O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

16 de fevereiro de 2012

Até as últimas conseqüências

Rogério Oliveira

E ela olhou nas suas anotações o nome de todos eles. Tinha ficado encantada com todos os relatos e sobre como toda aquela gente tinha dedicado a vida por uma causa. Mas ainda se assustava um pouco também. E, naquela noite, foi deitar pensando em cada um deles. Afinal, tudo era tão grandioso, tão importante, tão solene... Tão distante. Ela ali, no trabalho comunitário, todo fim de semana, na busca de vida, no convívio com outros jovens... E eles lá. Fazendo grandes coisas, sonhando grandes sonhos...

E de repente ela se pega andando numa rua estranha. Não parecia com nenhuma outra pela qual já caminhara. E então ela vê uma igreja e tem a forte vontade de entrar nela. Há poucas pessoas sentadas e no altar um bispo faz um discurso muito convicto. Dizia ele que “Ainda quando nos chamem de loucos, ainda quando nos chamem de subversivos, comunistas e todos os adjetivos que se dirigem a nós, sabemos que não fazemos nada mais do que anunciar o testemunho subersivo das bem-aventuranças,  que proclamam bem-aventurados os pobres, os sedentos de justiça, os que sofrem”

Ela achou aquilo muito forte, mas o bispo continuava: “Uma igreja que não sofre perseguição, mas que desfruta privilégios e o apoio de coisas da terra – Tenham Medo! – não é a verdadeira igreja de Jesus Cristo.” E ainda continuava: “Para que servem belas estradas e aeroportos, belos edifícios e grandes palácios, se foram construídos com o sangue de pobres que jamais vão desfrutá-los?”

Ela foi caminhando até o altar, mas aquela pregação havia acabado. Uma a uma as pessoas deixavam a igreja e ela pôde ver alguns rostos conhecidos. Uma mulher baixinha se reunia em círculo e conversava com outra de cabelos grisalhos e com outros dois homens, um de bigode e o outro de barbas e óculos.

A mulher baixinha dizia: "é melhor morrer na luta do que morrer de fome" ao que a mulher de cabelos brancos acrescentou: “Não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade sem devastar”.

Ela sentiu que a luta e a vida eram a marca forte desta conversa. Então o homem de bigodes disse: “Se descesse um enviado dos céus e me garantisse que minha morte iria fortalecer nossa luta até que valeria a pena. Mas a experiência nos ensina o contrário. Então eu quero viver. Ato público e enterro numeroso não salvarão a Amazônia. Quero Viver”. A mulher baixinha respondeu logo em seguida: “Se a gente morrer nesta luta, o sangue será uma semente. Vamos conquistar a justiça! A história não falha, nós vamos ganhar”.

O homem de barba estava calado até então. Observava tudo e quando surgiu a oportunidade disse: “Agora, quero que vocês entendam o seguinte: tudo isso que está acontecendo é uma consequência lógica do trabalho na luta e defesa dos pobres, em prol do Evangelho, que me levou a assumir essa luta até as últimas conseqüências. A minha vida nada vale em vista da morte de tantos lavradores assassinados, violentados, despejados de suas terras, deixando mulheres e filhos abandonados, sem carinho, sem pão e sem lar”.


A garota se afastou. Até então ninguém falara com ela, ninguém notara a sua presença. E ela caminhava assim, solta em seus pensamentos até que acabou tropeçando em alguém. Era um amigo seu, padre, militante dos direitos humanos e perseguido por denunciar abusos do poder público e policial. Ela não se conteve e o questionou:

- Eles fizeram tanto, são tão famosos, com grandes projetos. Eu me sinto pequena ao não abraçar a causa como eles.

- Seu empenho é diário, não é? Você não consome seus finais de semana, por semanas a fio? Você não se empenha na formação de novas lideranças? Não acompanha novos grupos? Não festeja e se reúne, discute e reflete com outros jovens? Por que sua luta seria menor, então?

- Ah! Mas todos eles são muito corajosos por enfrentar a morte, por se doarem desta maneira, por serem profetas na busca de vida digna do povo. Eles não têm medo?

- Não é o medo, mas o enfrentamento ao crime que terá chance de diminuir essa força dos ‘passageiros das trevas’ que, desde sempre, compactuaram com a exigência do silêncio, do segredo, do medo e do oculto para poderem sorrateiramente ganhar mais.

- Mas eu sei que isto é um sonho. E que eles já morreram. Todos eles. E que apesar disto, as injustiças continuam. Por que vale a pena continuar lutando?

Ele inclinou a cabeça de lado, olhou em seus olhos e disse:

- Quem te falou que eles morreram? Os mártires da caminhada continuam vivos em quem tem o coração ardendo. Quem se comove e se motiva ao ler a vida de Dom Oscar Romero, Margarida Maria Alves, Irmã Dorothy Stang, Chico Mendes ou Padre Josimo, entre tantos outros, e leva adiante sua ação faz com que a morte de nenhum deles tenha sido em vão. Você acha que Jesus continua morto?

Mas ela ainda tentava argumentar:

- Mas e as injustiças? Elas continuam.

- Nenhum de nós entrega a vida só pela justiça. É por amor. Só por amor.

15 de fevereiro de 2012

A cruzada secreta de Bento XVI

Matthew Fox, ordenado padre dominicano em 1967, é autor de mais de 30 livros e fundador de movimentos que combinam as escrituras, a tradição, os místicos e os profetas em sua visão pessoal chamada de espiritualidade da criação. É uma teologia "verde", em que a proteção da natureza é considerada um sacramento.

A análise é do padre jesuíta Raymond A. Schroth, editor associado da revista America, dos jesuítas dos EUA. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 11-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Em 1993, ele foi expulso dos dominicanos por não ter conseguido explicar por que ele chamou Deus de "Mãe" e preferiu o termo "bênção original" a pecado original. Ele então se tornou pastor da Igreja Episcopal.

Seu último livro, The Pope's War, é muitas coisas. É mais um tratado do que uma análise, uma acusação caso a caso do sistema político-religioso que encobriu a crise de abuso sexual, e uma exposição das três sociedades secretas dominantes – Opus Dei, os Legionários de Cristo e o Comunhão e Libertação – que, em seu julgamento, fortificaram a concentração de poder em Roma, determinados a desfazer o trabalho do Concílio Vaticano II.

A força do livro reside em seu "martirológio" dos inimigos do "inquisidor". O inquisidor era o cardeal Joseph Ratzingercomo prefeito da Congregação para a Doutrina da FéFox apresenta uma lista de 91 homens e mulheres cujas carreiras foram postas de lado ou terminaram porque, no julgamento da Inquisição contemporânea, eles disseram a coisa errada.

Grande parte da sua narrativa é baseada no trabalho de outros estudiosos: Penny Lernoux sobre a América Latina e ateologia da libertaçãoJason Berry sobre a Legião de Cristo e seu fundador corrupto, Pe. Marcial Maciel Degollado;Michael WalshGordon Urquhart Maria del Carmen Tapia sobre o Opus Dei; e John Allen sobre os primeiros anos de Ratzinger, mas não sobre o Opus Dei, pois Fox sugere que Allen se deixou enganar por entrevistas de bastidores com as lideranças do Opus Dei.

As críticas mais fortes de Fox são ao Opus Dei, cujos bispos latino-americanos, afirma, foram os agentes vaticanos para a repressão das comunidades de base inspiradas pela teologia da libertação.

Então, é apresentado esse martirológio (das 91 pessoas da lista, aquelas que eu conheço são homens de absoluta integridade).

O padre redentorista Bernard Häring é mais conhecido como o teólogo moral pioneiro que centrou sua ética sobre a virtude da caridade. Convocado para o exército alemão em 1940, a observação das "ações diabólicas dos soldados cristãos alemães" em nome da obediência o convenceu de que a obediência nunca poderia ser um conceito central na teologia moral: deve ser a coragem de ser responsável. Ele alertou que os teólogos podem difamar a teologia por covardia, assim como por arrogância, e podem distorcer a verdade "lutando por ofícios e posições ou títulos de honra".

A história do franciscano brasileiro Leonardo Boff lembra ao leitor que a teologia da libertação era baseada nos princípios do Vaticano II, mas aplicada às "circunstâncias concretas e terríveis da América Latina na luta pela justiça e pela igualdade". Até o fim da década de 1970, mais de 850 padres e freiras haviam sido martirizados.

Os norte-americanos que estão impacientes hoje com a relutância dos bispos dos EUA para abordar questões de justiça social podem se inspirar com os bispos do Brasil, incluindo Pedro Casaldáliga, um bispo-poeta da selva amazônica. Interrogado por Ratzinger em Roma, ele foi silenciado e confinado em sua diocese. A razão: ele se recusou a viajar regularmente para Roma porque não tinha dinheiro. Casaldáliga aprovou a teologia da libertação, criou uma missa centrada na cultura indígena e negra e se refere ao arcebispo Óscar Romero, de El Salvador, como a um "mártir".

Na Tchecoslováquia, em 1945, Ludmila Javorova foi ordenada por Dom Felix Davidek, que suportou 14 anos em uma prisão comunista e se sentiu compelida, em sã consciência, depois da consulta com outros bispos, a ir ao encontro da necessidade de padres em uma situação desesperadora. Tendo sido avisada em 1995 que sua ordenação havia sido "inválida", Javorova se afastou. Hoje, ela diz que "Deus permitiu a minha ordenação. Eu queria apenas servir".

Em certo sentido, o livro de Fox é uma acusação contra o homem agora conhecido como Papa Bento XVI, que, motivado pela ambição, se transformou de um liberal do Vaticano II a um carreirista eclesiástico. Ele abraçou movimentos semifascistas como o Opus Dei por apoio psicológico e financeiro, e deixou uma lista de espíritos quebrados em seu rastro. Mas também é um manifesto sobre a própria espiritualidade de Fox, que ele afirma que pode salvar a Igreja.

As listas de mitos a serem descartados, tesouros a serem preservados e 25 passos para nos salvar são uma compilação de ideias debatidas na imprensa católica livre nos últimos anos. Tudo isso, mais as suas interpretações pessoais, vão desde a ortodoxia até a surpresa.

Os "mitos" que Fox descartaria incluem: o celibato, a dominância masculina, a centralidade do magistério, um papa "celebridade" e que Jesus é o "filho de Deus". Os tesouros incluem: o mistério pascal, a Encarnação, a cruz, Deus é amor, a imortalidade e que todos fazemos parte uns dos outros.

Como não há esperança de um terceiro Concílio Vaticano, porque seus possíveis candidatos a membros foram "reduzidos" a "homens que sempre dizem sim", o que devemos fazer para sermos salvos? Reconstruir a Igreja a partir da base; unirmo-nos a organizações leigas e manter encontros nacionais e internacionais; refazer o culto com pequenos encontros caseiros e danças extáticas; chamar de volta os ex-padres; limitar os nascimentos por razões ecológicas; confiar nos teólogos; e ouvir os jovens.

Costuma-se dizer em Nova York que um conservador é um liberal que acabou de ser assaltado. Se é assim, isso aconteceu com o Ratzinger das páginas de Fox. Ratzinger era uma vez progressista, mas ficou traumatizado quando uma manifestação estudantil invadiu o seu espaço universitário. Ele se afastou e calculou uma carreira conservadora que o levou ao topo. Mas, no retrato de Fox, ele continua sendo um ser humano.

Se esse livro fosse uma grande ópera ou um romance sobre um rei, ele poderia ter dois possíveis finais felizes.

Em um deles: um profeta-amigo do Antigo Testamento confronta o rei sozinho em seu quarto e percorre os acontecimentos de sua vida diante de seus olhos, e pergunta: "De que vale ao homem...?". O rei volta o seu rosto para a parede e chora aos prantos.

Em outro: quando Ratzinger removeu Fox do ensino da espiritualidade da criação em 1988, Matthew Fox escreveu-lhe uma carta ao "Querido irmão Ratzinger", que descrevia a Igreja como uma família disfuncional, resumia a espiritualidade da criação como compaixão e convidava Ratzinger para tirar um ano sabático e unir-se a ele: "Por que não abandonar a sua vida isolada e privilegiada no Vaticano para fazer danças de círculo com mulheres e homens", velhos e jovens, em busca de uma autêntica espiritualidade?

Quem sabe? Talvez ele o fará.

The Pope's War: Why Ratzinger's secret crusade has imperiled the Church and how it can be saved, de Matthew Fox, Ed. Sterling Ethos.