunista, ateu e um sem numero de “elogios”.
Há tempos atrás isso me incomodava muito, hoje a graça deste nosso Deus colocou no mei caminho alguns teólogos e pensadores cristãos que aumentaram a minha segurança e me deram a certeza de que na maioria das vezes essas criticas partem de verdadeiros “ Catolibãns” mais empenhados em se tornar membros da promotoria no Juízo final, como se isso lhes ssegurasse um lugar cativo no céu.
O texto abaixo, de um destes teólogos que admiro, o espanhol José Maria Catillo é para mim um alento, por defender os mesmos pontos de vista e relatar que também ele recebe em seu blog varias agressões infundadas.
Espero que apreciem esse texto que o IHU publicou hoje.
A escandalosa tolerância de Jesus

“Se nos atemos ao que contam os Evangelhos, nos surpreendemos com o fato de que Jesus foi escandalosamente tolerante com pessoas e grupos com os quais nenhum homem, reconhecido como observante e exemplar do ponto de vista religioso, podia ser tolerante. Ao mesmo tempo em que se mostrou extremamente crítico com aqueles que se viam a si mesmos como os mais fiéis e os mais exatos em sua religiosidade”, escreve José María Castillo, teólogo espanhol, em seu blog Teología sin Censura, 06-02-2011. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.
Se nos atemos ao que contam os Evangelhos, nos surpreendemos com o fato de que Jesus foi escandalosamente tolerante com pessoas e grupos com os quais nenhum homem, reconhecido como observante e exemplar do ponto de vista religioso, podia ser tolerante. Ao mesmo tempo em que se mostrou extremamente crítico com aqueles que se viam a si mesmos como os mais fiéis e os mais exatos em sua religiosidade. Jesus foi tolerante com os publicamos e pecadores, com as mulheres e com os samaritanos, com os estrangeiros, com os endemoniados, com as multidões dos gentios (óchlos), uma palavra dura que designava a “plebe que não conhecia a Lei e era maldita”, no juízo dos sumos sacerdotes e dos fariseus observantes (Jo 7, 49; cf. 7, 45).
E é curioso, mas essa gente é a que aparece constantemente acompanhando a Jesus, escutando-o, buscando-o... Os relatos dos Evangelhos são eloquentes neste ponto concreto e repetem muitas vezes que o “gentio”, a “multidão”... buscava a Jesus, que a ouvia, a que estava perto dele. E aquela mistura de Jesus com os “gentios” chegou a ser tão angustiosa, que até a família de Jesus chegou a pensar que ele havia perdido a cabeça (Mc 3, 21). Jesus compartilhava mesa e toalha com os pecadores, o que dava pé a murmurações por causa de semelhante conduta (Lc 15, 1s).
Jesus sempre defendeu as mulheres, por mais que fossem mulheres pouco exemplares. Até chegar a dizer que os publicanos e as prostitutas entravam antes que os sumos sacerdotes no Reino de Deus (Mt 21, 31). Jesus defendeu uma famosa prostituta em casa de um conhecido fariseu (Lc 7, 36-50). Como defendeu o banho de perfume que Maria vez na ceia de homenagem que fizeram a Jesus (Jo 12, 1-8). Sabemos que, quando ia de povoado em povoado pela Galileia, o acompanhavam não apenas os discípulos e apóstolos, mas também muitas mulheres, entre elas a Madalena, da qual havia expulsado sete demônios (Lc 8, 1-3). Jesus sempre se colocou do lado dos cismáticos e desprezados samaritanos, até colocar como exemplo de humanidade um deles, frente à dureza de coração do sacerdote (Lc 10, 30-35).
Com isso, há elementos suficientes para se ter uma ideia do “escandaloso” que devia ter sido a tolerância de Jesus. Ser tolerante com os que vivem e pensam como cada um vive e pensa, isso não é senão senso comum. O problema está em saber com o que temos que ser tolerantes. E que coisas não se deve tolerar. Evidentemente, tocamos um tema extremamente difícil de precisar e delimitar com exatidão. Por isso, entendo que haja pessoas que entram no blog e expressam seus desacordos com o que eu escrevo. Entendo-os perfeitamente. E me parece que é bom que todo aquele que entrar neste blog se sinta com liberdade para dizer o que pensa, contanto que isso seja feito com argumentos e razões, nunca agredindo ou humilhando a quem não se ajusta com os meus pontos de vista. Mas com isso não tocamos no fundo do problema.
Eu creio que tudo depende daquilo que para cada um é “intocável”. Dado que estamos em um blog de teologia, a questão que, no meu modo de ver, teria que ser enfrentada é a seguinte: do ponto de vista do Evangelho, “o intocável” é “o religioso” ou é “o humano”? Penso que é fundamental, para um crente em Jesus Cristo, ter bem colocada e bem resolvida esta pergunta. Sabemos de sobra que, por salvaguardar os direitos da religião, às vezes, não se respeitam os direitos humanos. Por defender um dogma, se queimou o herege. Como por assegurar um critério moral, se meteu na prisão o homossexual ou se apedreja uma adúltera. É sintomático que os enfrentamentos, que, segundo os Evangelhos, Jesus teve e manteve, foram com pessoas muito religiosas, ao mesmo tempo que se deu bem com os grupos humanos que a religião depreciava ou perseguia. É evidente que, para Jesus, sua relação com o Pai do Céu era a questão central. Mas o que acontece é que Jesus entendia o Pai do Céu de forma que esse Pai não fazia diferenças. E por isso é o Pai que faz brilhar o sol sobre bons e maus; e manda a chuva sobre justos e pecadores (Mt 5, 45). Porque é humano necessitar do sol e necessitar da chuva. Coisas que, pelo visto e a juízo de Jesus, são mais que intocáveis que a “bondade” de uns ou a “maldade” de outros.
Que tudo isto entranha seus perigos? Sem dúvida alguma. Mas, pelo menos, me parece que é muito mais perigoso dividir-nos e enfrentar-nos por motivos religiosos, de forma que tais motivos justifiquem as mil intolerâncias que tornam a vida tão desagradável e até pode ser que cheguem a torná-la simplesmente insuportável. Isso prejudica a todos. E, além disso, faz mal – e muito – à religião. Por que, então a religião se tornou tão odiosa para não poucas pessoas, muitas das quais sabemos que são pessoas honradas? As religiões terão que pensar este assunto. E terão que fazê-lo urgentemente e com toda honestidade, se é que não querem ser atropeladas pela história ou abandonadas nas valetas dos muitos caminhos deste mundo.

8 de fevereiro de 2011

Novas utopias: Polêmica a vista


Recentemente foi lançado no mercado cultural um livro mediúnico trazendo as reflexões de um padre depois da morte, atribuído, justamente, ao Espírito Dom Helder Camara, bispo católico, arcebispo emérito de Olinda e Recife, desencarnado no dia 28 de agosto de 1999, em Recife (PE).

O livro psicografado pelo médium Carlos Pereira, da Sociedade Espírita Ermance Dufaux, de Belo Horizonte, causou muita surpresa no meio espírita e grande polêmica entre os católicos. O que causou mais espanto entre todos foi a participação de Marcelo Barros, monge beneditino e teólogo, que durante nove anos foi secretário de Dom Helder Câmara, para a relação ecumênica com as igrejas cristãs e as outras religiões.
Marcelo Barros secretariou Dom Helder Câmara no período de 1966 a 1975 e tem 30 livros publicados. Ao prefaciar o livro Novas Utopias, do espírito Dom Helder, reconhecendo a autenticidade do comunicante, pela originalidade de suas idéias e, também, pela linguagem, é como se a Igreja Católica viesse a público reconhecer o erro no qual incorreu muitas vezes, ao negar a veracidade do fenômeno da comunicação entre vivos e mortos, e desse ao livro de Carlos Pereira, toda a fé necessária como o Imprimátur do Vaticano.
É importante destacar, ainda, que os direitos autorais do livro foram divididos em partes iguais, na doação feita pelo médium, à Sociedade Espírita Ermance Dufaux e ao Instituto Dom Helder Câmara, de Recife, o que, aliás, foi aceito pela instituição católica, sem qualquer constrangimento.
No prefácio do livro aparece também o aval do filósofo e teólogo Inácio Strieder e a opinião favorável da historiadora e pesquisadora Jordana Gonçalves Leão, ambos ligados à Igreja Católica. Conforme eles mesmos disseram, essa obra talvez não seja uma produção direcionada aos espíritas, que já convivem com o fenômeno da comunicação, desde a codificação do Espiritismo; mas, para uma grandiosa parcela da população dentro da militância católica, que é chamada a conhecer a verdade espiritual, porque “os tempos são chegados”, estes ensinamentos pertencem à natureza e, conseqüentemente, a todos os filhos de Deus.
A verdade espiritual não é propriedade dos espíritas ou de outros que professam estes ensinamentos e, talvez, porque, tenha chegado o momento da Igreja Católica admitir, publicamente, a existência espiritual, a vida depois da morte e a comunicação entre os dois mundos.
Na entrevista com Dom Helder Câmara, realizada pelos editores, o Espírito comunicante respondeu as seguintes perguntas sobre a vida espiritual:
Dom Helder, mesmo na vida espiritual, o senhor se sente um padre?
Não poderia deixar de me sentir padre, porque minha alma, mesmo antes de voltar, já se sentia padre. Ao deixar a existência no corpo físico, continuo como padre porque penso e ajo como padre. Minha convicção à Igreja Católica permanece a mesma, ampliada, é claro, com os ensinamentos que aqui recebo, mas continuo firme junto aos meus irmãos de Clero a contribuir, naquilo que me seja possível, para o bem da humanidade.
Do outro lado da vida o senhor tem alguma facilidade a mais para realizar seu trabalho e exprimir seu pensamento, ou ainda encontra muitas barreiras com o preconceito religioso?
Encontramos muitas barreiras. As pessoas que estão do lado de cá reproduzem o que existe na Terra. Os mesmos agrupamentos que se formam aqui se reproduzem na Terra. Nós temos as mesmas dificuldades de relacionamento, porque os pensamentos continuam firmados, cristalizados em determinados pontos que não levam a nada.
Mas, a grande diferença é que por estarmos com a vestimenta do espírito, tendo uma consciência mais ampliada das coisas podemos dirigir os nossos pensamentos de outra maneira e assim influenciar aqueles que estão na Terra e que vibram na mesma sintonia.
Como o senhor está auxiliando nossa sociedade na condição de desencarnado?
Do mesmo jeito. Nós temos as mesmas preocupações com aqueles que passam fome, que estão nos hospitais, que são injustiçados pelo sistema que subtrai liberdades, enriquece a poucos e colocam na pobreza e na miséria muitos; todos aqueles desvalidos pela sorte. Nós juntamos a todos que pensam semelhantemente a nós, em tarefas enobrecedoras, tentando colaborar para o melhoramento da humanidade.
Como é sua rotina de trabalho?
A minha rotina de trabalho é, mais ou menos, a mesma.. Levanto-me, porque aqui também se descansa um pouco, e vamos desenvolver atividades para as quais nos colocamos à disposição. Há grupos que trabalham e que são organizados para o meio católico, para aqueles que precisam de alguma colaboração. Dividimo-nos em grupos e me enquadro em algumas atividades que faço com muito prazer.
Qual foi a sua maior tristeza depois de desencarnado? E qual foi a sua maior alegria?
Eu já tinha a convicção de que estaria no seio do Senhor e que não deixaria de existir.
Poder reencontrar os amigos, os parentes, aqueles aos quais devotamos o máximo de
nosso apreço e consideração e continuar a trabalhar, é uma grande alegria. A alegria do trabalho para o Nosso Senhor Jesus Cristo.
O senhor, depois de desencarnado, tem estado com freqüência nos Centros Espíritas?
Não. Os lugares mais comuns que visito no plano físico são os hospitais; as casas de saúde; são lugares onde o sofrimento humano se faz presente. Naturalmente vou à igreja, a conventos, a seminários, reencontro com amigos, principalmente em sonhos, mas minha permanência mais freqüente não é na casa espírita.
O senhor já era reencarnacionista antes de morrer?
Nunca fui reencarnacionista, diga-se de passagem. Não tenho sobre este ponto um trabalho mais desenvolvido porque esse é um assunto delicado, tanto é que o pontuei bem pouco no livro. O que posso dizer é que Deus age conforme a sua sabedoria sobre as nossas vidas e que o nosso grande objetivo é buscarmos a felicidade mediante a prática do amor. Se for preciso voltar a ter novas experiências, isso será um processo natural.
Qual é o seu objetivo em escrever mediunicamente?
Mudar, ou pelo menos contribuir para mudar, a visão que as pessoas têm da vida, para que elas percebam que continuamos a existir e que essa nova visão possa mudar profundamente a nossa maneira de viver.
Qual foi a sensação com a experiência da escrita mediúnica?
Minha tentativa de adaptação a essa nova forma de escrever foi muito interessante, porque, de início, não sabia exatamente como me adaptar ao médium para poder escrever. É necessário que haja uma aproximação muito grande entre o pensamento que nós temos com o pensamento do médium. É esse o grande de todos nós porque o médium precisa expressar aquilo que estamos intuindo a ele. No início foi difícil, mas aos poucos começamos a criar uma mesma forma de expressão e de pensamento, aí as coisas melhoraram. Outros (médiuns) pelos quais tento me comunicar enfrentam problemas semelhantes.
Foi uma surpresa saber que poderia se comunicar pela escrita mediúnica?
Não. Porque eu já sabia que muitas pessoas portadoras da mediunidade faziam isso. Eu apenas não me especializei, não procurei mais detalhes, deixei isso para depois, quando houvesse tempo e oportunidade.
Imaginamos que haja outros padres que também queiram escrever mediunicamente, relatarem suas impressões da vida espiritual. Por que Dom Helder é quem está escrevendo?
Porque eu pedi. Via-me com a necessidade de expressar aos meus irmãos da Terra que a vida continua e que não paramos simplesmente quando nos colocam dentro de um caixão e nos dizem “acabou-se”. Eu já pensava que continuaria a existir, sabia que haveria algo depois da vida física. Falei isso muitas vezes. Então, senti a necessidade de me expressar por um médium quando estivesse em condições e me fossem dadas as possibilidades. É isto que eu estou fazendo.
Outros padres, então, querem escrever mediunicamente em nosso País?
Sim. E não poucos. São muitos aqueles que querem usar a pena mediúnica para poder expressar a sobrevivência após a vida física. Não o fazem por puro preconceito de serem ridicularizados, de não serem aceitos, e resguardam as suas sensibilidades espirituais para não serem colocados numa situação de desconforto. Muitos padres, cardeais até, sentem a proteção espiritual nas suas reflexões, nas suas prédicas, que acreditam ser o Espírito Santo, que na verdade são os irmãos que têm com eles algum tipo de apreço e colaboram nas suas atividades..
Como o senhor se sentiu em interação com o médium Carlos Pereira?
Muito à vontade, pois havia afinidade, e porque ele se colocou à disposição para o trabalho. No princípio foi difícil juntar-me a ele por conta de seus interesses e de seu trabalho. Quando
acertamos a forma de atuar, foi muito fácil, até porque, num outro momento, ele começou a pesquisar sobre a minha última vida física. Então ficou mais fácil transmitir-lhe as informações que fizeram o livro.
O senhor acredita que a Igreja Católica irá aceitar suas palavras pela mediunidade?
Não tenho esta pretensão. Sabemos que tudo vai evoluir e que um dia, inevitavelmente, todos aceitarão a imortalidade com naturalidade, mas é demais imaginar que um livro possa revolucionar o pensamento da nossa Igreja. Acho que teremos críticas, veementes até, mas outros mais sensíveis admitirão as comunicações. Este é o nosso propósito.
É verdade que o senhor já tinha alguns pensamentos espíritas quando na vida física?
Eu não diria espírita; diria espiritualista, pois a nossa Igreja, por si só, já prega a sobrevivência após a morte. Logo, fazermos contato com o plano físico depois da morte seria uma conseqüência natural. Pensamentos espíritas não eram, porque não sou espírita. Sem nenhum tipo de constrangimento em ter negado alguns pensamentos espíritas, digo que cheguei a ter, de vez em quando, experiências íntimas espirituais.
Igreja – Há as mesmas hierarquias no mundo espiritual?
Não exatamente, mas nós reconhecemos os nossos irmãos que tiveram responsabilidades maiores e que notoriamente tem um grau evolutivo moral muito grande. Seres do lado de cá se reconhecem rapidamente pela sua hombridade, pela sua lucidez, pela sua moralidade. Não quero dizer que na Terra isto não ocorra, mas do lado de cá da vida isto é tudo mais transparente; nós captamos a realidade com mais intensidade. Autoridade aqui não se faz somente com um cargo transitório que se teve na vida terrena, mas, sobretudo, pelo avanço moral.
Qual seu pensamento sobre o papado na atualidade?
Muito controverso esse assunto. Estar na cadeira de Pedro, representando o pensamento maior de Nosso Senhor Jesus Cristo, é uma responsabilidade enorme para qualquer ser humano. Então fica muito fácil, para nós que estamos de fora, atribuirmos para quem está ali sentado, algum tipo de consideração. Não é fácil. Quem está ali tem inúmeras responsabilidades, não apenas materiais, mas descobri que as espirituais ainda em maior grau. Eu posso ter uma visão ideológica de como poderia ser a organização da Igreja; defendi isso durante minha vida. Mas tenho que admitir, embora acredite nesta visão ideal da Santa Igreja, que as transformações pelas quais devemos passar merecem cuidado, porque não podemos dar sobressaltos na evolução. Queira Deus que o atual Papa Ratzinger (Bento XVI) possa ter a lucidez necessária para poder conduzir a Igreja ao destino que ela merece.
O senhor teria alguma sugestão a fazer para que a Igreja cumpra seu papel?
Não preciso dizer mais nada. O que disse em vida física, reforço. Quero apenas dizer que quando estamos do lado de cá da vida, possuímos uma visão mais ampliada das coisas.
Determinados posicionamentos que tomamos, podem não estar em seu melhor momento de implantação, principalmente por uma conjuntura de fatores que daqui percebemos. Isto não quer dizer que não devamos ter como referência os nossos principais ideais e, sempre que possível, colocá-los em prática.Espíritas no futuro?
Não tenho a menor dúvida. Não pertencem estes ensinamentos a nossa Igreja, ou de outros que professam estes ensinamentos espirituais. Portanto, mais cedo ou mais tarde, a nossa Igreja terá que admitir a existência espiritual, a vida depois da morte, a comunicação entre os dois mundos e todos os outros princípios que naturalmente decorrem da vida espiritual.
Quais são os nomes mais conhecidos da Igreja que estão cooperando com o progresso do Brasil no mundo espiritual?
Enumerá-los seria uma injustiça, pois há base em todas as localidades. Então, dizer um nome ou outro seria uma referência pontual porque há muitos, que são poucos conhecidos, mas que desenvolvem do lado de cá da vida um trabalho fenomenal e nós nos engajamos nestas iniciativas de amor ao próximo.
Amor – Que mensagem o senhor daria especificamente aos católicos agora, depois da morte?
Que amem, amem muito, porque somente através do amor vai ser possível trazer um pouco mais de tranqüilidade à alma. Se nós não tentarmos amar do fundo dos nossos corações, tudo se transformará numa angústia profunda. O amor, conforme nos ensinou o Nosso Senhor Jesus Cristo, é a grande mola salvadora da humanidade.
Que mensagem o senhor deixaria para nós, espíritas?
Que amem também, porque não há divisão entre espíritas e católicos ou qualquer outra crença no seio do Senhor. Não há. Essa divisão é feita por nós, não pelo Criador. São aceitáveis porque demonstram diferenças de pontos de vista, no entanto, a convergência é única, aqui simbolizada pela prática do amor, pois devemos unir os nossos esforços.
Que mensagem o senhor deixaria para os religiosos de uma maneira geral?
Que amem. Não há outra mensagem senão a mensagem do amor. Ela é a única e principal mensagem que se pode deixar?
Livro: Novas Utopias
Autor: Dom Helder Câmara (espírito)
Médium: Carlos Pereira
Editora: Dufaux

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