O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

26 de dezembro de 2019

O que nos impede de estar em paz, segundo os padres do deserto

 reflexão de Jean Yves Leloup
Que 2020 nos mantenha na missão de manter o Jardim do CIT(colegio Internacional dos Terapeutas) e ampliá-lo na certeza do bem e do bom; e como diria Roberto Crema com saúde e plenitude para todos.


Os Padres do Deserto* falavam de oito logismos, ou pacotes de memórias, com os quais nos identificamos e que nos impedem de estar em paz. São eles:

strimargia, ou a identificação com nossas fomes, sedes e apetites, o resultado de todas as nossas necessidades, que e somatizam, na maior parte do tempo, oralmente (bulimia, anorexia);

2. Philarguria, ou o medo de nos faltar algo, que se manifesta pela acumulação de bens inúteis; identificamo-nos e buscamos a segurança, pelo que temos e pelo que possuímos;

3. Pornéia, ou a identificação com a nossa vida pulsional, com o medo de nos faltar vitalidade e desejo;

4. Orgé, ou a dominação do irascível e do emocional, a cólera de não ser reconhecido como “centro do mundo”, “digno de reconhecimento e respeito”;

5. Lupé, ou a tristeza de não sermos amados como gostaríamos de ser;

6. Acedia, ou a tristeza de não sermos amados de forma alguma, o desespero diante da evidência de que nunca fomos e nunca seremos amados (a menos que cessemos de pedir e nos tornemos capazes de doar);

7. Kenodoxia, ou a vaidade e a presunção que nos identificam com a imagem que fazemos de nós mesmos, independentemente do que somos na verdade; isto só acontece com angústia, e esta é proporcional à diferença que existe entre o que somos e o que pretendemos ser;

8. Uperephania, sem dúvida, a patologia mais grave: trata-se de colocar nossa identidade ilusória como se fosse a única realidade, e tomarmos a nós mesmos por única referência e juízes do que é bom ou mau; considerar todas as coisas em relação ao prazer ou desprazer que elas nos proporcionam e fazer delas uma lei válida para todos.

Aos oito logismos, ou pensamentos, poderíamos acrescentar muitos outros, como o ciúme, a inveja… e todas as projeções que nos impedem de ver e de aproveitar o que está no presente. Não por acaso, mais tarde, os Padres do Deserto chamaram estes pensamentos ou expressões da mente, que constituem obstáculos à apreensão simples e pacífica do que existe e do que somos, de “demônios” (shatan, que, em hebraico, quer dizer: “obstáculo”).

Em resumo, o principal obstáculo à paz, o maior dos demônios é a nossa própria mente, este reservatório de emoções passadas, que se derrama sem parar sobre o presente; este “pacote de memórias” que denominamos ego, ou eu. Quem sofre ou é infeliz é sempre o eu e nossa identificação com o que não somos realmente.
Que só o presente existe é um segredo bem guardado; o que era, não é mais; o que será, ainda não é; se vivermos eternamente em nossos arrependimentos e projetos, teremos que sofrer e passaremos ao largo do “segredo”… “Ora ao teu Pai que está aí, dentro do segredo”, na presença do que é presente. São palavras do Evangelho e também palavras de cura… A morte não existe ainda, ela não é.
Só permanece este “Eu Sou”, que existe desde sempre e para sempre. Não podemos ir para outro lugar, senão onde estamos; e onde nos encontramos aqui já estamos. Por que procurar, em outra parte, a vida e a paz que nós somos, se a paz é nossa verdadeira natureza, não está por fazer? Trata-se, primeiramente, de conferir menos importância àquilo que nos “impede” de estar em paz; depois, não lhe dar importância alguma, se quisermos; e isto significa aderir, instante após instante, ao que é, com um espírito silencioso, uma mente serena, ou melhor, não identificados com as memórias e com as emoções que essas memórias provocam.

Lembrar-se de que nossa verdadeira natureza está em paz é uma forma universal de oração. Essa rememoração de nosso ser verdadeiro encontra-se, efetivamente, na base das práticas de meditação de várias culturas ou religiões (dhikr – prática islâmica; japa – modalidade de ioga; hesicasmo – seita antiga de místicos cristãos orientais, etc.).
Temos medo de que? De perdermos a cabeça, perdermos a alma, de não sermos o que nossas memórias nos dizem que somos, não sermos coisa alguma do que pensamos ser? Perdem-se as ilusões, os pensamentos, e fica somente o medo de morrer.
Se eu paro de me identificar com o que deve morrer, permaneço já naquilo que sou desde sempre. Não pode haver outro artesão da paz que não seja aquele cujo corpo está relaxado, que tem o coração livre e a mente pacificada.
Mesmo o nosso desejo de paz pode tornar-se uma tensão, um nervosismo, um obstáculo à paz, uma obrigação, um dever que se somará à infelicidade e à inquietação do mundo.
Afirmar que estamos em paz não é negar nossos medos, nossas memórias, nossos sofrimentos… é colocá-los em seus devidos lugares, na corrente insensata e tranquila da verdadeira Vida… “

Uma Reflexão de Natal - os meus Natais.


Uma Reflexão de Natal - os meus Natais.
(o texto foi escrito em 2004, mas não estava no Blog)


Em meio a tantas mensagens de Natal, li algumas nas redes sociais e uma delas conseguiu me espantar. A pessoa dizia na mensagem que não desejaria Feliz Natal porque Jesus não nasceu em 25 de dezembro e que isso era uma invenção etc., etc., etc. Dizia inclusive que a importância de Jesus era relativa se comparada a outras figuras míticas no mundo. Sugeria que esse tipo de manipulação só servia ao comercio e uma série de outras coisas que na verdade caberiam bem em alguém que pretendesse fazer um discurso ateu e revolucionário. Mas não, o depoimento era de alguém que se diz espiritualista, mística, holística e sei lá mais quantos "istica".

Na verdade eu nem discordo de alguns dos argumentos que foram distorcidos ao longo dos séculos, muito menos que o sistema venha investindo pesado no Natal do Papai Noel e dispensando o aniversariante como uma incomoda figura de segunda importância, um figurante que só traz problemas com suas ideias de amor, fraternidade e coisas no gênero.

Por outro lado, vi também gente questionando o fato de se dizer que Jesus é o aniversariante, porque Ele na verdade é maior, é da ordem dos mistérios e reduzi-lo a aniversariante é diminuir sua importância.
Não comentei, até porque tenho procurado polemizar ao mínimo nas redes sociais depois que percebi que essas situações acabam sempre em barracos, e em alguns casos até em processos judiciais e na verdade nada mudam. Mas confesso que fiquei pensando nos meus sessenta e muitos natais, dos quais apenas os primeiros não estão bem vivos gravados na minha memória.

Que importa se Jesus nasceu em 25 de dezembro ou em maio ou talvez abril ou setembro? Porque me exasperar se a sociedade capitalista transformou o papai Noel na figura central do Natal, ou se as pessoas fazem do Natal uma ocasião de excessos?
Há muito tempo que descobri que toda e qualquer mudança precisa começar primeiro em mim para que depois possa pretender que ela atinja as demais pessoas da sociedade. E entre a minha mudança e a mudança da sociedade vai um longo e demorado caminho a percorrer. Certamente não é pelo discurso, pela crítica direta e desprovida de caridade e pela revolta à questões mal resolvidas em meu íntimo, que as pessoas vão mudar. É principalmente pelo exemplo, pelo testemunho de vida que eu posso fazer a diferença e posso me alegrar com os pequenos gestos de mudança das pessoas.

Se há mais de mil anos se repete em uma mesma data um festejo que coloca a fraternidade, o amor e a caridade em evidencia, porque não me alegrar e incentivar isto? Porque não aproveitar esse incentivo para exercitar estas virtudes?
O Natal para mim sempre foi ocasião de muita alegria, sempre foi lembrança de dias felizes na convivência dos primos, e tios, da família em uma mesa rodeada de sorrisos e afetos e abundancia de afeto e alegria e oportunidade de celebrar a união com quem se ama.

É uma época de caridade farta, até mesmo por pessoas pouco dadas a essa prática. É também uma época em que as pessoas se esforçam para pelo menos parecerem melhores.
Não acho que seja o dia da hipocrisia, como alguns insistem em ressaltar. Até mesmo porque se for por alguns instantes, qualquer gesto de amor e fraternidade é louvável.
Não sou palmatória do mundo, prefiro errar por acreditar nas pessoas do que acertar sempre não confiando nelas.

Os meus natais, a maioria deles, sempre foram momentos de muita Alegria, Paz, entusiasmo e Contentamento. Eu tive a graça de ter convivido com meus avós, tanto paternos como maternos. E natal sempre vai me remeter à casa dos avós.

meus avós maternos

Na casa dos meus avós maternos a lembrança mais forte desta época é a do presépio, majestoso na sala de visitas, o mesmo cujas imagens guardo até hoje, com cuidado. A lembrança daqueles dias de orações em volta do presépio na noite de Natal.
Era lá que passávamos a véspera de Natal. A ceia não era como hoje, com comilanças exageradas. Tínhamos as rabanadas, as frutas secas e alguns doces da tradição portuguesa: o “Formigos” ou “Mexido”. Era na verdade uma espécie de creme, onde de tudo um pouco entrava na sua confecção: pão esfarelado lentamente até quase virar farinha, água, ovos, mel, vinho, amêndoas e uma quantidade enorme de paciência para mexer a grande panela de barro em fogo brando por horas e horas a fio. Uma tradição que minha avó manteve até seus oitenta e nove anos, quando partiu e o mexido passou a só existir junto com ela, em nossas lembranças.

meus avó paternos eu e meus primos ano provavel 1956

No dia de natal, o almoço era na casa dos avós paternos e ali, a família por ser maior, a atividade era imensa. Acho que nenhum de nós, os netos, éramos nove, conseguirá esquecer, por mais que o tempo passe aquelas festas, aquela algazarra de crianças por todo lado e adultos atarefados. No quintal a mesa de pingue-pongue armada com uma toalha e a sua volta bancos, cadeiras e o que mais servisse para que TODOS pudessem sentar-se à volta da mesa e saborear o almoço de natal. O Almoço durava horas...

Terminado o almoço começava uma arenga, quase briga, era a disputa para quem ia lavar a louça... Por incrível que pareça todas, filhas e noras, disputavam a honra de pilotar a pia.
Mas, a coisa mais sagrada, depois do almoço era quando vovó fazia questão de buscar o saco das pedras e os cartões do jogo de víspora e a tarde voava entre o canto de um número e outro e a tensão de não perder nenhuma marcação com os caroços de feijão e os gritos: "duque", "terno!”...
De repente alguém dizia: Ah! Peraí ! Eu tinha marcado esses...
e o vovô dizia : comeu barriga ! Perdeu...
Muitos risos e muita alegria e já alguém gritava: “ duque de ponta”, ou terminava aquela série com um sonoro: "V I S P O R A" !!!!!

Desta época de natal minha memória acusa a lembrança de uma iguaria que só era feita nesta época do ano: os Mantecais. Durante a semana que antecedia o Natal uma bacia era posta na sala de jantar sobre a mesa e nela alguns quilos de banha de porco que minha avó batia com uma colher de pau até que virasse um creme quase líquido em que eram acrescentados outros ingredientes até virar uma massa clara como massa de empada. Depois vinha o momento de enformar os “mantecais”, e eu sempre dava um jeitinho de roubar um pouco daquela massa doce e gostosa. As formas eram como que barquinhos e aos montes eram colocadas para assar e o cheiro ia longe. Assados os mantecais, que na verdade eram uma espécie de biscoitos amanteigados, típicos da tradição espanhola, na distante Málaga da infância de vovó, eram passados no açúcar e canela e guardados em grandes latas para serem saboreados nas festas de fim de ano.
Nunca consegui recuperar a receita para comer e reavivar aquele gosto de infância feliz.

A lembrança da vovó está muito associada àquelas festas na vila da rua Dona Maria, na “Aldeia Campista”, bairro hoje considerado como Tijuca, e à alegria de tempos que embora difíceis, não foram capazes de escurecer a lembrança viva da alegria da família reunida no Natal.
Mais tarde o tempo se encarregou das transformações, algumas bem dolorosas e significativas. Por ironia a vovó Bebel, essa avó paterna, nos deixou em um dia de Natal bem cedo. Lembro bem e eu devia ter meus 19 anos, a notícia chegando no dia 25 de dezembro com o raiar do dia.


Depois que eu casei e os filhos chegaram eu tomei como tradição fazer o Natal, reunir a família e comemorar esta data, que até hoje é para mim muito especial.
Trouxe para mim o mesmo presépio que meu avô comprou lá pelos anos 30 e o gosto de reunir a família e celebrar. Celebrar algo que só quem não quer ver não percebe. São os judeus e a festa da Luz, o Hanukah, ou pode ser a comemoração do Deus pagão como Mitra, ou para nós cristãos o nascimento da Luz.

Este é o presépio comprado por meu avô em 1930

“O povo que andava nas trevas viu uma grande luz naquela noite”. É assim que a bíblia se refere à chegada de Jesus. E o natal é exatamente isso, "Luz". O mistério da Luz que não se apaga nunca.
Sejam as luzes artificiais das fachadas, ou a luz que cada um, se quiser e permitir, acende em seu próprio coração, neste tempo de grandes transformações. E qual sarça ardente jamais se apagará.
Natal é oportunidade de renascimento, é tempo de nos lembrarmos de que existe algo luminoso em nós e que só depende de cada um de nós querer manter aceso, ou ocultar e alardear que não há mais esperança para esse mundo.
De minha parte, continuo acreditando em utopias e buscando manter acesa a chama da vida que a cada natal é avivada por uma onda de paz, e alegria.

É natal, pelo menos por hoje troque as reclamações por agradecimentos, Troque a cara feia por um sorriso. Nós podemos se quisermos transformar esse mundo em algo mais alegre, e digno de seres criados à semelhança de um Deus.
Feliz Natal !
A transformação é possível, vamos manter bem forte esta chama, nós podemos.