O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

30 de outubro de 2013

Aquilo que buscamos , sem perceber, já somos .




" O primeiro passo que damos em direção a Deus é o primeiro passo que nos afasta d'Ele .


Pare de procurar a Verdade , seja verdadeiro .


Pare de procurar o Amor , ame .

Pare de procurar a Consciência , seja consciente .

Pare de procurar o Despertar , desperta , seja vigilante .

Pare de procurar a Vida , seja vivente .

Pare de procurar a Luz , abra seus olhos .

Pare de procurar Deus , abra seu coração .

Aquilo que buscamos , nós já o somos ."

" A SABEDORIA DO MONTE ATHOS " JEAN-YVES LELOUP

27 de outubro de 2013

As Memórias de Hans Küng, o grande teólogo de nosso tempo.

Rosino Gibellini

As memórias  de Küng são verdadeiramente interessantes, porque a história da sua atividade, embora bem caracterizada sob o perfil pessoal, é sempre apresentada no contexto da história do próprio tempo, na história da cultura, da teologia e da Igreja.
A análise é do teólogo italiano Rosino Gibellini, doutor em teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e em filosofia pela Universidade Católica de Milão. O artigo foi publicado no blog da Editora Queriniana, 25-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.
Na Buchmesse [Feira do Livro] de Frankfurt 2013, chegou a primeira cópia do terceiro livro conclusivo das Memórias deHans Küng, que foi apresentado em outubro em Munique, Tübingen e na cidade natal do teólogo e escritor suíço,Lucerna.
O primeiro volume, Erkämpfte Freiheit, "Liberdade conquistada", vai de 1928 a 1968, ainda no fervor do Concílio Vaticano II; o segundo volume, Umstrittene Wahrheit, "Verdade contestada", percorre os anos 1968-1980 e reconstrói com objetividade, como foi reconhecido, o seu caso canônico e teológico com as autoridades romanas, que se conclui – experiência difícil que ele iria superar com o seu valor teológico reconhecido internacionalmente – com a remoção damissio canonica da Faculdade de Teologia Católica de Tübingen.
Küng continuou a sua docência no Instituto de Pesquisa Ecumênica da Universidade de Tübingen, onde ele teve como seus colegas Bloch, Ratzinger, Moltmann, mas passou, na sua atividade acadêmica e de escritor, da fase eclesiológica à fase do diálogo intercultural e inter-religioso.
O terceiro volume de cerca de 750 páginas traz como título Erlebte Menschlichkeit, "Humanidade vivida" e recolhe a sua história das últimas três décadas, de 1980 a julho de 2013, como marca a data da Introdução, composta há 85 anos, onde ele escreve: "Mas no fim eu vejo as minhas últimas três décadas em uma luz totalmente positiva. Eu experimentei muita humanidade no sentido mais verdadeiro da palavra e tive que me comprometer contra todas as formas de desumanidade por um plus de humanidade: pela unidade das Igrejas cristãs, pela paz das religiões, pela comunidade das nações". E acrescenta: "Porém, à humanidade também pertence a mortalidade". O pensamento da morte atravessa essas páginas até o comovente Epílogo do livro e das Memórias, em que o autor faz algumas confidências aos seus leitores sobre as suas atuais dificuldades de saúde.
As Memórias de Küng são verdadeiramente interessantes, porque a história da sua atividade, embora bem caracterizada sob o perfil pessoal, é sempre apresentada no contexto da história do próprio tempo, na história da cultura, da teologia e da Igreja. Sempre bem informado e, creio eu, geralmente bem orientado na avaliação. Nessas três décadas, Küng esteve presente e ativo, além de como professor, como conselheiro na ONU, na Unesco e no Parlamento das Religiões. Ele tem uma visão ecumênica, internacional, planetária. É um intérprete cristão da globalização.
Küng também é um escritor comprovado e divide pedagogicamente o múltiplo material das últimas três décadas em 12 seções: 1. Chegada em novas margens (depois do processo romano); 2. Uma nova visão (para além da eclesiologia); 3.Explorações em novas terras (as culturas e as religiões); 4. A minha década americana (com a docência em Chicago e os contatos e colaborações no vasto e movimentado canteiro de obras teológico norte-americano); 5. O meu mundo do Islã; 6. O meu mundo do judaísmo; 7. O mundo dos Oceânicos, Africanos e Índios; 8. O meu mundo das Religiões da Índia; 9. O meu mundo das Religiões da China; 10. O projeto weltethos: um Ethos para a humanidade; 11. O problema permanente da reforma das Igrejas; 12. Na noite da vida.
Nessas sequências, que tendem ao projeto da "Ética Global", que representa a herança do grande teólogo cristão (e católico), chamam a atenção as páginas dedicadas ao seu colega Joseph Ratzinger, que Küng encontrou como Papa Bento XVI em Castel Gandolfo em um amigável dia de 2005, aqui descrita pela primeira vez nos seus conteúdos e na sua atmosfera humana. Küng seguiu e comenta sobre os passos do pontificado do Papa Bento XVI.
Não falta a carta do Papa Francisco (26-05-2013), reproduzida no texto original em espanhol e em tradução alemã, enviada em resposta a uma carta sua:

"Caro Dr. Hans Küng,
Recebi a sua carta do dia 13 deste mês e um artigo com dois livros que lerei com gosto. Agradeço-lhe a sua amizade.
Fico à sua disposição. Por favor, reze por mim, eu preciso muito.
Jesus o abençoe e a Santa Virgem o ajude.
Fraternalmente,
Francisco" (pp. 674-675).

O Epílogo, comovente e confidencial, está sob o sinal de 2Tm 4, 6: "Chegou o momento de deixar esta vida". E aqui, aos seus leitores e leitoras, ele faz uma confidência de estar afetado, há dois anos, além de por outras doenças, de uma forma de Parkinson, que lhe compromete a visão e o limita na sua atividade. Ele se confia a Deus com abandono (Gelassenheit) e confiança, renunciando a outros escritos (salvo breves textos, na medida do possível), apreciando a música, a natureza e o conversar, cuidando-se (com uma dezena de comprimidos por dia e com os exercícios de fisioterapia para resistir ao mal incurável).

A última página de uma vida tão ativa e produtiva é marcada por uma oração intensa, que ele define como "O meu último Amém", e que reproduzimos em uma tradução nossa.

"A nossa vida é breve, a nossa vida é longa
e com grande admiração estou diante de uma vida
que teve as suas reviravoltas inesperadas, e também a linearidade de um caminho:
uma vida de mais de 31 mil dias, bonitos e escuros,
iridescente, que me trouxe muitas experiências,
para o bem assim como para o mal,
uma vida diante da qual eu posso dizer: foi bom assim.
Eu recebi incomensuravelmente mais do que pude dar,
todas as minhas boas intuições e as minhas boas ideias,
as minhas boas decisões e ações
me foram dadas, possibilitadas pela graça.
E mesmo onde eu decidi erroneamente e agi mal,
Tu me guiaste de modo invisível.
Peço-Te perdão por tudo onde eu errei.
Agradeço-Te, inaferrável, oniabrangente e todo dominante,
princípio original, sustento original e sentido original do nosso ser,
que nós chamamos de Deus,
Tu, o grande mistério indizível da nossa vida,
Tu, o infinito em toda finitude,
Tu, o inexprimível em todo discurso nosso.
Eu te agradeço por esta vida com todas as suas escuridões e estranhezas.
Eu te agradeço por todas as experiências, as claras e as obscuras.
Eu te agradeço por tudo o que foi exitoso,
e por tudo o que no fim tu transformaste em bem.
Eu te agradeço porque a minha vida pôde se tornar uma vida exitosa,
não só para mim, mas também para aqueles
que puderam participar desta vida.
O plano sobre o qual corre a nossa vida
com todas as suas errâncias e reviravoltas só Tu o conheces.
Não podemos reconhecer desde o princípio essa Tua intenção conosco.
Não podemos ver, como Moisés e os Profetas,
o Teu rosto neste mundo.
Mas, assim como Moisés na cavidade da rocha
pôde ver às suas costas o Deus que passava,
assim também nós, retrospectivamente,
podemos reconhecer e experimentar
a Tua mão, ó Senhor, na nossa vida;
reconhecer e experimentar que Tu nos sustentaste e nos guiaste
e que o que nós mesmos decidimos e fizemos
sempre de novo foi por Ti reconduzido ao bem.
Ponho o meu futuro, com abandono e confiança, nas Tuas mãos.
Poderia ser de muitos anos ou de poucas semanas.
Alegro-me por cada novo dia que eu recebo como dom
e confio a Ti, cheio de confiança, sem preocupação e angústia,
tudo o que me espera.
Tu estás no início do início, e ao centro do centro
assim como no fim do fim, e no fim dos fins.
Agradeço-Te, meu Deus,
porque és misericordioso,
e a tua bondade dura para sempre.
Amém. Assim seja" (pp. 702-703).

fonte : http://www.ihu.unisinos.br/

16 de outubro de 2013

16 de outrubo dia de um grande amigo: Geraldo



Geraldo foi destas pessoas especiais. Ficou órfão muito cedo, aos 12 anos. Queria ser padre, mas como era muito fraquinho, pobre e doente ninguém o queria por perto.

Mas Geraldo era um guerreiro e lutava. Lutava para sustentar sua familia, e foi assim que aprendeu o oficio do pai só de observar e pode tornar-se muito jovem um alafaiate.

Como o desejo de pertencer à igreja o fustigasse acabou aproveitando uma visita dos padres de uma nova congregação, os redentoristas, a sua cidade, para candidatar-se.
Não foi aceito mais uma vez. Ninguém o queria.

Mas desta vez ele resolveu fazer diferente. Arrumou sua trouxa, despediu-se da mãe e foi atrás dos redentoristas pela estrada azucrinando a paciência destes até que resolveram aceitá-lo.
Andes de partir disse a sua mãe: vou para tornar-me santo !

Sua história é muito curiosa.
Quando foi aceito na ordem seguiu com um bilhete 

onde estava escrito: 
segue junto a este bilhete, um irmão imprestável. 
Tão imprestável que virou santo!

Há inúmeros relatos incomuns de suas façanhas o que lhe fez ser merecedor do titulo de "doidinho de Deus ". E era o que ele realmente parecia. Desviava alimentos e pães do convento para distribuir entre os pobres. Não sabia dizer não a um faminto ou necessitado. Aprontava todas para seus superiores. Mas em tudo ele buscava seguir o seu maior amigo desde a infância: Jesus.


Sofreu muito.Primeiro em sua casa, passou necessidade e humilhação. Já na ordem religiosa foi alvo de calúnias o que fez com que Santo Afonso o privasse da comunhão por um longo período. Mas tudo resolveu-se.

Não conseguiu ser padre, foi sempre um irmão religioso na ordem..
Sem dúvida ele foi um grande canal desta Copiosa Redenção.

Morreu jovem e hoje é comemorado como o santo das mães, dos pobres e necessitados.

Geraldo Magela, "Gerardiello" um atrapalhado jovem que buscava a santidade, seguindo os passos de Jesus.


Esse é Geraldo, o meu amigo.

7 de outubro de 2013

Hans Küng por ele mesmo


"A vida continua, mas onde nos leva? Mais cedo ou mais tarde, ela termina, e eis que chega o momento de examinar a situação, eis o tempo certo para publicar o terceiro e último volume das minhas memórias". É assim que o professor Hans Küng, o mais renomado e influente teólogo católico crítico do mundo, exorta no prefácio do seu livro que é publicado agora na Alemanha, Erlebte Menschlichkeit. Erinnerungen (em tradução livre: Humanidade vivida. Memórias), Pieper Verlag, do qual antecipamos alguns trechos.
A reportagem é de Andrea Tarquini, publicada no jornal La Repubblica, 02-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um livro extraordinário, porque revela pela primeira vez a correspondência entre Küng e o Papa Francisco sobre a reforma da Igreja. Portanto, esse livro, ainda mais do que os volumes anteriores, Erkämpfte Wahrheit (Verdade conquistada) e Umstrittene Wahrheit (Verdade contestada), leva-nos ao coração dos dramas e das esperanças atuais da Igreja.
"Küng através de três papados" poderia ser outro título do livro. Depois do ostracismo sob Wojtyla, eis o teólogo rebelde de Tübingen esperar em uma retomada do diálogo com o Vaticano de Ratzinger. Esperança rapidamente desapontada.
Mas eis depois a surpresa. Ratzinger encontra a coragem de renunciar, e o conclave surpreendentemente elegeBergoglio. Que escolhe o nome da esperança, Francisco, e dá passos de reforma. Trocando cartas e sinais com o grande teólogo rebelde.
Epístolas extraordinárias, sem qualquer formalidade: o papa que veio de Buenos Aires assina "Francisco" e ponto final, e nunca perde a oportunidade de exaltar em cada linha o papel crítico desse teólogo que há décadas a Cúria havia banido.
De todos os modos, também um thriller de primeira classe, em suma, mas escrito por um intelectual da Igreja.

5 de outubro de 2013

De Bento a Francisco: assim renasceu a minha esperança na Igreja.




Francisco poderá realizar na Igreja de hoje, contra a Cúria, os ideais de fé de Francisco de Assis:PaupertasHumilitasSimplicitas? Uma reforma da Igreja não enfrentará sérias resistências? Certamente, o papa irá enfrentar forças contrárias, acima de tudo na Cúria. Os homens do poder no Vaticano não vão abandonar voluntariamente o poder que têm em mãos desde a Idade Média.
A afirmação é do professor Hans Küng, o mais renomado e influente teólogo católico crítico do mundo, em seu livro recém-publicado na Alemanha, Erlebte Menschlichkeit [Humanidade vivida] (Ed. Piper Verlag), do qual nós antecipamos alguns trechos. Küng é professor emérito da Universidade de Tübingen,Alemanha e fundador da Fundação Ética Mundial. Seu último livro em português é A Igreja tem salvação?(Paulus, 2012).
O texto foi publicado no jornal La Repubblica, 02-10-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Antes, eu via a morte na frente da vida. Hoje, ao contrário, eu vejo a minha vida pelas costas da morte. Eu não sei quando e como vou morrer. Talvez, serei chamado de repente, e me será poupada uma escolha individual. Seria bom assim. Mas, no caso de que eu mesmo deva decidir pessoalmente sobre a minha morte, peço a todos que se atenham aos meus desejos e vontades. Isso não deve acontecer em uma atmosfera triste e desconsolada, naquele clima em que as reportagens de TV descrevem a morte escolhida por aqueles que se voltam para associações de ajuda para a doce morte. O meu desejo é de ser acompanhado e consolado no espírito, na minha casa em Tübingen ou no lago Sursee.
Acompanhado na última viagem pelos meus colegas, pelas minhas colaboradoras, pelos meus colaboradores, assim gostaria de dizer adeus de modo digno. Depois, uma alegre missa de ação de graças poderia ser celebrada na paróquia, com o canto "Agora, agradeçam todos a Deus", e depois viria o meu enterro no cemitério da cidade de Tübingen, onde, há dez anos, eu procurei um túmulo para mim ao lado de Walter e Inge Jens... O que resta de um estudioso que não é capaz de ler e de escrever? Eu não quero continuar vivendo como uma sombra de mim mesmo. Uma pessoa tem o direito de morrer se não tem mais nenhuma esperança de continuar vivendo de modo humano segundo a sua concepção pessoal.
A Inquisição de Ratzinger
Em 1981, o cardeal Joseph Ratzinger foi convocado de Munique a Roma: como prefeito do Santo Ofício, hoje chamadoCongregação para a Doutrina da Fé... Sobre esse período da sua vida, quase um quarto de século até a sua eleição a papa, Joseph Ratzinger, na sua autobiografia. não diz uma palavra. Por que esse silêncio? Nos fatos, ele apoiou de todos os modos possíveis a linha restauradora conservadora de João Paulo II e foi, portanto, o meu mais poderoso antagonista em todo o gigantesco aparato da maior multinacional religiosa do mundo. O fato de que os "serviços" da Cúria, com a ajuda das modernas técnicas de comunicação, se tornaram muito "ágeis", já me tinha sido apontado pelo cardeal Montini, sobPio XII.
Bento XVI convida o seu crítico
Eu pensei a respeito por um longo tempo, depois enviei a carta. Eu propunha um encontro com Bento XVI para falar sobre as questões da fé, aquelas que nos unem e não aquelas que nos dividem. A resposta veio dele: "Agradeço-lhe pela amigável carta. Naturalmente, estou pronto para uma conversa com o senhor". No dia 31 de agosto de 2005, o secretário particular do papa, Dr. Georg Gänswein, me telefonou para combinar a data do encontro.
encontro com o papa foi intenso. Revi o Ratzinger que eu lembrava de anos antes: amável, atento, amigável, sempre rápido para entender, sempre pronto para uma risada espontânea. "E, então, sobre o que queremos falar?", perguntou-me. Eu respondi: "Concordamos em não falar sobre questões controversas, mas sim sobre questões-chave da Igreja e da sociedade". Falamos longamente. Ele concordou com a importância de um Ethos mundial. Também falamos dos debates sobre a homossexualidade. À época, na Itália, se discutia o registro das uniões gays, favorecida por Romano Prodi. Infelizmente, o Vaticano, então, preferia, em vez de Prodi, o frívolo Berlusconi, que, teoricamente, defendia a moral cristã e depois organizava festas eróticas até mesmo com menores.
O adeus ao Concílio
Joseph Ratzinger como papa deixou escapar a oportunidade histórica de transformar o Concílio Vaticano II na bússola da Igreja. Ao contrário, minimizou os textos do Concílio e os interpretou contra os Padres do Concílio. Ele falou de "hermenêutica da continuidade". No dia 15 de dezembro de 2008, ele removeu a excomunhão contra os bispos ordenados ilegalmente e fora da Igreja pela fraternidade ultraconservadora dos irmãos de Pio, que contesta o Concílio nos pontos centrais e conta com expoentes como o bispo Richard Williamson, negacionista do Holocausto, o que reabriu um conflito entre o papa e o judaísmo. Depois, reintroduziu a missa medieval tridentina e a eucaristia administrada em latim de costas ao povo dos fiéis.
A renúncia surpreendente de Bento: volta a esperança
O fato de que o meu ex-companheiro de estudos teológicos, Joseph Ratzinger, estava pronto para abdicar é algo que eu nunca duvidei. Ele é um homem marcado pelo senso do dever e da responsabilidade. Ele já havia falado disso em uma conversa com um jornalista. Mas o momento do anúncio da sua renúncia me surpreendeu totalmente: foi o dia 11 de fevereiro de 2013, justamente a festa alemã de Rosenmontag [o carnaval alemão], razão pela qual muitos de nós pensamos que fosse uma brincadeira de carnaval. Mas Ratzinger explicou a sua renúncia com argumentos sérios: as suas forças estavam começando a faltar, ele não se sentia mais capaz de garantir essa responsabilidade. Eu só posso me identificar na sua situação: ele enfrentava críticas crescentes, sofria cada vez mais com o escândalo dos abusos sexuais, depois veio o caso Vatileaks. Por isso eu comentei a corajosa decisão de Joseph Ratzinger com grande elogio e respeito.
Papa Francisco: um paradoxo?
Eu tinha decidido renunciar de todo cargo no meu 85º aniversário. Eu não esperava que se realizaria o sonho de um novo despertar da Igreja, como aconteceu com João XXIII. Mas, no dia 19 de março de 2013, meu aniversário e onomástico deRatzinger, um novo papa com o surpreendente nome de Francisco assume o cargo. Quem sabe se Jorge Mario Bergoglio pensou em por que nenhum outro papa escolheu o nome de Francisco. Em todo o caso, o argentino sabia bem que estava se referindo a Francisco de Assis, o filho de ricos mercadores que optou por abandonar toda riqueza.Bergoglio logo mudou de estilo: nada mais de mitras com ouro e pedras preciosas, nada de púrpuras e mantos, nada de arminhos, nada de sapatos vermelhos feitos sob medida, nada de trono suntuoso com a tiara.
Logo me fiz perguntas: se e como Francisco poderia realizar na Igreja de hoje, contra a Cúria, os ideais de fé de Francisco de AssisPaupertasHumilitasSimplicitas. Põe-se outra pergunta: uma reforma da Igreja não enfrentará sérias resistências? Certamente, o papa irá enfrentar forças contrárias, acima de tudo na Cúria. Os homens do poder no Vaticano não vão abandonar voluntariamente o poder que têm em mãos desde a Idade Média.
Um sinal de esperança de Roma
Depois de poucas semanas desde a eleição, o Papa Francisco convocou oito cardeais a Roma para estudar a reforma da Igreja e da Cúria. Uma nova forma de direção colegial da Igreja se anuncia. Tomei esse evento como uma oportunidade para escrever uma carta pessoal ao Papa Francisco no dia 13 de maio de 2013. Carta em que expressei a minha alegria pela primeira eleição de um latino-americano e de um jesuíta como papa, e sublinhei a minha alegria com a mudança de estilo no espírito de São Francisco de Assis. Depois escrevi a passagem-chave: "Para sair da atual crise da nossa Igreja, são necessárias algumas reflexões, também sobre o âmbito moral, e acima de tudo reformas estruturais. Será muito difícil impor isso. Por isso, desejo-lhe muita sabedoria, coragem e força para resistir".
Para minha surpresa, o Papa Francisco me respondeu. Com uma carta pessoal escrita à mão. Ele assina: "F., Domus Sanctae Marthae". Eis o texto: "Gentilíssimo Dr. Küng, recebi a sua carta do dia 13 juntamente com um artigo e dois livros, que com gosto irei ler. Obrigado de coração pela sua amizade. Fico à sua disposição. Por favor, reze por mim, porque eu realmente preciso. Que Jesus o abençoe, e que a Virgem Maria o ajude. Fraternalmente, Francisco".
No dia 28 de junho, eu agradeci ao papa e lhe contei sobre uma carta aberta minha aos cardeais antes do conclave de 2005, acolhida com tensão no Vaticano. Naqueles mesmos dias, um alto prelado foi preso com dois cúmplices por transações ilegais no IOR. Pouco depois, a cúpula do banco teve que se demitir. O Papa Francisco já tinha nomeado uma comissão independente sobre o banco vaticano. Muitas escolhas são tomadas por ele esquivando-se da Cúria. São todos sinais de que esse papa quer fazer com que as palavras sejam seguidas pelos fatos e parece decidido a verdadeiras reformas.

4 de outubro de 2013

Homilia do papa Francisco em Assis em 04-10-2013

Missa na Praça São Francisco de Assis
Sexta-feira, 4 de outubro de 2013

“Eu te bendigo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondestes estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequenos” (Mt 11, 25).
Paz e bem a todos! Com esta saudação franciscana agradeço-vos por terem vindo aqui, nesta praça, cheia de história e de fé, para rezarem juntos.
Hoje também eu, como tantos peregrinos, vim aqui para bendizer o Pai por tudo aquilo que quis revelar a cada um destes “pequenos” de que fala o Evangelho: Francisco, filho de um rico comerciante de Assis. O encontro com Jesus o levou a despojar-se de uma vida confortável e despreocupada para casar-se com a “Mãe Pobreza” e viver como verdadeiro filho do Pai que está nos céus. Esta escolha, por parte de São Francisco, representava um modo radical de imitar Cristo, de revestir-se Daquele que, rico que era, fez-se pobre para enriquecer-nos por meio da sua pobreza (cfr Cor 8, 9). Em toda a vida de Francisco, o amor pelos pobres e a imitação de Cristo pobre são dois elementos unidos de modo indissociável, as duas faces de uma mesma moeda.
O que testemunha São Francisco a nós, hoje? O que nos diz, não com as palavras – isto é fácil – mas com a vida?
1. A primeira coisa que nos diz, a realidade fundamental que nos testemunha é esta: ser cristãos é uma relação vital com a Pessoa de Jesus, é revestir-se Dele, é assimilação a Ele.
De onde parte o caminho de Francisco rumo a Cristo? Parte do olhar de Jesus na cruz. Deixar-se olhar por Ele no momento em que doa a vida por nós e nos atrai para Ele. Francisco fez esta experiência de modo particular na pequena Igreja de São Damião, rezando diante do crucifixo, que também eu pude venerar hoje. Naquele crucifixo, Jesus não aparece morto, mas vivo! O sangue escorre das feridas das mãos, dos pés e dos lados, mas aquele sangue exprime vida. Jesus não tem os olhos fechados, mas abertos, grandes: um olhar que fala ao coração. E o crucifixo não nos fala de derrota, de fracasso; paradoxalmente nos fala de uma morte que é vida, que gera vida, porque fala de amor, porque é Amor de Deus encarnado, e o Amor não morre, antes, vence o mal e a morte. Quem se deixa olhar por Jesus crucificado é re-criado, transforma-se uma “nova criatura”. Daqui parte tudo: é a experiência da Graça que transforma, o ser amado sem mérito, mesmo sendo pecadores. Por isto Francisco pode dizer, como São Paulo: “Quanto a mim, não pretendo, jamais, gloriar-me, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Gal 6,14).
Nós nos dirigimos a ti, Francisco, e te pedimos: ensina-nos a permanecer diante do Crucifixo, a deixar-nos guiar por Ele, a deixar-nos perdoar, recriar pelo seu amor.
2. No Evangelho, escutamos estas palavras: “Vinde a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei. Tomai meu jugo sobre vós e recebei minha doutrina, porque eu sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 28-29).
Esta é a segunda coisa que Francisco nos testemunha: quem segue Jesus, recebe a verdadeira paz, aquela que só Ele, e não o mundo, pode nos dar. São Francisco é associado por muitos à paz, e é justo, mas poucos seguem em profundidade. Qual é a paz que Francisco acolheu e viveu e nos transmite? Aquela de Cristo, passada através do amor maior, aquela da Cruz. É a paz que Jesus Ressuscitado deu aos discípulos quando apareceu em meio a eles (cfr Jo 20, 19.20).
A paz franciscana não é um sentimento “piegas”. Por favor: este São Francisco não existe! E nem é uma espécie de harmonia panteísta com as energias do cosmo… Também isto não é franciscano! Também isto não é franciscano, mas é uma ideia que alguns construíram! A paz de São Francisco é aquela de Cristo, e a encontra quem “toma sobre si o seu jugo”, isso é, o seu mandamento: Amai-vos uns aos outros como eu vos amei (cfr Gv 13,34; 15,12).  E este jugo não se pode levar com arrogância, com presunção, com soberba, mas somente se pode levar com mansidão e humildade de coração.
Dirigimo-nos a ti, Francisco, e te pedimos: ensina-nos a sermos “instrumentos da paz”, da paz que tem a sua origem em Deus, a paz que nos trouxe o Senhor Jesus.
3. Francisco inicia o Cântico assim: “Altíssimo, onipotente, bom Senhor… Louvado sejas, com todas as criaturas” (FF, 1820). O amor por toda a criação, pela sua harmonia! O Santo de Assis testemunha o respeito por tudo aquilo que Deus criou e como Ele o criou, sem experimentar sobre a criação para destruí-la; ajudá-la a crescer, a ser mais bela e mais similar àquilo que Deus criou. E, sobretudo, São Francisco testemunha o respeito por tudo, testemunha que o homem é chamado a proteger o homem, que o homem esteja no centro da criação, no lugar onde Deus – o Criador – o quis. Não instrumento dos ídolos que nós criamos! A harmonia e a paz! Francisco foi homem de harmonia, homem de paz. Desta Cidade da Paz, repito com a força e a mansidão do amor: respeitemos a criação, não sejamos instrumentos de destruição! Respeitemos cada ser humano: cessem os conflitos armados que ensanguentam a terra, silenciem-se as armas e então o ódio dê lugar ao amor, a ofensa ao perdão e a discórdia à união. Ouçamos o grito daqueles que choram, sofrem e morrem por causa da violência, do terrorismo ou da guerra, na Terra Santa, tão amada por São Francisco, na Síria, no Oriente Médio, em todo o mundo.
Dirigimo-nos a ti, Francisco, e te pedimos: alcançai-nos de Deus o dom que neste nosso mundo nos seja harmonia, paz e respeito pela Criação!
Não posso esquecer, enfim, que hoje a Itália celebra São Francisco como seu Patrono. Eu dou as felicitações a todos os italianos, na pessoa do Chefe do governo, aqui presente. Exprime-o também o tradicional gesto da oferta do óleo para a lâmpada votiva, que este ano é da Região da Umbria. Rezemos pela nação italiana, para que cada um trabalhe sempre pelo bem comum, olhando para aquilo que une mais do que para aquilo que divide.
Faço minha a oração de São Francisco por Assis, pela Itália, pelo mundo: “Peço-te então, ó Senhor Jesus Cristo, pai das misericórdias, de não querer olhar à nossa ingratidão, mas de recordar-te sempre da superabundante piedade que [nesta cidade] mostraste, a fim de que seja sempre o lugar e a casa daqueles que verdadeiramente te conhecem e glorificam o teu nome bendito e gloriosíssimo nos séculos dos séculos. Amém” (Espelho de perfeição, 124: FF, 1824).

1 de outubro de 2013

“A corte é a lepra do papado”

O jornal La Repubblica, 01-10-2013, publica entrevista que o papa Francisco concedeu ao jornalista Eugenio Scalfari.Scalfari escreveu duas cartas a Bergoglio, as quais foram respondidas pelo próprio Papa, que agora aceitou o convite do jornalista, fundador e primeiro diretor do jornal La Repubblica.
A tradução é da IHU On-Line.
Eis a entrevita.
Disse-me o papa Francisco: “O mais grave dos males que afligem o mundo nestes anos é o desemprego dos jovens e a solidão em que são deixados os idosos. Os idosos necessitam de cuidado e de companhia. Os jovens precisam de trabalho e de esperança, mas não têm nenhum dos dois. Diga-me: pode-se viver jogado fora do presente? Sem memória do passado e sem desejo de projetar-se no futuro construindo um projeto, um futuro, uma família? É possível continuar assim? Isto, segundo me parece, é o problema mais urgente que a Igreja tem pela frente”.
Santidade, lhe digo, é um problema sobretudo político, diz respeito aos Estados, aos governos, aos partidos, às organizações sindicais.
Sem dúvida, o senhor tem razão, mas diz respeito à Igreja, sobretudo à Igreja, porque esta situação não fere somente os corpos, mas também as almas. A Igreja deve sentir-se responsável tanto pelas almas quanto pelos corpos.
Santidade, o senhor diz que a Igreja dever ser responsável. Devo deduzir que a Igreja não está consciente deste problema e que o senhor a incita nesta direção?
Em grande medida, existe a consciência, mas não o bastante. Eu desejo que ela seja maior. Não é somente este problema que temos pela frente, mas é o mais urgente e o mais dramático.
O encontro com o Papa ocorreu na terça-feira passada, na sua residência de Santa Marta, numa pequena sala, austera, com uma mesa e cinco ou seis cadeiras, um quadro na parede. Foi precedida por um telefonema que não mais esquecerei enquanto eu estiver vivo.
Eram duas e meia da tarde. Tocou o telefone, e a voz um pouco agitada da minha secretária me disse: “O Papa está na linha e o passo imediatamente”.
Surpreso, ouço imediatamente a voz de Sua Santidade do outro lado da linha, que diz:
“Bom dia, sou Papa Francisco.”
Bom dia, Santidade – digo, e depois – estou surpreso. Não esperava que me telefonasse.
Por que surpreso? O senhor me escreveu uma carta pedindo para me conhecer pessoalmente. Eu tinha o mesmo desejo e aqui estou para agendar o encontro. Vejamos a minha agenda: quarta-feira não posso, nem segunda-feira. O senhor pode na terça?
Respondo: “Sim, está ótimo!”
O horário é um pouco incômodo. Às 15h, pode ser? Se não puder, mudamos o dia.
Santidade, o horário está ótimo.
Então, estamos de acordo: terça-feira, 24, às 15h. Em Santa Marta. O senhor deve entrar pela porta do Santo Ofício.
Não sei como concluir este telefonema e lhe digo: posso abraçá-lo pelo telefone?
Sem dúvida, lhe abraço igualmente. Depois o faremos pessoalmente. Até logo.
Agora estou eu aqui. O Papa entra e me dá a mão. Sentamos. O Papa sorri e me diz:
Alguns dos meus colaboradores que lhe conhecem me disseram que o senhor tentará me converter.
É uma anedota e lhe respondo. Também os meus amigos pensam que o senhor quer me converter. Ele sorri e responde:
O proselitismo é uma solene besteira (una solene sciocchezza), não tem sentido. É preciso que nos conheçamos, nos escutemos e cresçamos no conhecimento do mundo que nos circunda. Acontece comigo que, depois de um encontro, tenho vontade de fazer outro, porque nascem novas ideias e se descobrem novas necessidades. Isto é importante: conhecer-se, ouvir, ampliar o horizonte dos pensamentos. O mundo é feito de estradas que nos aproximam e distanciam, mas o importante é que nos levem para o Bem.
Santidade, existe uma visão única do Bem? E quem o estabelece?
Cada um de nós tem uma visão do Bem e também do Mal. Devemos incitar a proceder para aquilo que cada um pensa que seja o Bem.
O senhor, Santidade, já o escrevera na carta que me endereçou. A consciência é autônoma, dissera, e cada um de nós deve obedecer à própria consciência. Penso que aquela seja uma das passagens mais corajosas ditas por um Papa.
E o repito. Cada um de nós tem uma ideia do Bem e do Mal e deve fazer a escolha de seguir o Bem e combater o Mal como o concebe. Isto bastaria para melhorar o mundo.
A Igreja o está fazendo?
Sim, as nossas missões têm este objetivo: individuar as necessidades materiais e imateriais das pessoas e buscar satisfazê-las da maneira como podemos. O senhor sabe o que é “ágape”?
Sim, sei.
É o amor pelos outros, como Nosso Senhor o pregou. Não é proselitismo, é amor. Amor pelo próximo, fermento que serve o bem comum.
Ama o próximo como a ti mesmo.
Exatamente assim.
Jesus na sua pregação disse que o ágape, o amor pelos outros, é o único modo de amar a Deus. Corrija-me caso esteja errado.
Não está errando. O Filho de Deus se encarnou para infundir nas almas dos homens o sentimento da fraternidade. Todos irmãos e todos filhos de Deus. Abba, como ele chamava o Pai. Eu lhes indico o caminho, dizia. Segui e encontrareis o Pai e sereis todos seus filhos e Ele terá a sua complacência em vocês.
O ágape, o amor de cada um de nós por todos os outros, do mais próximo aos mais longínquos, é, precisamente, o único modo que Jesus indicou para encontrar o caminho da salvação e das bem-aventuranças.
Contudo, a exortação de Jesus, recordamos anteriormente, é que o amor pelo próximo é igual ao que temos a nós mesmos. Portanto, o que muitos chamam de narcisismo é reconhecido como válido, positivo, na mesma medida do outro. Discutimos longamente a este respeito.
A mim – dizia o Papa – a palavra narcisismo não agrada, indica um amor desfocado para si mesmo e isto não é bom, pois pode produzir graves problemas não somente para a alma de quem é afetado, mas também na relação com os outros, com a sociedade em que vive. O verdadeiro problema é que os mais atingidos por isto, que na realidade é uma espécie de distúrbio mental, são pessoas que têm muito poder. Muitas vezes os chefes  (“i Capi”, no original) são narcísicos.
Também muitos chefes da Igreja foram narcísicos.
Sabe o que penso sobre isto? Os chefes da Igreja muitas vezes foram narcísicos e excitados pelos seus cortesãos. A corte é a lepra do papado.
A lepra do papado. O senhor falou precisamente assim. Mas que corte? O senhor alude, por acaso, à Cúria?, perguntei.
Não, na Cúria há, às vezes, cortesãos. Mas a Cúria na sua complexidade é uma outra coisa. É a que nos exércitos se chama de intendência, gere os serviços que servem a Santa Sé. Mas tem um defeito: é Vaticano-cêntrica. Vê e cuida dos interesses do Vaticano, que são ainda, em grande parte, interesses temporais. Esta visão Vaticano-cêntrica descuida do mundo que nos circunda. Não compartilho com esta visão e farei tudo para mudá-la. A Igreja é e deve voltar a ser uma comunidade do povo de Deus, e os presbíteros, os párocos, os bispos estão a serviço do povo de Deus. A Igreja é isto, uma palavra, não por acaso, diferente da Santa Sé, que tem uma função importante, mas está a serviço da Igreja. Eu não teria a fé plena em Deus e no seu Filho se não fosse formado na Igreja e tive a sorte de me encontrar, na Argentina, numa comunidade sem a qual não teria consciência de mim e da minha fé.
O senhor percebeu a sua vocação desde jovem?
Não, não muito jovem. Tive que trabalhar, ganhar algum salário. Fiz a universidade. Tive uma professora que aprendi a respeitar e se tornou minha amiga, era uma fervorosa comunista. Muitas vezes lia para mim e me dava para ler textos do Partido Comunista. Assim conheci também aquela concepção muito materialista. Recordo que me fez ver o comunicado dos comunistas americanos em defesa de Rosenberg, que foram condenados à morte. A mulher de que estou falando foi presa, torturada e morta pelo regime ditatorial da Argentina.
O comunismo o seduziu?
O seu materialismo não me seduziu. Mas conhecê-lo por meio de uma pessoa corajosa e honesta me foi útil. Compreendi algumas coisas, um aspecto social, que depois encontrei na doutrina social da Igreja.
A teologia da libertação, que o papa Wojtyla excomungou, era bastante presente na América Latina.
Sim, muitos dos seus expoentes eram argentinos.
O senhor acha que foi certo que o Papa os combatesse?
Sim, porque davam um seguimento político à teologia. Mas muitos deles eram crentes e com um alto conceito de humanidade.
Santidade, permita-me que lhe diga algo da minha formação cultural? Fui educado por uma mãe muito católica. Aos 12 anos venci uma disputa de alunos de catequese feita entre várias paróquias de Roma e ganhei um prêmio do Vicariato. Comungava sempre nas primeiras sextas-feiras, enfim, praticava a liturgia e acreditava. Mas tudo mudou quando entrei no liceu. Li, entre outros textos de filosofia que estudávamos, o “Discurso do Método” de Descartes e fiquei impressionado pela frase, que se tornou icônica, “Penso, logo existo”. O ‘eu’ tornou-se, assim, a base da existência humana, a sede autônoma do pensamento.
Descartes, no entanto, nunca negou a fé do Deus transcendente.
É verdade, mas tinha posto o fundamento de uma visão totalmente diferente e me encaminhou depois, corroborado por muitas outras leituras, e me levou à outra margem.
O senhor, no entanto, se entendi bem, é não crente mas não um anticlerical. São duas coisas muito diferentes.
É verdade, não sou anticlerical, mas me torno quando encontro um clerical.
O Papa sorri e me diz:
Também me acontece isto. Quando encontro um clerical, me torno anticlerical de vez. O clericalismo não deveria ter nada a ver com o cristianismo. São Paulo, que foi o primeiro a falar aos Gentios, aos pagãos, aos crentes em outras religiões, foi o primeiro a nos ensinar isto.
Posso lhe pedir, Santidade, quais são os santos que estão mais próximos da sua alma e quais lhe ajudaram a formar a experiência religiosa?
São Paulo é aquele que me colocou os eixos da nossa religião e do nosso credo. Não se pode ser cristão consciente sem São Paulo. Traduziu a pregação de Cristo numa estrutura doutrinária que, apesar dos aggiornamentos de uma imensa quantidade de pensadores, de teólogos, de pastores de almas, resistiu e resiste depois de dois mil anos. E depois Agostinho, Bento e Tomás e Inácio. E, naturalmente, Francisco. Devo lhe explicar por quê?
Francisco – seja-me permitido, a esta altura, chamá-lo assim, porque é ele mesmo que o sugere pelo que fala, sorri, por suas exclamações de surpresa ou de partilha, me olha como que me encorajando a lhe fazer perguntas mais escabrosas e mais complicadas para quem guia a Igreja. Assim, lhe pergunto: De Paulo explicou a importância e o seu papel, mas gostaria de saber quais foram, entre os que foram citados, os que sente mais próximos da sua alma?
O senhor me pede uma classificação, mas estas podem ser feitas se falamos de esporte ou de coisas análogas. Poderei lhe citar os melhores jogadores de futebol da Argentina. Mas os santos...
Mas não quero evadir a sua pergunta. O senhor não me pediu uma classificação sobre a importância cultural e religiosa, mas quais santos estiveram mais próximos da minha alma. Então lhe digo: Agostinho e Francisco.
E não Inácio, ordem a qual o senhor pertence?
Inácio, por razões compreensíveis, é aquele que conheço mais do que os outros. Fundou a nossa Ordem. Recordo-lhe que desta Ordem também era Carlo Maria Martini, que me é muito caro assim como ao senhor. Os jesuítas foram e ainda são o fermento – não os únicos mas, talvez, os mais eficazes – da catolicidade; cultura, ensino, testemunho missionário, fidelidade ao Pontífice. Mas Inácio fundou a Companhia, era também um reformador e um místico. Sobretudo um místico.
E o senhor acha que os místicos são importantes para a Igreja?
Foram fundamentais. Uma religião sem místicos é uma filosofia.
O senhor tem uma vocação mística?
O que o senhor acha?
Parece-me que não.
Provavelmente, o senhor tem razão. Adoro os místicos. Também Francisco, por muitos aspectos da sua vida, foi místico, mas eu não acredito que tenho esta vocação. Mas é preciso que nos entendamos sobre o significado profundo desta palavra. O místico consegue despojar-se do fazer, dos fatos, dos objetivos e até da pastoralidade missionária e se eleva até atingir a comunhão com as Bem-aventuranças. São momentos breves, mas que preenchem a vida inteira.
Para o senhor isto nunca aconteceu?
Raramente. Por exemplo, quando o Conclave me elegeu Papa. Antes da aceitação, pedi para me retirar por alguns instantes no quarto que fica ao lado do balcão sobre a praça. A minha cabeça estava completamente vazia e uma grande ânsia me invadira. Para fazê-la passar e me relaxar, fechei os olhos e todo e qualquer pensamento desapareceu. Também aquele de recusar o encargo, como o resto do procedimento litúrgico seguinte. Fechei os olhos e não mais tive nenhuma ânsia ou emotividade. A um certo ponto, uma grande luz me invadiu. Durou um instante, mas me pareceu algo longuíssimo. Depois a luz se dissipou. Levantei-me e me dirigi até a sala em que me esperavam os cardeais e a mesa sobre a qual estava o ato de aceitação. Assinei-o, o cardeal camerlengo o assinou, e depois foi o momento do “Habemus Papam”.
Permanecemos alguns momentos em silêncio e depois disse: falávamos dos santos que o senhor sente mais próximos da sua alma e ficamos em Agostinho. Pode me dizer por que o sente mais próximo de si?
Também o meu predecessor tem em Agostinho o seu ponto de referência. Esse santo passou por muitos eventos na sua vida e mudou várias vezes a sua posição doutrinária. Teve também palavras muito duras no confronto com os hebreus, que eu nunca compartilhei. Escreveu muitos livros, e aquele que me parece mais revelador da sua intimidade intelectual e espiritual é “Confissões”. Elas contêm algumas manifestações de misticismo, mas ele não é, como muitos sustentam, o continuador de Paulo. Ele vê a Igreja e a fé no mundo de uma maneira profundamente diferente de Paulo, talvez porque quatro séculos os separam.
Qual é a diferença, Santidade?
Para mim, em dois aspectos substanciais. Agostinho se sente impotente de fronte à imensidade de Deus e às tarefas que um cristão e um bispo deveriam realizar. No entanto, ele não foi impotente, mas na sua alma se sentia sempre como estando abaixo do que deveria e queria fazer. E depois da graça dispensada pelo Senhor como elemento fundante da fé. Da vida. Do sentido da vida. Quem não é tocado pela graça pode ser uma pessoa sem mácula e sem medo, mas não será nunca uma pessoa tocada pela graça. Esta é a intuição de Agostinho.
O senhor se sente tocado pela graça?
Isto não se pode saber. A graça faz parte da consciência, é a quantidade de luz que temos na alma, não de sabedoria nem de razão. Também o senhor, sem o saber, poderia estar tocado pela graça.
Sem fé? Não crente?
A graça diz respeito à alma.
Eu não creio em alma.
Não crê, mas tem.
Santidade, o senhor dissera que não tinha nenhuma intenção em me converter e creio que não conseguiria.
Isto não se sabe; contudo, não tenho nenhuma intenção em lhe converter.
E Francisco?
É grandíssimo porque é tudo. Homem que quer fazer, quer construir, funda uma Ordem e as suas regras, é itinerante e missionário, é poeta e profeta, é místico. Constatou nele mesmo o mal e o superou. Ama a natureza, os animais, a erva do campo e os pássaros que voam no céu, mas sobretudo ama as pessoas, as crianças, os velhos, as mulheres. É o exemplo mais luminoso daquele ágape de que falávamos antes.
O senhor tem razão, Santidade. A descrição é perfeita. Mas por que nenhum dos seus predecessores escolheu o nome de Francisco? E, segundo me parece, nenhum outro o escolherá depois do senhor.
Isto não sabemos. Não hipotequemos o futuro. É verdade, antes nenhum o escolheu. Aqui afrontamos o problema dos problemas. O senhor quer beber algo?
Obrigado, talvez um copo d'água.
O Papa se levanta, abre a porta e pede a um colaborador que estava entrando que lhe traga dois copos de água. Pede se eu quero um café. Digo que não é preciso. Chega a água. No fim da nossa conversação o meu copo está vazio, mas o dele permaneceu cheio. Molha a gargante e começa.
Francisco queria uma Ordem mendicante e também itinerante. Missionários em busca de encontrar, escutar, dialogar, ajudar, difundir a fé e o amor. Sobretudo o amor. E mirava uma Igreja pobre que assumisse o cuidado dos outros, recebesse ajuda material e a utilizasse para sustentar os outros, com nenhuma preocupação consigo mesma. Passaram 800 anos desde então, e os tempos mudaram muito, mas o ideal de uma Igreja missionária e pobre permanece mais do que válida. Esta é a Igreja que foi pregada por Jesus e pelos seus discípulos.
Vocês cristãos são, atualmente, uma minoria. Até na Itália, que era definida como o jardim do Papa, os católicos praticantes seriam, segundo algumas sondagens, entre 8 e 15%. Os católicos que dizem sê-lo mas que são de fato, são poucos, uns 20%. No mundo existe um bilhão de católicos, e também com as outras Igrejas cristãs, vocês superam um bilhão e meio. Mas o planeta é habitado por 6 a 7 bilhões de pessoas. Vocês são, é certo, muitos, especialmente na África e na América Latina, mas minorias.
Sempre fomos minoria, mas o tema, hoje, não é este. Pessoalmente penso que ser uma minoria pode ser uma força. Devemos ser uma semente de vida e de amor, e a semente é uma quantidade infinitamente menor da massa dos frutos, das flores e das árvores que nascem da semente. Parece-me que já disse que o nosso objetivo não é o proselitismo, mas a escuta das necessidades, dos desejos, das desilusões, do desespero, da esperança. Devemos voltar a dar esperança aos jovens, ajudar os idosos, abrir para o futuro, difundir o amor. Pobres entre os pobres. Devemos incluir os excluídos e pregar a paz. O Vaticano II, inspirado pelo papa João e por Paulo VI, decidiu olhar para o futuro com espírito moderno e abrir-se à cultura moderna. Os padres conciliares sabiam que abrir-se à cultura moderna significava ecumenismo religioso e diálogo com os não-crentes. Desde então foi feito muito pouco nesta direção. Tenho a humildade e a ambição de querer fazê-lo.
Também porque - me permito acrescentar - a sociedade moderna em todo o planeta atravessa um momento de crise profunda, e não somente econômica, mas social e espiritual. O senhor, no início deste nosso encontro, descreveu uma geração excluída do presente. Também nós, não-crentes, sentimos este sofrimento quase antropológico. Por isto queremos dialogar com os crentes e com quem melhor os representa.
Eu não sei se sou o melhor representante, mas a Providência me colocou como guia da Igreja e da Diocese de Pedro. Farei o que for possível para cumprir o mandato que me foi confiado.
Jesus, como o senhor recordou, disse: ama o teu próximo como a ti mesmo. Parece-lhe que isto aconteceu?
Não. O egoísmo aumentou e o amor aos outros diminuiu.
Este, então, é o objetivo que nos une: ao menos intensificar estes dois tipos de amor. A sua Igreja está pronta e preparada para esta tarefa?
O senhor, o que pensa?
Penso que o amor pelo poder temporal seja ainda muito forte entre os muros do Vaticano e na estrutura institucional de toda a Igreja. Penso que a Instituição predomina sobre a Igreja pobre e missionária que o senhor desejaria.
Realmente, as coisas estão assim e nesta matéria não se fazem milagres. Recordo-lhe que também Francisco, no seu tempo, teve que negociar com a hierarquia romana e com o Papa para que as regras da sua Ordem fossem reconhecidas. No fim obteve a aprovação, mas com profundas mudanças e compromissos.
O senhor seguirá o mesmo caminho?
Certamente não sou Francisco de Assis, e não tenho a sua força e a sua santidade. Mas sou o Bispo de Roma e o Papa da catolicidade. Como primeira coisa, decidi nomear um grupo de oito cardeais para que sejam o meu conselho. Não cortesãos, mas pessoas sábias e animadas pelos mesmos sentimentos.