O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

17 de março de 2012

Hino à Matéria

Piere Teilhard de Chardin


Bedita sejas tu,
áspera matéria,
terra estéril,
dura rocha,
que cedes apenas à violência
e nos forças a trabalhar
se quisermos comer.

Bendita sejas,
poderosa matéria,
evolução irresistível,
realidade sempre nascendo,
que a cada momento fazes em estilhaços nossos limites
e nos obrigas a procurar
cada vez mais profundamente a verdade.

Bendita sejas,
matéria universal,
éter sem fronteiras,
triplo abismo das estrelas,
dos átomos e
das gerações.
Tu, que dissolvendo e transbordando
nossas estreitas medidas,
nos revelas as dimensões de Deus.

Bendita sejas,
impenetrável matéria.
tu que és tensão entre nossas almas
e o mundo das essências
e nos fazes definhar
com o desejo de romper o véu dos fenômenos.

Bendita sejas,
matéria imortal,
Tu, que, desagregando -te um dia em nós,
nos induzirá, forçosamente,
no íntimo daquilo que é.

Sem ti, matéria,
sem teus combates,
sem teus dilaceramentos,
viveríamos inertes,
estagnados,
pueris,
ignorantes de nós mesmos
e de Deus.

Tu que feres e que curas,
tu que resistes e que cedes,
que aprisionas e libertas,
tu que desmoronas e constróis,
seiva de nossas almas,
mãe de Deus,
carne do Cristo,
matéria,
eu te bendigo.

Eu te bendigo e te saúdo,
não como te descrevem,
diminuída e transfigurada,
os pontífices da ciência
e os pregadores da virtude.
Um amontoado - dizem eles -
de forças brutais ou
de apetites baixos,
mas como me apareces hoje,
na totalidade da tua verdade.

Eu te saúdo,
inesgotável capacidade de ser e de transformação,
onde germina e cresce
a substância escolhida.

Eu te saúdo,
universal poder
de aproximação e de união,
por onde se comunicam a multidão das moléculas
e a quem todas convergem,
em marcha para o espírito.

Eu te saúdo,
matriz harmoniosa das almas,
límpido cristal,
do qual será tirada a Nova Jerusalém.

Eu te saúdo,
meio divino,
carregado de poder criador,
oceano agitado pelo espírito,
argila modelada
e animada pelo Verbo encarnado.

Crendo obedecer ao teu irresistível apelo,
os homens se precipitam muitas vezes,
por teu amor,
no abismo externo dos prazeres egoístas.
Um reflexo os engana,
ou, então,
um eco.

Mas, agora eu vejo.
Para te atingir, matéria,
é preciso que,
partindo de um contato universal,
com tudo o que se move,
sintamos, pouco a pouco,
esvair-se entre nossos dedos,
as formas particulares de tudo que seguramos,
até que retenhamos, apenas,
a única essência
de todas as consistências e de todas as uniões.

Se quisermos te possuir,
temos que te sublimar na dor,
após termos, voluptuosamente,
apertado os braços.

Tu reinas, matéria,
nas serenas alturas,
onde imaginam evitar-te
os santos.
Carne tão transparente e móvel
que não te distinguimos mais de um espírito.

Leva-me para o alto, matéria,
pelo esforço,
a separação
e a morte.
Leva-me para onde for possível,
enfim, abraçar castamente
o universo.



8 de março de 2012

“Invoquem a paz sobre Jerusalém”

Jean Yves leloup

Escritos e Parábolas para a Paz Editora Diálogos do Ser, 2009

 “Invoquem a paz sobre Jerusalém”

“Invoquem a paz sobre Jerusalém
que sejam pacíficos aqueles que te amam
que a paz venha para os teus muros
que sejam pacíficas tuas casas
pelo amor dos meus irmãos, dos meus amigos
deixe-me dizer, paz sobre ti
por amor da casa de YHWH
“Aquele que era, que é e que vem”,
oro pela tua felicidade!” (Salmo 122)

Qual é esta paz que “aqueles que amam” invocam sobre Jerusalém e sobre o mundo?
Que eles próprios sejam pacíficos, essa é sem dúvida a primeira condição para que se realize, já no seu próprio corpo e no seu próprio espírito, a paz que eles desejam a todos.
A palavra hebraica “Shalom” deriva de uma raiz que designa o fato de estar intacto, inteiro; estar em paz é estar “inteiro”, nós não estamos em paz porque não estamos inteiramente aqui... Qual é a parte de nós mesmos que nos falta, que está esquecida ou reprimida – o que nos impede de estarmos em paz?
Perceberemos que quando somos amorosos, somos mais “inteiros”, o amor nos une, nada mais nos falta em nós mesmos, tudo está “voltado para” o Outro.
O mandamento ou o exercício (mitzvot) proposto pela Escritura é um exercício terapêutico, cujo fruto é o de nos fazer “Um”, corpo, coração e espírito, portanto, estarmos felizes e em paz:
“Tu amarás “Aquele que era, que É e que será” de todas as tuas forças, de todo teu coração, de todo teu espírito e tu amarás teu próximo, aquele que era, que é e que será como a ti mesmo, tal qual tu eras, tu és e tu te tornarás...”
A paz abrange todos os tempos. Será que podemos estar em paz com o nosso presente, se não o estivermos com o nosso passado? Será que podemos estar em paz com “aquilo que será”, com “aquilo que virá” se não estivermos em paz com o nosso presente?
A paz designa “o bem-estar do ser” e particularmente do ser humano que vive em harmonia com ele mesmo, com Deus, com os outros, com a natureza, suas sombras e sua luz... Na Bíblia, “estar em boa saúde” e “estar em paz” são duas expressões paralelas; para perguntar como vai alguém; se ele está bem, dizemos: “ele está em paz?”.
Dizemos que Abraão morreu numa idade avançada, feliz e saciado de dias, que “ele se foi em paz”. Também dizemos do nosso namorado que ele é “o homem da minha paz”. A paz é, então, uma confiança mútua, que torna possível a vida em comum e a fraternidade; sem esta paz e esta confiança entre nós, não há comunidade humana ou futuro possível.
Todos os bens materiais, afetivos, intelectuais e espirituais que nós podemos nos desejar uns aos outros estão resumidos nesta simples palavra: Shalom, Salam (em árabe), Bom dia – a paz esteja contigo, em ti e entre nós...
Quando Jesus diz a alguém no Evangelho “Shalom”, é realmente uma “saudação”, uma “salvação”[1], uma cura. Quando ele diz à mulher hemorroíssa: “Vá em paz”, ele lhe devolve a saúde. Da mesma maneira àqueles que se afastaram de diversas maneiras, quando ele lhes diz: “Vá em paz”, eles têm o coração, o corpo e o espírito lavados da sua culpa, eles podem realmente se recolocar a caminho e ver “todas as coisas novas”.
Mas Jesus precisa que a “Sua paz, Ele não a dá como o mundo a dá”. Ela não é um tranqüilizante, um sedativo, que livraria os humanos das provações e das contradições do Real.
Jesus inscreve-se assim na linhagem dos antigos profetas que denunciam “as falsas pazes” e as falsas seguranças que são buscadas em outro lugar e não n’ “Aquele que era, que é e que será”, seu fundamento – aí estão as pazes ilusórias e mentirosas e ele vem nos libertar das nossas ilusões e das nossas mentiras.
Estar em paz é não ser parvo e acreditar-se invulnerável. O Dom da paz supõe uma metanóia, uma transformação da sua vida e da sua maneira de ser e de pensar; Miquéias, Jeremias denunciava assim os falsos profetas que têm apenas a palavra “paz” na sua boca e a ambição e outras vontades de poder no coração: “Eles curam superficialmente a chaga do meu povo dizendo “Paz, Paz” e, no entanto, não existe paz”. (Jr 6, 14)
Jesus será ainda mais radical quando ele dirá: “Penseis que vim trazer a paz sobre a terra? Não, mas o conflito.(polémos, em grego)” Isso quer dizer que se não reconhecermos nossas alteridades, e esse reconhecimento passa às vezes pelo conflito, não há paz verdadeira (particularmente no seio de uma mesma família onde a diferenciação, do pai e do filho, da mãe e da filha é por vezes difícil). A paz não nos deixa tranqüilos, pois se quisermos “permanecer inteiros” e verdadeiros, face ao outro e respeitá-lo na sua inteireza e na sua verdade, isso nem sempre acontece sem que haja um enfrentamento, é preciso amar o outro o suficiente para não ter medo de desagradá-lo e nos amar o suficiente para nos fazer respeitar na nossa identidade. Se o verdadeiro amor é sem complacência, a paz verdadeira é sem compromisso.
Ezequiel também não deixará de gritar: “Chega de remendos! O muro deve tombar” (Ez 13), mas quando os muros do medo, da vaidade, da ilusão e das mentiras desabarem, uma verdadeira paz será edificada.
“Eu sei, eu, “Aquele que era, que é e que será”, que tenho sobre vós um desígnio de paz e não de infelicidade” (Jo 29, 11). Isaías e Zacarias sonham com o “príncipe da paz” (Is 9, 5 /Za 9, 95) que dará uma “paz sem fim”, “é ele que estará em paz” (Mi 5, 4), as duas terras separadas se reconciliarão, as nações viverão em paz (Is 2, 2).
“Farei correr sobre Jerusalém como um rio...” Enquanto aguardamos, “Bem-aventurados os “artesãos” da paz”. A paz é um “artesanato” e não uma indústria. A diferença entre o artesão e o operário é que o artesão realiza um objeto, uma obra na sua “inteireza”, ele trabalha nela do início ao fim. Aquilo que se rouba do operário que trabalha na produção em cadeia é o acesso ao objeto na sua inteireza.
Assim, ser “artesão” da paz é tentar viver, nem que seja apenas uma única relação na sua inteireza, da maneira mais verdadeira e pacífica que possa existir.
Jesus pede que façamos a paz, que amemos o próximo, o mais próximo e não que façamos a paz e amemos “a humanidade”, “o mundo”. A palavra “paz”, os discursos sobre a paz não fazem de nós “artesãos da paz”, mas ideólogos, discursistas, pretensiosos pretendentes à paz, “mas a paz não existe...”
A questão, então, para aquele que, em Jerusalém ou em qualquer outro lugar, queira conhecer a felicidade dos artesãos da paz, não é mais: “O que é a paz?”,mas: “Quem é o meu próximo?”. Basta, então, termos olhos e “vermos” qual relação muito concreta devemos “apaziguar”, compreender e “reconciliar”... Isso começa, sem dúvida, em nós mesmos. Enquanto não tivermos feito a paz entre nossos diferentes quarteirões (cabeça – coração – ventre), não haverá paz entre os diferentes quarteirões de Jerusalém.
“Encontre a paz interior” dizia São Serafim de Sarov, “e uma multidão será salva ao teu lado.”
É sempre pelo mais próximo que devemos começar, é o primeiro passo de todos os caminhos que conduzem à paz.

Nunca vou muito longe
Para encontrar a paz
Basta uma flor no meu jardim
Ela não me coloca questões
Ela não me pergunta por quê
Todos os homens que têm uma flor no seu jardim
Não olham a flor
E não estão em paz

* * *

A calma das árvores queimadas pelo sol
ou arrancadas pelo homem é sempre calma
a calma das árvores sacudidas pela tempestade surpreende:
uma floresta de calma

Essa calma é também a do homem
é até mesmo o segredo da sua vida
mas só vemos as tempestades
o sol e o vento
só ouvimos o barulho que ele faz
jamais o silêncio que ele é
ninguém consegue imaginar o que seria uma cidade
se ela fosse habitada por homens que são o que eles são:
uma floresta de calma



________________________________________
[1] No original em francês : « Quand Jésus dans l’Évangile dit à quelqu’un « shalom », c’est vraiment un « salut », une guérison » ; a palavra “salut” em francês indica tanto “saudação” quanto “salvação”. (N.T.)

6 de março de 2012

Rubem Alves fala da Teologia da Libertação em uma Igreja Pentecostal

Jung Mo Sung

Uma quinta feira à noite (09/02/2012), convite para um relançamento de um livro de teologia –ainda mais teologia da libertação– escrito há mais de 40 anos: quantas pessoas poderiam se interessar? É claro que o autor, Rubem Alves, é uma "atração” por si só; mas como ele não tem escrito mais livros ou artigos de teologia, muito menos escrito ou pronunciado sobre teologia da libertação, eu pensei que haveria um número razoável, mas nada de excepcional. Ainda mais se levarmos em conta que o evento teria lugar em uma igreja pentecostal –Igreja Betesda– e seria um debate sobre o livro com título "Por uma teologia da libertação” (título original da sua tese de doutorado defendida por Rubem Alves em 1968, mas publicada primeiramente nos Estados Unidos, em 1969 como "Por uma teologia da esperança humana”, por decisão do editor; e publicado no Brasil, em 1987, com o título "Da esperança”)
Rubem Alves voltando a debater em público sobre a teologia da libertação em uma igreja pentecostal? Isso seria impensável alguns anos atrás. E para quem não conhece bem o ambiente evangélico e pentecostal, é preciso lembrar que a teologia e os escritos mais espirituais de Rubem Alves são considerados heréticos ou até satânicos por muitos.
Está certo que esse evento foi divulgado na rede social através de pessoas com muitos "seguidores” ou "amigos”, mas divulgação por si não garante o sucesso do evento. Por isso, fui ao evento –após um dia muito intenso e longo de trabalho que quase me fez desistir de ir– com muita expectativa em relação ao que poderia ouvir de Rubem Alves, e dos outros dois debatedores: Ricardo Gondim (pastor da Igreja onde foi realizado o evento) e Ricardo Gouvêa (teólogo presbiteriano); mas não muita em relação ao número de participantes. Além disso, eu imaginava que Rubem Alves fosse falar de muitas coisas, mas pouco especificamente da teologia.
Tive duas surpresas! Em uma igreja com capacidade para 2.000 pessoas, o local estava quase completamente lotado. Imagino que estavam presentes mais de 1.500 pessoas; muitas delas com a Bíblia na mão (algo bem pentecostal ou do mundo evangélico popular). A segunda surpresa: Rubem, no meio de suas memórias, estórias e poesias –bem ao seu estilo–, falou explicitamente da teologia da libertação. Alguns anos atrás, eu participei, na cidade de México, de um painel sobre a teologia da libertação juntamente com Rubem Alves, Dussel e José M. Vigil. E lá, Rubem Alves falou da sua participação no início da teologia da libertação e como um acontecimento muito desagradável o afastou do grupo principal da TL. Mas, depois ele não respondeu nenhuma pergunta específica sobre teologia ou teologia da libertação. Por isso, minha surpresa ao vê-lo aqui tratar diretamente da TL e, em particular, sobre as diferenças entre a TL católica e a protestante. Foi uma fala de quem se sente ainda dentro da grande corrente da teologia cristã da libertação, uma corrente que é feita de várias teologias da libertação, como uma corrente marítima que é alimentada por muitos rios e "caminha” banhando muitos lugares.
Quem conhece o estilo de falar de Rubem Alves sabe que é muito difícil resumir em poucas palavras a complexidade de suas idéias expressas através de imagens, estórias, poesias e raciocínios acadêmicos. Por isso, não vou me atrever sintetizar aqui a bela exposição dele. E penso que isso também não é o mais importante. O mais importante da noite foi o próprio evento.
Alguns podem interpretá-lo como o fechamento de um ciclo que já acabou, como um evento "histórico” no sentido de recuperação de uma memória histórica que marcou a vida da geração de Rubem Alves e de outros. Outros podem interpretar como um sinal de "esperança” (o tema principal na fala de Rubem Alves e de Ricardo Gondim), de que algo novo está surgindo. A presença de muitos jovens (alguns vindos de lugares distantes da Grande S. Paulo e de outras cidades) pode indicar isso. Contudo, o mais importante, para mim, foi o encontro de uma figura memorável – alguém que é capaz de incitar grandes discussões acadêmicas e também encantar corações infantis com suas estórias, que carrega no seu corpo e memória as lutas e esperanças da gerações passadas – com as novas gerações que também anseia por um cristianismo liberto de amarras e dogmatismos que possa contribuir no fortalecimento da esperança dos mais pobres e das lutas pela libertação. E isso em uma igreja pentecostal!
O que resultará desse encontro? A resposta depende das novas gerações de cristãos que assumem –motivadas pelos testemunhos e memória dos mais antigos– a tarefa de levar adiante a boa-nova da esperança, a boa-nova de que a salvação vem pela graça de um Deus que nos ama apesar de tudo. E que, por isso, podemos continuar sorrindo, lutando e vivendo alegremente a vida, apesar de tudo, porque vivemos da esperança e fé.

[Autor de, entre outros, "Cristianismo de libertação” e "Sementes de Esperança”].

5 de março de 2012

A missa sobre o Mundo

O texto está na obra  "Hino ao Universo" escrito , 
em momento de grande sofrimento pela injustiça que sofria 
durante o" silencio obsequioso"
 imposto pela Igreja ao Pe. PiereTeilhard de Chardin

 Foi composto quando ele não tinha acesso às espécies, pão e vinho, para celebrar a missa. Ganhamos nós, com essa maravilha de rara beleza e espiritualidade.

Na época o Pe. Teilhard era considerado um herege por suas ideias revolucionárias, hoje em nossos dias o atual  papa o cita como se nada houvesse acontecido.

Infelizmente Teilhard não pode ver sua obra publicada, já que o Vaticano 
só retirou a proibição após a sua morte.


A MISSA SOBRE O MUNDO

OFERTÓRIO

Senhor, já que uma vez ainda, não mais nas florestas da França, mas nas
estepes da Ásia, não tenho pão, nem vinho, nem altar, eu me elevarei acima
dos símbolos até à pura majestade do Real, e vos oferecerei, eu, 

vosso sacerdote, sobre o altar da terra inteira, 
o trabalho e o sofrimento do  mundo.

O sol acaba de iluminar, ao longe, a franja extrema do primeiro oriente.
Mais uma vez, sob a toalha móvel de seus fogos, a superfície viva da Terra
desperta, freme, e recomeça seu espantoso trabalho. Colocarei sobre minha
patena, meu Deus, a messe esperada desse novo esforço. Derramarei no meu
cálice a seiva de todos os frutos que hoje serão esmagados.

Meu cálice e minha patena, são as profundezas de uma alma largamente aberta
a todas as forças que, em um instante, vão elevar-­se de todos os pontos do
Globo e convergir para o Espírito. - Que venham pois, a mim, a lembrança e a
mística presença daqueles que a luz desperta para uma nova jornada!

Um a um, Senhor, eu os vejo e os amo, aqueles que me destes como sustento e
como encanto natural de minha existência. Um a um, também, eu os conto, os
membros dessa outra e tão cara família que pouco a pouco as afinidades do
coração, da pesquisa científica e do pensamento juntaram à minha volta, a
partir dos elementos mais diversos. Mais confusamente, mas todos sem
exceção, eu os evoco, aqueles cuja tropa anônima forma a massa inumerável
dos vivos: aqueles que me rodeiam e me sustentam sem que eu os conheça;
aqueles que vêm e aqueles que vão; sobretudo aqueles que, na Verdade ou
através do Erro, no seu escritório, laboratório ou fábrica, crêem no
progresso das Coisas e, hoje, perseguirão apaixonadamente a luz.

Quero que nesse momento meu ser ressoe ao murmúrio profundo dessa multidão
agitada, confusa ou distinta, cuja imensidade nos espanta, - desse oceano
humano cujas lentas e monótonas oscilações lançam a inquietação nos corações
mais crentes. Tudo aquilo que vai aumentar no Mundo,
ao longo deste dia, tudo aquilo que vai diminuir, - tudo aquilo que vai
morrer, também, - eis, Senhor, o que me esforço por reunir em mim para vos
oferecer; eis a matéria de meu sacrifício, o único que vós podeis desejar.

Outrora, carregava-­se para vosso Templo as primícias das colheitas e a flor
dos rebanhos. A oferenda que esperais agora, aquela de que tendes
misteriosamente necessidade cada dia, para aplacar vossa fome, para acalmar
vossa sede, não é nada menos do que o crescimento do mundo impelido pelo
devir universal.

Recebei, Senhor, esta Hóstia total que a Criação, movida por vossa atração,
vos apresenta à nova aurora. Este pão, nosso esforço, não é em si, eu o sei,
mais que uma degradação imensa. Este vinho, nossa dor, não é ainda, ai de
mim, mais que uma dissolvente poção. Mas, no fundo dessa massa informe,
colocastes – disso estou certo, porque o sinto – um irresistível e
santificante desejo que nos faz a todos gritar, desde o ímpio ao fiel:
“Senhor, fazei-nos Um!

Porque, à falta do zelo espiritual e da sublime pureza de vossos santos,
deste-me, meu Deus, uma simpatia irresistível por tudo quanto se move na
matéria obscura, - porque irremediavelmente, reconheço em mim, bem mais que
um filho do Céu, um filho da Terra, - subirei, esta manhã, em pensamento, às
alturas, carregado das esperanças e das misérias de minha Terra-Mãe; e lá,
por força de um sacerdócio que somente Vós, creio, me destes, - sobre tudo
aquilo que, na Carne humana, se prepara para nascer ou perecer sob o sol que
se levanta, eu chamarei o Fogo.

O FOGO NO MUNDO

Aconteceu.

O fogo, mais uma vez, penetrou na Terra.

Não caiu ruidosamente sobre os cimos como o raio em seu fragor. Força o
Mestre as portas para entrar em sua casa?

Sem abalo, sem trovão, a chama iluminou tudo por dentro. Desde o coração do
menor átomo à energia das leis mais universais, ela tão naturalmente
invadiu, individual e conjuntamente, cada elemento, cada mola, cada liame de
nosso Cosmos que ele, poder-se-ia crer, inflamou-se espontaneamente.

Na Humanidade nova que hoje se engendra, O Verbo prolongou o ato sem fim de
seu nascimento; e, por virtude de sua imersão no seio do Mundo, as grandes
águas da Matéria, sem um arrepio, carregaram-se de vida. Nada estremeceu,
aparentemente, sob a inefável transformação. E, entretanto, misteriosa e
realmente, ao contato da substancial Palavra, o Universo, imensa Hóstia, se
fez Carne. Meu Deus, toda matéria é doravante encarnada, pela vossa
Encarnação.

Há tempo que nossos pensamentos e nossas experiências humanas reconheceram
as estranhas propriedades do Universo que o fazem tão semelhante a uma
Carne...

Como a Carne, ele nos atrai pelo encanto que flutua no mistério de suas
dobras e na profundidade de seus olhos.

Como a carne, ele se decompõe e nos escapa sob o trabalho de nossas
análises, de nossas quedas e de sua própria duração.

Como a Carne, ele não se abraça verdadeiramente senão no esforço sem fim
para atingí-lo sempre mais além daquilo que nos é dado.

Senhor, todos nós sentimos, ao nascer, essa mistura inquietante de
proximidade e distância. E, não há, na herança de dor e de esperança que
transmitem as idades, não há nostalgia mais desolada que aquela que faz o
homem chorar de irritação e de desejo no seio da Presença que paira,
implacável e anônima, em todas as coisas, à sua volta: "Que definitivamente
os homens A alcancem..."

Agora, Senhor, pela Consagração do Mundo, o clarão e o perfume flutuando no
Universo, tomam, em Vós, corpo e feição para mim. Aquilo que meu pensamento
hesitante entrevia, aquilo que meu coração reclamava por um desejo
inverossímil, Vós mo concedeis magnificamente: que as criaturas não sejam
somente solidárias entre si, a ponto de nenhuma poder existir sem que todas
as outras a rodeiem, - mas que sejam de talmaneira sustentadas pelo mesmo
centro real, que uma verdadeira Vida, expeimentada em comum, lhes dê
definitivamente sua consistência e sua união.

Fazei explodir, meu Deus, pela audácia de vossa Revelação, a timidez de um
pensamento pueril que nada ousa conceber de mais vasto, nem de mais vivo no
mundo, que a miserável perfeição de nosso organismo humano! Na via de uma
compreensão mais ousada do Universo, os filhos do século ultrapassam, a cada
dia, os mestres de Isarel. Vós, Senhor, Jesus, "em que todas as coisas
encontram sua consistência", revelai-Vos enfim àqueles que vos amam, como a
Alma superior e o Foco físico da Criação. Trata-se de nossa vida, não vedes?
Se eu não pudesse acreditar que vossa Presença real anima, enleva, aquece a
menor das energias que me penetram ou que me roçam, não morrria de frio,
enregelado no âmago de meu ser?

Obrigado, meu Deus, por terdes, de mim maneiras, conduzido meu olhar até
fazê-lo descobrir a imensa simplicidade das Coisas! Pouco a pouco, sob o
desenvolvimento irresistível das aspirações que depositastes em mim quando
eu era ainda uma criança, sob a influência de amigos excepcionais que
surgirm na altura exata ao longo de meu caminho para esclarecer e fortalecer
o meu espírito, sob o despertar de iniciaões terríveis e doces cujos
círculos me fizestes sucessivamente transpor, chego a nada mais poder ver
nem respirar fora do Meio onde tudo não é mais que Um.

Neste momento em que Vossa vida acaba de passar com um acréscimo de vigor no
Sacramento do Mundo, experimentarei, com uma consciência maior, a forte e
calma embriaguez de uma visão cuja coerência e harmonia não chego a esgotar.

O FOGO ACIMA DO MUNDO

Iludimo-nos tenazmente a respeito do Fogo, esse princípio do Ser, julgando
que ele sai das profundezas da Terra e que sua chama se alumia
progressivamente ao longo da brilhante esteira da Vida. Senhor, destes-me a
graça de compreender que esta visão era falsa e que, para Vos perceber, eu
deveria mudá-la completamente. No princípio, havia o poder inteligente,
amante e ativo. No princípio, era o Verbo sobernamente capaz de sujeitar a
si e modelar toda a Matéria que nascesse. No princípio, não havia o frio e
as trevas, mas o Fogo. Eis a Verdade.

Assim, pois, bem antes que de nossa noite jorre gradualmente a luz, é a luz
pré-existente que, paciente e infalivelmente, elimina nossas sombras.
Criaturas, somos por nós mesmos, Sombra e Vazio.
Vós sois, meu Deus, o próprio fundo e a estabilidade do Meio eterno, sem
duração nem espaço, em que gradualmente, nosso Universo emerge e se consuma,
perdendo os limites pelos quais nos parece tão grande. Tudo é ser, não há
senão ser em tudo, fora da gragmentação das criaturas e da oposição de seus
átomos.

Espírito ardente, Fogo fundamental e pessoal. Termo real de uma união mil
vezes mais bela e desejável que a fusão destruidora imaginada por qualquer
panteísmo, dignai-vos, esta vez ainda, descer sobre a frágil película de
matéria nova, com a qual o mundo vai se envolver hoje, para lhe dar uma
alma.

Eu sei. Não poderíamos ditar, nem mesmo antecipar o menor de vossos gestos.
De Vós, todas as iniciativas, a começar por esta de minha oração.

Verbo bilhante, Poder ardente, Vós que modelais o Múltiplo para lhe insuflar
vossa vida, baixai, eu Vos peço, sobre nós, vossas mãos poderosas, vossas
mãos previdentes, vossas mãos onipresentes, essas mãos que não tocam nem
aqui nem ali (como faria uma mão humana), mas que misturadas à profundeza e
à universalidade presente e passada das Coisas, nos atingem simultaneamente
por tudo quanto existe de mais vasto e de mais interior em nós e à nossa
volta.

Com essas mãos invisíveis, preparai, por uma adaptação suprema, para a
grande obra que meditais, o esforço terrestre cuja totalidade, reunida em
meu coração, eu vos apresento agora. Remanejai, corrigi, refundi até às
origens, ete esforço, Vós que sabeis por que é impossível que a criatura não
nasça senão sustentada pela haste de uma interminável evolução.

E agora, pronunciai sobre ele, por minha boca, a dupla e eficaz palavra, sem
a qual tudo desmorona, tudo se desata, em nossa sabedoria e em nossa
experiência, - mas com a qual tudo se reúne e tudo se consolida, a perder de
vista, em nossas especulações e nossa prática do Universo. – Sobre toda a
vida que vai germinar, crescer, florescer e amadurecer neste dia, repeti:
“Isto é o meu Corpo”. – E, sobre toda a morte pronta a corroer, fanar e
segar, ordenai (o mistério de fé por excelência!): “Isto é o meu Sangue”.

O que experimento em face e no seio do Mundo assimilado por vossa Carne,
tornado vossa Carne, meu Deus - não é nem a absorção do monista ávido de se
fundir na unidade das coisas, - nem a emoção do pagão prostrado aos pés de
uma divindade tangével, - nem o abandono passivo do quietista agitado ao
sabor das energias místicas.

Tomando dessas diversas correntes algo de sua força, sem me levar a nenhum
empecilho, a atitude na qual fixo vossa universa Presença, é uma dmirável
síntese em que se unem, corrigindo-se, três das mais temíveis paixões que
sempre podm excitar um coração humano:

Como o monista, eu mergulho na Unidade total, - mas a Unidade que me recebe
é tão perfeita que nela sei encontrar, perdendo-me, o último aperfeiçoamento
de minha individualidade.

Como o pagão, adoro um Deus palpável. Eu até toco esse Deus, por toda a
superfície e profundidade do Mundo da Matéria em que me encontro. Mas para
alcançá-lo como eu quereria (simplemente para continuar a tocá-lo), é
necessário que eu vá sempre mais longe, através e para além de qualquer
empresa, - sem poder descansar em nada - levado a cada instante pelas
criaturas e a cada instnte ultrapassando-as, - num contínuo acolhimento e
num contínuo desapego.

Como o quietista, deixo-me deliciosamente embalar pela divina Fantasia. Mas,
ao mesmo tempo, sei que a Vontade divina só me será revelada, a cada
instante, no limite de meu esforço. Eu só tocarei Deus na matéria, como
Jacó, quando tiver sido vencido por Ele.

Assim, porque me apareceu o Objeto definitivo, total, conforme o qual está
afinada minha natureza, as potências de meu sr se põem espontaneamente a
vibrar segundo uma Nota Única, incivelmente rica, onde distingo, unidas sem
esforço, as tendências mais opostas: a exaltação de agir e a alegria de
suportar; a volúpia de reter e a febre de ultrapassar; o orgulho de crescer
e a felicidade de desaparecer em alguém maior que eu.

Rico da seiva do Mundo, subo para o Espírito que me sorri para além de toda
conquista, revestido do esplendor concreto do Universo. E, perdido no
mistério da Carne divina, eu já não saberia dizer qual é a mais radiosa
destas duas bem-aventuranças: ter encontrado o Verbo para dominar a Matéria,
ou possuir a Matéria para atingir e receber a luz de Deus.

Fazei, Senhor, com que vossa descida sobre as Espécies universais seja para
mim, não somente querida e acariciada como o fruto de uma especulação
filosófica, mas que ela se torne verdadeirmente uma Presença real. Em
potência e em direito, queiramos ou não, estais encarnado no Mundo e vivemos
suspensos a Vós. Mas, de fato, falta (e quanto!) para todos nós, que Vós
estejais igualmente próximo. Levados, todos juntos, no seio de um mesmo
Mundo, formamos, não obstante, cada um, nosso pequeno Universo no qual a
Encarnação se opera independentemente, com uma intensidade e nuanças no
altar, pedimos que, para nós, a consagração se faça: "Para que se torne para
nós o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo... ". Se creio firmemente que tudo, à
minha volta, é o Corpo e o Sangue do Verbo, então para mim (e, num certo
sentido, só para mim) se produz a maravilhosa 'Diafania' que faz
transparecer objetivamente, na profundidade de todo o fato e de todo
elemento, o calor luminoso de uma mesma Vida. Mas que minha fé, por
desgraça, esmoreça logo a luz se extigue, tudo se tona obscuro, tudo se
decompõe.

No dia que começa, Senhor, acabaste de descer. Ai, que infinita diversidade
nos graus de vossa presença par os acontecimentos que se preparam e que
todos suportaremos! Nas mesmas circunstâncias exatmente, prontas a me
envolver e a envolver meus irmãos, podeis ser um pouco, muito, cada vez
mais, ou nada.

Para que nenhum veneno me prejudique hoje, para que morte alguma me elimine,
para que nenhum vinho me embriague, para que em toda criatura eu Vos
descubra e Vos sinta - Senhor, fazei que eu creia!

COMUNHÃO

Se o Fogo desceu ao coração do Mundo é, finalmente, para me tomar e para me
absorver. A partir de então, não basta que eu o contemple e que por uma fé
viva intensifique sem cessar seu ardor à minha volta. É preciso que, depois
de haver cooperado, de todas as minhas forças, com a Consagração que o faz
jorrar, eu consinta enfim na comunhão que lhe dará em minha pessoa o
alimento que ele veio finalmente procurar.

Prosto-me, meu Deus, diante de vossa Presença no Universo em chamas e, sob
os traços de tudo aquilo que encontrarei, e de tudo que me acontecerá, e de
tudo que realizarei neste dia, desejo-Vos e Vos espero.

É terrível ter nascido, isto é, encontrar-se irrevogavelmente arrebatado,
sem o ter querido, numa torrente de energia formidável que parece querer
destruir tudo quanto arrasta consigo.

Quero, meu Deus, por uma inversão de forças das quais só Vós podeis ser o
autor, que o pavor que me domina diante das alterações sem nome, prontas a
renovar meu ser, vire uma alegria transbordante de ser transformado em Vós.

Sem hesitar, primeiro, estenderei a mão para o pão ardente que me
apresentais. Neste pão, onde encerrastes o germe de todo desenvolvimento,
reconheço o princípio e o segredo do futuro que me reservais. Tomá-lo é me
entregar, eu o sei, aos poderes que me arrancarão dolorosmente de mim mesmo
para me atirar no perigo, no trabalho, na renovação contínua das idéias, no
desapego austero das afeições. Comê-lo é adquirir, por aquilo que em todas
as coisas está acima de tudo, um gosto e uma afinidade que me tornarão
doravante impossíveis as alegrias em que se acalentava minha vida. Senhor
Jesus, aceito ser possuído por Vós, e conduzido pelo inexprimível poder de
vosso Corpo ao qual estarei ligado, em direção a soledades às quais,
sozinho, jamais teria ousado subir. Instintivamente, como todo Homem,
gostaria de erguer aqui minha tenda sobre um monte escolhido. Tenho medo,
como todos os meus irmãos, do futuro excessivamente misterioso e novo para o
qual me impele a duração. E depois com eles pergunto-me ansioso: aonde vai a
vida?... Possa esta comunhão do pão com o Cristo revestido dos poderes que
dilatam o Mundo libertar-me de minha timidez e de minha indiferença.
Lanço-me, ó meu Deus, apoiado em vossa Palavra, no turbilhão das lutas e das
energias em que se desenvolverá meu poder de perceber e expeimentar vossa
Santa Presença. Aquele que amar apaixonadamente a Jesus escondido nas forças
que fazem crescer a Terra, a Terra maternalmente o elevará em seus braços
gigantes e o fará contemplar o semblante de Deus.

Se vosso reino, meu Deus, fosse deste Mundo, bastaria para Vos possuir, que
eu me confiasse aos poderes que nos fazem sofrer e morrer engrandecendo-nos
palpavelmente a nós ou àquilo que nos é mais caro em nós mesmos. Mas, posto
que o Termo em direção ao qual se move a Terra está para além não somente de
cada coisa individual, mas do conjunto das coisas - o trabalho do Mundo
consiste não em engendrar em si mesmo alguma Realidade suprema, mas em se
consumir por união num Ser pré-existente - conclui-se que, para chegar ao
centro flamejante do Universo, não basta ao Homem viver cada vez mais para
si, nem mesmo dedicar sua vida a uma causa terrestre por maior que ela seja.
O Mundo só pode finalmente se reunir a Vós, Senhor, por uma espécie de
inversão, de retorno, de excentração onde por um tempo, soçobra não somente
o êxito dos indivíduos, mas a própria aparência de todo proveito humano.
Para que meu ser seja decididamente anexado ao vosso, é preciso que morra em
mim não somente a mônada, mas o Mundo, isto é, que eu passe pela fase
dilacerante de uma diminuição que nada de tangível virá compensar. Eis por
que, recolhendo no cálice a amargura de todas as separações, de todas as
limitações, de todas as quedas estéreis, Vós mo ofereceis: "Bebei dele
todos".

Como, Senhor, recusaria este Cálice, agora que pelo pão que me fizestes
saborear, introduziu-se no âmago de meu ser a inextinguível paixão de Vos
abraçar, para além da vida, através da morte? A Consagração do Mundo já
permaneceria inacabada se não tivésseis animado com predileção, para aqueles
que crêem, as forças que matam, depois das que vivificam. Minha Comunhão
seria então incompleta (simplesmente não seria cristã) se, com os acréscimos
que este novo dia me traz, eu não recebesse, em meu nome e em nome do Mundo,
como a mais direta participação em Vós mesmo, o trabalho, surdo ou
manifesto, de enfraquecimento, de velhice e de morte que mina
incessantemente o Universo, para sua salvação ou condenação. Abandono-me
perdidamente, ó meu Deus, às temíveis ações de dissolução pelas quais vossa
divina Presença se substituirá hoje, nisso quero crer totalmente, à minha
estreita personalidade. Aquele que tiver amado apaixonadamente a Jesus
escondido nas forças que fazem morrer a Terra, a Terra se desfazendo, o
estreitará em seus braços gigantes e, com ela, ele também despertará no seio
de Deus.

ORAÇÃO

E agora, Jesus, que escondido sob os poderes do Mundo, Vos tornastes
verdadeira e fisicamente tudo para mim, tudo à minha volta, tudo em mim,
farei passar numa mesma aspiração a embriaguez daquilo que tenho e a sede
daquilo que me falta, e Vos repetirei, segundo vosso servidor, as palavras
inflamadas em que se reconhecerá sempre mais exatamente, nisso tenho fé
inabalável, o Cristianismo de amanhã:

"Senhor, encerrai-me no mais profundo das entranhas de vosso Coração. E,
quando aí me tiverdes, abrasai-me, purificai-me, inflamai-me, sublimai-me,
até a satisfação perfeita de vossos gostos, até a mais completa aniquilação
de mim mesmo."

"Senhor". Ah sim, finalmente! pelo duplo mistério da Consagração e da
Comunhão universais, encontrei assim alguém a quem possa, de todo o coração,
dar este nome: Senhor! Enquanto eu não soube ou não ousei ver em Vós, Jesus,
mais que o Homem de há dois mil ano, o Moralista sublime, o Amigo, o Irmão,
meu amor permaneceu tímido e constrangido. Amigos, irmãos, sábios, não os
temos nós tão grandes e tão requintados e mais próximos, à nossa volta? E
depois, pode o Homem se dar plenamente a uma natureza estritamente humana?
Desde sempre, o Mundo, acima de todo elemento do Mundo, havia tomado meu
coração, e eu nunca me curvara sinceramente diante de mais ninguém. Então,
durante muito tempo, mesmo crendo, errei sem saber aquilo que amava. Mas
hoje que, pela plena manifestação dos poderes supra-humanos que a
Ressurreição vos conferiu, transpareceis para mim, Mestre, através de todos
os poderes da Terra; hoje eu Vos reconheço como meu Soberano e me entrego
deliciosamente a Vós.

Estranhos caminhos os de vosso Espírito, meu Deus! - Quando, há dois
séculos, começou a se fazer sentir em vossa Igreja, a atração distinta de
vosso Coração, pôde parecer que o que seduzia as almas era a descoberta em
Vós de um elemento mais determinado, mais circunscrito que a vossa própria
Humanidade. Ora, eis que agora, súbita inversão: torna-se evidente que pela
"revelação" de vosso Coração, Vós quisestes, acima de tudo, Jesus, fornecer
ao nosso amor o meio de escapar do que era estreito demais, preciso demais,
limitado demais na imagem que fazíamos de Vós. No centro de vosso peito, não
percebo senão uma fornalha; e quanto mais fixo esta fornalha ardente, tanto
mais me parece que à volta os contornos de vosso Corpo se fundem, crescendo
além de toda medida, até não se distinguirem mais em Vós outros traços que
os da figura de um Mundo incendiado.

Cristo glorioso! Influência secretamente difusa no seio da Matéria e Centro
deslumbrante em que se ligam todas as fibras inúmeras do Múltiplo;
Potência implacável como o Mundo e quente como a Vida; Vós que tendes a
fronte de neve, os olhos de fogo, os pés mais irradiantes que o ouro em
fusão; Vos cujas mãos aprisionam as estrelas, Vós que sois o primeiro e
o último, o vivo, o morto e o ressuscitado: Vós que reunis em vossa unidade
todos os encantos, todos os gostos, todas as forças, todos os estados: é por
Vós que meu ser chamava com um desejo tão vasto quanto o Universo: Vós sois
verdadeiramente meu Senhor e meu Deus!

"Encerrai-me em Vós, Senhor." Ah! eu creio (e tanto que essa fé se tornou um
dos fundamentos de minha vida íntima): trevas absolutamente exteriores a Vós
seriam umpuro nada. Nada pode subsistir fora de vossa Carne, Jesus; a tal
ponto que mesmo aqueles que se encontram rejeitados fora de vosso amor se
beneficiam ainda, para sua infelicidade, do suporte de vossa presença.
Estamos todos irremediavelmente em Vós, Meio universal de consistência e de
vida! - Mas justamente porque não somos coisas definitivamente prontas que
possam ser concebidas indiferentemente como próximas ou afastadas de Vós;
justamente porque em nós o sujeito da união cresce com a própria união que
nos entrega progressivamente a Vós; - em nome daquilo que há de mais
essencial em meu ser, Senhor, escutai o desejo desta coisa que ouso chamar
minha alma, ainda que, a cada dia que passa, eu compreenda o quanto ela é
maior do que eu; e para estancar minha sede de existir - através das zonas
sucessivas de vossa Substância profunda - atraí-me até as dobras íntimas do
Centro de vosso Coração.

Mais profundo sois encontrado, Mestre, mais vossa influência se descobre
universal. Sob este aspecto poderia apreciar, a cada instante, o quanto
avancei em Vós. Quando eu visse todas as coisas guardando à minha volta seu
sabor num único Elemento, infinitamente próximo e infinitamente distante, -
quando, aprisionado na intimidade ciumenta de um santuário divino, eu me
sentisse entretanto errar livremente pelo céu de todas as criaturas, então
saberia estar próximo do lugar central para onde converge o coração do Mundo
na irradiação descendente do Coração de Deus.

Nesse ponto de universal abrasamento, agi sobre mim, Senhor, pelo fogo
reunido de todas as ações interiores e exteriores que, provadas menos perto
de Vós, seriam neutras, equívocas ou hostis; mas que, animadas por uma
Energia "que tudo pode dominar", tornam-se, nas profundezas físicas de vosso
Coração, os anjos de vossa vitoriosa operação. Por uma combinação
maravilhosa, com vossa atração, exaltai - e depois desgostai - meu coração
do encanto das criaturas e da sua insuficiência, de sua doçura e de sua
maldade, de sua decepcionante fraqueza e de seu espantoso poder; ensinai-me
a verdadeira pureza, aquela que não é separação anemizante das coisas, mas
um impulso através de todas as belezas; revelai-me a verdadeira caridade,
aquela que não é o medo estéril de fazer o mal, mas a vontade vigorosa de
forçar, todos juntos, as portas da vida; dai-me, enfim, dai-me acima de
tudo, por uma visão sempre maior de vossa onipresença, a paixão
bem-aventurada de descobrir, de fazer e de suportar sempre um pouco mais o
MUndo, a fim de penetrar sempre mais em Vós.

Toda minha alegria e meu êxito, toda a minha razão de ser e meu gosto de
viver, meu Deus,
estão suspensos a essa visão fundamental de vossa conjunção com o Universo.
Que outros anunciem os esplendores de vosso puro Espírito! Para mim,
dominado por uma vocação que penetra até ás últimas fibras de minha
natureza, eu não quero, eu não posso dizer outra coisa que os inúmeros
prolongamentos de vosso Ser encarnado através da matéria: jamais poderia
pregar senão o mistério de vossa Carne, ó Alma que transpareceis em tudo o
que nos rodeia!

Ao vosso Corpo, em toda sua extensão, isto é, ao Mundo tornado por vosso
poder e por minha fé o crisol magnífico e vivo em que tudo aparece para
renascer, - por todos os recursos que fazem jorrar em mim a vossa atração
criadora, por minha ciência fraca demais, por meus laços religiosos, por meu
sacerdócio e (no que mais insisto) pelo fundo de minha convicção humana -
para nele viver e morrer, - eu me entrego, ó Jesus.

Ordos, 1923.
(Em Hino do Universo, 1923)



meu agradecimento especial ao amigo Gilberto que me ajuda a manter a lista de discussão por e-mails,  Teilhard de Chardin, no Yahoo.