O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

25 de dezembro de 2014

Os relatos da infância de Jesus: Teologia ou história?


Leonardo Boff

Quanto mais se medita sobre Jesus mais se descobre o mistério que sua vida humilde escondia e mais se remonta para as origens. Por volta dos anos 75-85, quando S. Lucas e S. Mateus redigiram seus evangelhos, se recolheram as reflexões que se haviam feito nas várias comunidades. Para todos era claro que Jesus fora constituído por Deus como Messias, Salvador, Filho de Deus e Deus mesmo em forma humana. A partir desta fé se interpretaram os fatos relativos ao nascimento e à infância de Jesus. Atrás desses relatos se esconde trabalho teológico muito profundo e intenso num esforço de decifrar o mistério de Jesus e anunciá-lo para os fiéis dos anos 75-85 dC. As cenas familiares do Natal, descritas por S. Lucas e por S. Mateus, querem antes ser proclamações da fé acerca de Jesus Salvador do que relatos neutros acerca de sua história.
O processo cristológico, como o temos desenvolvido no capítulo precedente, nos fez compreender como surgiram os títulos e os nomes atribuídos a Jesus. Atrás de cada título, seja Cristo, Filho do Homem, Filho de Deus, etc., esconde-se uma longa reflexão teológica. Essa reflexão pode chegar até à sofisticação da teologia rabínica mais refinada. É o que veremos nos relatos da infância de Jesus. No sentir comum dos cristãos os relatos do nascimento de Jesus e a celebração do Natal constituem uma festa para o coração. A fé se toma sentimento. Com isso ela atinge o que há de mais profundo e íntimo na personalidade humana: faz vibrar, alegrar e saborear a vida como sentido. No presépio, diante da manjedoura com o Menino entre o asno e o boi, a virgem e o bom José, os pastores e as ovelhas, a estrela, as artes e as profissões, a natureza, as montanhas, as águas, o universo das coisas e dos homens se congraçam e reconciliam diante do Menino. No dia de Natal todos nos tornamos meninos e deixamos que, uma vez pelo menos, o pequeno príncipe que mora em cada um de nós fale a linguagem inocente das crianças que se extasiam diante do pinheirinho, das velas acesas e das bolas cristalinas. O homem mergulha no mundo da infância, do mito, do símbolo e da poesia que é a própria vida, mas que os interesses, os negócios, a preocupação pela sobre-vivência abafam, impedindo a vivência da eterna criança adulta que cada qual ainda é. Tudo isso são valores que devem ser defendidos e alimentados. Contudo para se manterem como valores cristãos devem estar em conexão com a fé. Sem isso o sentimento e a atmosfera do Natal se transformam em sentimentalismo, explorado pela máquina comercial da produção e do consumo. A fé se relaciona com a história e com Deus que se revela dentro da história. Então: o que se deu de fato no Natal? Será mesmo que apareceram anjos nos campos de Belém? Vieram de fato reis do Oriente? É curioso imaginar uma estrela errando por aí, primeiro até Jerusalém e depois até Belém onde estava o Menino. Por que não se dirigiu diretamente a Belém, mas primeiro resplendeu sobre Jerusalém, estarreceu toda a cidade e o Rei Herodes, aponto de este ter decretado a morte das crianças inocentes? Em que medida nisso tudo vai conto ou realidade? Qual é a mensagem que Lucas e Mateus intencionaram com a história da infância de Jesus? O interesse deles é histórico ou, quem sabe, através da amplificação edificante e embelezadora de um dito da Escritura ou de um acontecimento real, comunicar uma verdade mais profunda acerca do Menino que mais tarde pela Ressurreição iria manifestar-se como o Libertador da condição humana e a grande esperança de vida humana e eterna para todos os homens?
Para os olhos de um conhecedor dos procedimentos literários usados nas Escrituras e para o historiador do tempo de Jesus os relatos do Natal não são sem problemas. Atrás da simplicidade cândida e do lirismo de algumas cenas esconde-se uma teologia sofisticada e pensada até nas suas mínimas minúcias. Esses textos não são os mais antigos dos evangelhos. São os mais recentes e elaborados quando já havia toda uma reflexão teológica sobre Jesus e o significado de sua morte e ressurreição, quando já estavam ordenados por escrito os relatos de sua paixão, as parábolas, os milagres e os principais ditos de Jesus, quando já se tinham criado os principais títulos, como Filho de Davi, Messias, Cristo, novo Moisés, Filho de Deus, etc., pelos quais se tentava decifrar o mistério da humanidade de Jesus. No fim de tudo apareceu o começo: a infância de Jesus pensada e escrita à luz da teologia e da fé que se criara ao redor de sua vida, morte e ressurreição. É exatamente aqui que se situa o lugar de compreensão dos relatos de sua infância, como vêm narrados por Mateus e por Lucas.

1.     A fé que procura compreender

A fé não exime nem dispensa a razão. Ela, para ser verdadeira, deve procurar compreender, não para abolir o mistério, mas vislumbrar-lhe as reais dimensões e cantar, maravilhada, a graciosa lógica de Deus. A fé professava que Jesus é o Salvador, o Messias, o Sentido de tudo (Logos), o profeta anunciado outrora (Dt 18,15-22), o novo Moisés que libertaria os homens num êxodo definitivo de todas as ambigüidades da condição humana. Eis, porém que uma pergunta preocupou bem cedo os apóstolos: em que ponto de sua vida Deus instituiu Jesus como Salvador, Messias e Filho de Deus?
A pregação mais antiga responde: na morte e na ressurreição (cf. 1Cor 15,3-8; At 10,34-43). São Marcos, que escreveu seu evangelho por volta de 67-69, afirma: com o batismo de João, Jesus foi ungido pelo Espírito Santo e proclamado Messias e Libertador. Realmente o evangelho de S. Marcos não conhece nenhum relato da infância de Cristo e inicia com a pregação preparadora de João Batista e com o batismo de Jesus. Mateus, que elaborou seu evangelho por volta de 80-85 dC, responde: Jesus é desde o seu nascimento o Messias esperado; mais ainda: toda a história da salvação desde Abraão caminhou para ele (cf. a genealogia de Cristo: Mt 1;1-17). Lucas, que escreveu seu evangelho pela mesma época, dá um passo adiante e diz: desde o Natal na gruta de Belém Jesus é o Messias e o Filho de Deus. Porém não só a história santa de Israel desde Abraão marchou até que Ele nascesse na gruta, mas toda a história humana desde Adão (Lc 3,38). Por fim vem S. João por volta do ano 100, herdando uma longa e profunda meditação sobre quem era Jesus, e responde: Jesus era o Filho de Deus já antes de ter nascido, em sua preexistência junto a Deus, muito antes da criação do mundo porque "no princípio era a Palavra. E a Palavra se fez condição humana e armou tenda entre nós" (Jo 1, 1.14). Como transparece, quanto mais se medita sobre Jesus mais se descobre seu mistério e mais se remonta para as origens. Todo esse processo é fruto do amor. Quando se ama uma pessoa, procura-se saber tudo dela: sua vida, seus interesses, sua infância, sua família, seus antepassados, de que país vieram, etc. O amor vê mais longe e profundamente que o frio raciocínio. A ressurreição revelou as verdadeiras dimensões da figura de Jesus: ele interessa não só aos judeus (Abraão), nem só aos homens todos (Adão), mas até ao cosmos porque "sem ele nada se fez de tudo o que foi criado" (Jo 1 ,3). A partir da luz ganha com o clarão da ressurreição, os apóstolos começam a reler toda a vida de Cristo, reinterpretar suas palavras, recontar seus milagres, e a descobrir em alguns fatos, em si simples, de seu nascimento a presença latente do Messias e Salvador, revelado patentemente, porém, só depois com a ressurreição. Nessa mesma luz foram ganhando nova luz muitas passagens do Antigo Testamento tidas como proféticas, agora ampliadas e explicadas em função da fé em Jesus, Filho de Deus. Por isso, o sentido teológico dos relatos da infância não reside tanto em narrar fatos do nascimento de Jesus, mas através da roupagem de narrações plásticas e teológicas em anunciar para os ouvintes dos anos 80-90 dC quem é e o que é para a comunidade dos fiéis Jesus de Nazaré. Portanto deve-se buscar menos história do que mensagem da fé. Entre os fatos históricos contidos nos relatos de Natal a exegese crítica católica enumera os seguintes: 1. Noivado de Maria com José (Mt 1,18; Lc 1,27; 2,5) ; 2. A descendência davídica de Jesus (Mt 1,1; Lc 1,32) através da descendência de José (Mt 1,16.20; Lc 1,27; 2,4); 3. O nome Jesus Mt 1,21; Lc 1,31) ; 4. O nascimento de Jesus da Virgem Maria (Mt 1,21.23.25; Lc 1,31; 2,6-7) ; 5. Nazaré como residência de Jesus (Mt 2,23; Lc 2,39). Abaixo veremos como Mateus e Lucas trabalharam literária e teologicamente esses dados para com eles e através deles anunciarem, cada qual a seu modo, uma mensagem de salvação e de alegria para os homens: que nesse menino "envolto em faixas e deitado na manjedoura por não haver lugar na estalagem" (Lc 2,7) se escondia o sentido secreto da história desde a criação do primeiro ser e que nele se realizaram todas as profecias e as esperanças humanas de libertação, e total plenitude em Deus.

2.     Mateus e Lucas: Jesus é o ponto Ômega da história, o Messias, filho de Davi esperado, o filho de Deus

A ressurreição mostrou que, com Cristo, a história chegou ao seu ponto Ômega porque a morte foi vencida e o homem totalmente realizado e inserido dentro da esfera divina. Por isso ele é o Messias e, se Messias, então da família real de Davi. Pelas genealogias de Jesus tanto Mateus (1,1-17) quanto Lucas (3,23-38) querem trazer a prova de que Jesus e nenhum outro realmente emergiu quando a história chegou ao seu ponto Z; que ele ocupa aquele exato lugar na genealogia davídica que corresponde ao Messias e que ele se insere nesta genealogia de tal forma que se cumpra a profecia de Isaías (7,14) - de ser filho de uma virgem -, recebendo o nome, e com isso seu inserimento na genealogia, de seu pai adotivo José. Segundo o livro 4 Esdras 14,11-12 esperava-se o Messias, Salvador de todos os homens desde Adão, no final da 11.ª semana do mundo. Onze semanas do mundo resultam 77 dias do mundo. São Lucas constrói a genealogia de Jesus desde Adão mostrando que ele surgiu na história quando se completaram os 77 dias do mundo, cada dia com um ancestral de Jesus. Por isso a genealogia de Jesus de Adão até José perfaz 77 antepassados. A história chegou ao seu ponto Ômega quando Jesus nasceu em Belém. Que essa genealogia é artificialmente construída se percebe comparando-a com a de Mateus. Ademais há longos espaços vazios entre uma geração e outra.
Mateus utiliza um procedimento semelhante para provar que Jesus é filho de Davi e assim o Messias esperado. Substituindo-se as consoantes do nome DaViD (as vogais não contam em hebraico) por seus respectivos números resulta o número 14 (D = 4, V= 6, D = 4: 14). Mateus constrói a genealogia de Jesus de tal forma que resultam, como ele mesmo o diz expressamente (1,17), 3 vezes 14 gerações. O número 14 é o duplo de 7, número que para a Bíblia simboliza a plenitude do plano de Deus ou a totalidade da história. As 14 gerações de Abraão até Davi mostram o primeiro ponto alto da história judaica; as 14 gerações de Davi até a deportação para a Babilônia revelam o ponto mais baixo da história santa; e as 14 gerações do cativeiro babilônico até Cristo patenteiam o definitivo ponto alto da história da salvação que jamais conhecerá ocaso porque aí surgiu o Messias. À diferença de Lucas, Mateus insere ainda na genealogia de Jesus 4 mulheres, todas elas mal afamadas: duas prostitutas, Tamar (Gn 38,1-30) e Raab (Js 2; 6,17.22s) , uma adúltera, Betsabéia, mulher de Urias (2Sm 11,3; 1Cr 3,5) e uma moabita pagã, Rute (Rt 4,12s). Com isso Mateus quer insinuar que Cristo assumiu os pontos altos e baixos da história e tomou também sobre si as ignomínias humanas. Cristo é o último membro da genealogia, exatamente aquele ponto aonde a história chega ao seu ponto Z, completando 3 vezes quatorze gerações. Portanto só ele pode ser o Messias prometido e esperado.

3.     José e a concepção da virgem em Mateus: um rodapé à genealogia

Em sua genealogia de Jesus, Mateus quer provar que Cristo realmente descende de Davi. Na realidade não o consegue provar, porque no passo decisivo em vez de dizer: Jacó gerou José, José gerou Jesus, interrompe e afirma: Jacó gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, chamado o Cristo (1,16). A mulher na jurisprudência judaica não conta na determinação genealógica. Logo, Cristo através de Maria não pode se inserir na casa de Davi. Contudo para Mateus é claro que Jesus é filho da Virgem Maria e do Espírito Santo (1,18). Aqui, pois surgiu um problema: como inserir Jesus através da árvore genealógica masculina dentro da genealogia davídica se ele não tem pai humano? Para resolver tal problema faz como que um rodapé ou uma glosa (explicação de uma dificuldade) e narra a concepção e a origem de Jesus (1,18-25). A intenção não é narrar a concepção virginal de Jesus, nem descrever, como o faz Lucas, o nascimento de Jesus. O centro do relato está em S. José que, sabendo do estado de Maria, quer abandoná-la de noite. O sentido do relato de Mt 1,18-25 é resolver o problema levantado: o esclarecimento vem no versículo 25: José coloca no menino o nome de Jesus. José, descendente de Davi, legalmente esposo de Maria, dando o nome a Jesus, torna-se juridicamente seu pai e com isso o insere em sua genealogia davídica. Assim Jesus é filho de Davi através de José e também o Messias. Desta forma realiza-se também a profecia de Isaías que o Messias nasceria de uma virgem (Is 7,14) e o plano de Deus se realiza plenamente.

4.     Quis S. Lucas contar a concepção virginal de Jesus?

A anunciação e o nascimento de Cristo são relatados pelo evangelista S. Lucas. S. Lucas é considerado na tradição como o evangelista pintor. Realmente nos capítulos 1-2 ele pinta um dípticon. Dípticon era para o mundo medieval (como podem ser vistos em igrejas antigas também no Brasil) um altar com duas semijanelas ou alas nas quais havia pinturas que se correspondiam. Assim Lucas 1-2 pinta a infância de João Batista num paralelo perfeito com a infância de Jesus. De modo semelhante fará depois Mateus, traçando um paralelo entre Moisés e Jesus. Contudo, em cada ponto paralelo, Lucas mostra como Cristo é maior que João Batista. Assim há uma correspondência perfeita entre o anúncio do nascimento de João Batista através do anjo Gabriel (Lc 1,5-25) e o anúncio do nascimento de Jesus (1,26-56); em ambos os casos ao nascer, ao se circuncidar a criança e ao se dar o nome verificam-se sinais miraculosos (1,57-66; 2,1-21); anuncia-se em ambos os casos o significado salvífico de João e de Jesus nas profecias de Zacarias (João), respectivamente de Simeão e da profetisa Ana (Jesus) (1,67-80; 2,22-40). Em ambos os casos faz-se também uma referência ao crescimento dos dois meninos João e Jesus. Em todas as cenas releva-se que o ciclo de Jesus supera sempre o ciclo de João: na anunciação da concepção de João o anjo Gabriel não faz nenhuma saudação (Lc 1,11), ao passo que com Maria ele a saúda gentilmente (1,28). A Zacarias o anjo diz: Tua oração foi ouvida (1,13), ao passo que a Maria observa reverente: Tu achaste graça aos olhos do Senhor (1,31). Na cena da visitação de Maria a Isabel a saudação de Maria faz a criança estremecer no seio materno de Isabel, agora repleta do Espírito Santo.
Jesus, ao contrário, desde o início é o portador do Espírito porque tem sua origem dele e da Virgem. João Batista surge no deserto (1,80), Cristo, porém no templo (2,41-52).Tais procedimentos literários para ressaltar a função salvífica de Cristo são utilizados de forma ainda mais refinada ao narrar o anúncio da concepção de Cristo (1,26-38) que se deu no sexto mês da concepção de João Batista. Ora, seis meses de 30 dias resultam 180 dias; 9 meses da concepção de Jesus até seu nascimento dão 270 dias; do nascimento até a apresentação do menino no templo, somam 40 dias. A soma total resulta 490 dias, ou 70 semanas. O que significam para os leitores do Novo Testamento 70 semanas? Segundo Daniel (9,24) após 70 semanas-ano o Messias viria e libertaria o povo dos pecados e traria a justiça eterna. Lucas quer com esses dados insinuar que a profecia de Daniel se completou e só Jesus é o Messias esperado. As palavras da anunciação mesma, ditas pelo anjo, a reação da Virgem, a saudação de Gabriel são formuladas em estreita ligação com palavras semelhantes ou iguais proferidas em semelhantes situações no Antigo Testamento (para Lc 1,42 = Jt 13,18; para Lc 1,28.30-33 = Sf 3,14-17; para Lc 1,28 = Gn 26,3.28; 28,15; Ex 3,12; 1Sm 3,19; 1Rs 1,37, etc.). A concepção de Jesus por obra e força do Espírito Santo não quer tanto explicar o processo biológico da concepção (para Lucas é indiscutível que Jesus nasceu da Virgem como virgem), mas, antes relacionar Jesus-Salvador com outras figuras libertadoras do Antigo Testamento que, pela força do Espírito Santo, foram instituídas em sua função (1Sm 10,6s; 16,13s; Jz 3,10; 6,34; 11,29; 13,25; 1Rs 19,19; 2Rs 2,8-15, etc.). Aqui se percebe a diferença de perspectiva entre a catequese tradicional e a perspectiva de S. Lucas e S. Mateus. A catequese tradicional acentuava por excelência a virgindade de Nossa Senhora, o fato da virgindade física e perpétua de Maria, "antes, durante e após o parto". Para os relatos evangélicos a virgindade pessoal de Maria é secundária. Mais importante é a concepção virginal de Jesus. Como o exprime muito bem Dom Paulo Eduardo Andrade Ponte: "A preocupação dos evangelistas era destacar não o caráter virginal, mas o caráter sobrenatural, divino dessa concepção. Para eles a concepção de Jesus foi virginal para poder ser sobrenatural, e não sobrenatural para ser virginal. Ela foi virginal para que Deus pudesse ser a sua causa, não somente primeira, mas principal, para que Ele pudesse ser o seu autor direto... Ao ouvir certos sermões ou ao ler determinados livros de espiritualidade, tinha-se a impressão de que a concepção de Jesus foi sobrenatural e milagrosa para preservar a virgindade de sua mãe. Ela teria sido, portanto sobrenatural para ser virginal e não virginal para ser sobrenatural. E isso era inspirado por toda uma conceituação moralizante e maniqueísta da virgindade no cristianismo". Bem diversa, porém é a perspectiva dos Evangelhos; para eles Cristo está no centro e em sua função a virgindade de Maria. Por isso que o Novo Testamento prefere chamar Maria de Mãe de Jesus (Jo 2,1.3.12; 19,25-26; At 1,14) ao invés de a Virgem que ocorre apenas duas vezes nos textos neotestamentários (Lc 1,27 ; Mt 1,23 ) e ainda para relevar sua função maternal por obra do Espírito Santo. A concepção de Jesus mesma é descrita na forma como a glória de Deus é manifestada no tabernáculo da aliança (Ex 40,32 = Lc 1,35). Assim como o tabernáculo está cheio do Espírito de Deus, da mesma forma e ainda muito mais o filho de Maria, que realmente merece ser chamado Filho de Deus (Lc 1,35). Por força do Espírito surge alguém que é de tal forma penetrado por esse mesmo Espírito que somente dele ganha sua existência. Cristo é a nova criação daquele mesmo Espírito que criou o velho mundo. Esse é o sentido teológico profundo que Lucas quer transmitir com a concepção de Jesus por força do Espírito Santo; e não tanto descrever um fenômeno miraculoso de ordem biológica, embora esse esteja suposto e sirva de motivo da reflexão teológica.

5.     Onde teria nascido Jesus: Belém ou Nazaré?

Semelhante trabalho teológico como vimos até aqui se processa também ao se narrar o nascimento de Jesus em Belém. O nascimento em si é narrado sem qualquer tom romântico, mas no seu caráter rude e seco ganha grande profundidade: "Ora, quando se achavam lá (Belém), chegou o tempo em que devia dar à luz. Ela deu à luz seu filho primogênito, envolveu-o em faixas, e deitou-o numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria" (Lc 2,6-7). Esse fato comum, que poderia ter acontecido com qualquer mãe, é relido, devido à ressurreição, dentro de um conteúdo teológico. Se ele se revelou como sendo o Messias e é filho de Davi por parte de seu pai legal José, então deve-se realizar nele também a outra profecia que diz: de Belém sairá aquele que irá governar Israel (Mq 5,1; 1Sm 16, ls), o Messias; e não de Nazaré, a pátria de Jesus, lugar tão insignificante que jamais ocorre em todo o Antigo Testamento. Lucas não visa especialmente ressaltar o lugar geográfico, mas fazer uma reflexão teológica sobre Belém e sua significação messiânica para deixar claro que Jesus é o Messias. Provável que a pátria de Jesus historicamente tenha sido Nazaré, lugar teologicamente irrelevante. Para fazer Jesus nascer em Belém, Lucas cria uma situação em que de Nazaré a Sagrada Família é levada a ir para Belém. Para atingir tal fim teológico Lucas refere que César Augusto decretara um recenseamento de toda aterra e que fora feito na Palestina quando Quirino era governador da Síria (província a que pertencia a palestina). Sabemos, contudo, que esse censo só foi feito historicamente no ano 6 dC como o próprio Lucas nos Atos lembra (At 5,37), dando origem a um grupo de guerrilheiros terroristas comandados por Judas da Galiléia, os Zelotas, que protestaram contra tal medida. Lucas utiliza tal fato histórico, reprojeta-o para trás, para por um lado motivar a viagem de Maria e José de Nazaré para Belém (e por motivos teológicos lá fazer nascer Jesus) e por outro insinuar que o evento-Jesus interessa não só a Israel, mas a todos os homens como "luz que ilumina as nações" (Lc 2,32). As referências à história profana por ocasião do nascimento de Cristo e do surgimento da pregação de João não visam tanto situar historicamente os fatos, mas antes ressaltar a estreita ligação existente entre a história sagrada com a história profana universal na qual Deus através de Jesus Cristo realiza a salvação.

6.     Quem são os pastores dos campos de Belém?

Se o relato do nascimento de Cristo por sua simplicidade pouco revela do mistério inefável que acontecia dentro da história do mundo, a narrativa dos anjos aparecendo nos campos de Belém o proclama com toda a clareza. Um anjo do Senhor (aqui são legiões) proclama, como comumente ocorre na Bíblia, o significado secreto e profundo do acontecimento: "eis que vos anuncio uma boa-nova, de grande alegria para todo o povo: hoje na cidade de Davi, nasceu-vos um salvador, que é Cristo Senhor" (Lc 2,11).Os anjos proclamam o significado daquela noite: céu e terra se reconciliam porque Deus dá paz e salvação aos homens todos. O que em Lc 2,8-20 se narra, por sua origem, não quer tradicionar um fato passado com os pastores em Belém. Os pastores são, teologicamente, os representantes dos pobres, para os quais foi anunciada a boa-nova e para os quais Jesus foi enviado (Lc 4,18). Aqui não há nenhum resquício de um romantismo pastoril. Os pastores constituíam uma classe desprezada e sua profissão tornava as pessoas impuras frente à lei. Eles pertenciam à classe daqueles que não conheciam a lei, como diziam os fariseus. Ora, Cristo - e isso Lucas deixa transparecer várias vezes em seu evangelho - foi enviado exatamente a esses associais e marginalizados religiosamente. A eles é comunicada por primeiro a mensagem alegre da libertação. Essa mensagem muito provavelmente não foi proclamada aos pastores nos campos de Belém, mas dirige-se aos ouvintes de São Lucas por volta de 80-85 dC para explicar-lhes que aquele em quem crêem é o verdadeiro libertador. Para os que têm olhos de fé, a fraqueza da criança franzina envolta em faixas esconde um mistério que, desvelado, é uma alegria para todo o povo: é Ele, o Esperado, o Senhor do cosmos e da história (Lc 2,11).
7.     S. Mateus: Jesus é o novo Moisés e o libertador

São Mateus conhece ainda quatro episódios ligados à infância de Cristo: a vinda dos reis magos seguindo uma estrela do Oriente, a fuga da Sagrada Família para o Egito, a matança dos santos inocentes decretada por Herodes e a volta da Sagrada Família do Egito para Nazaré (Mt 2).
Estamos aqui diante de fatos históricos ou antes diante de reflexão teológica no estilo dos midraxes (historização de uma passagem da Sagrada Escritura ou amplificação embelezadora de um fato para ressaltar-lhe a mensagem) para exprimir a fé acerca de Jesus? Esta última possibilidade ressalta clara dos próprios textos.

a)    Que significam os reis magos e a estrela?

Como vimos acima, para S. Mateus Cristo é o Messias que chegou na plenitude dos tempos, realizando as profecias todas ditas a respeito dele. Uma destas profecias referia-se ao fato de que no final dos tempos viriam para Jerusalém reis e nações para adorar a Deus e ao Messias e oferecer-lhe dons (Is 60,6; SI 71,10s). Por isso que Magos vão a Jerusalém (Mt 2,ls) antes de chegarem a Belém. Eles seguem uma estrela do Oriente (Mt 2,3), chamada estrela do rei de Judá. A estrela é um motivo muito conhecido no tempo do Novo Testamento. Cada qual possui sua estrela, especialmente, porém, os grandes e poderosos, como Alexandre, Mitridates, Augusto, os sábios e filósofos como Platão. O judaísmo conhece também a estrela do libertador messiânico, na profecia de Balaão (Nm 24,17). Pelo nascimento de Abraão, de Isaac, de Jacó e especialmente de Moisés, apareceu uma estrela no céu. Essa era a crença judaica ao tempo do Novo Testamento. Acresce ainda um fato histórico: desde os tempos de João Kepler os cálculos astronômicos têm mostrado que nos anos 7 aC ocorreu realmente uma grande conjunção de Júpiter e Saturno na constelação de Peixes. Esse fenômeno não deve ter passado despercebido, já que na época se cultivava muito a crença nas estrelas. Júpiter, para a astronomia helenista, era considerado o rei soberano do universo. Saturno designava o astro dos judeus. A constelação de Peixes estava relacionada com o fim do mundo. Dando-se a conjunção destes astros, os sábios do Oriente, magos que decifravam o curso das estrelas, deram naturalmente a seguinte interpretação: No país dos judeus (Saturno) nasceu um rei soberano (Júpiter) dos fins dos tempos (Peixes). Eles se põem em marcha e assim se cumprem, para Mateus, as profecias acerca do Messias Jesus Cristo. Textos do Antigo Testamento e um fenômeno astronômico teriam motivado o relato de Mateus com o fito de anunciar a fé da Igreja em Jesus como o Messias escatológico.

b)    Como o primeiro libertador (Moisés) assim também o último (Jesus)

Assim como Lucas traça um paralelo entre a infância de Jesus e a de João Batista, de forma semelhante Mateus traça um paralelo entre a infância de Jesus e a de Moisés. Era crença da época do Novo Testamento que o Messias libertador dos últimos tempos seria também o novo Moisés, fazendo sinais e milagres como Moisés. Até se dizia: "Como o primeiro libertador (Moisés) assim também o último (o Messias)". Sabemos que Mateus em seu evangelho apresenta Cristo como o novo Moisés, que à semelhança do primeiro deu também uma nova lei, na montanha: o Sermão da Montanha. O midraxe judaico de Moisés refere o seguinte -e nisso vai o paralelo quase perfeito com Jesus: O faraó é notificado do nascimento do libertador (Moisés) através de Magos; de forma semelhante Herodes sabe dos magos acerca do definitivo Libertador (Jesus).O faraó e todo o povo do Egito ficam estarrecidos: Herodes e toda Jerusalém perturbaram-se (Mt 2,3).Tanto o faraó quanto Herodes determinam a matança das crianças inocentes. Como Moisés, assim também Jesus escapa do morticínio. O pai de Moisés sabe através de um sonho que seu filho Moisés será o futuro salvador. José, de forma semelhante, sabe através de um sonho que Jesus será o salvador ("pois ele salvará seu povo dos seus pecados": Mt 2,21). O paralelismo salta aos olhos, completado ainda por um outro texto de Êxodo 4,19-23: "Após a morte do faraó disse Deus a Moisés: Volta para o Egito, pois morreram os que tramavam contra tua vida". Moisés toma sua mulher e seu filho e regressa.
Mateus 2, 2.19-21 diz a mesma coisa: após a morte do rei Deus fala através do anjo: "Levanta-te, toma o menino e sua mãe e volta para a terra de Israel, pois morreram os que haviam tramado contra a vida do Menino". José toma sua mulher e seu filho legal e retoma. O destino do novo Moisés (Jesus) repete o destino do primeiro Moisés. Como se deu com o primeiro Libertador, assim também com o último. Jesus menino é realmente o Messias-Libertador esperado e o profeta escatológico. A fuga para o Egito e o morticínio das crianças inocentes de Belém não precisam ter sido necessariamente fatos históricos. Eles servem para criar um paralelo com o destino de Moisés. As fontes da época, especialmente Flávio Josefo, que informa bastante minuciosamente de Herodes, não conhecem semelhante matança. Embora não possa ser provada historicamente (nem precisa porque no relato de Mateus ela serve como reflexão teológica) podia ter sido possível. Sabemos que Herodes era extremamente cruel: dizimou a própria família, a ponto de o historiador do século V Macróbio (Satumale 2,4.11) referir o trocadilho de César Augusto: Prefiro ser o porco (hys) de Herodes a ser seu filho (hyós).
Mateus 1-2 apresenta numa perspectiva pós-pascal, como num prólogo, os grandes temas de seu evangelho: Esse Jesus de Nazaré é o único verdadeiro Messias, filho de Abraão, descendente da casa real messiânica de Davi, o novo Moisés, que agora no ponto culminante da história e no seu final conduzirá o povo do êxodo do Egito para a pátria definitiva.

8.     Conclusão: Natal - ontem e hoje a mesma verdade

Um ou outro leitor, não informado dos elementares procedimentos exegéticos com os quais a exegese católica hoje trabalha, poderá no final deste capítulo ficar escandalizado. Tudo é conto? Os evangelistas nos enganaram?
Os relatos do Santo Natal não são contos nem fomos enganados. Nós é que erramos quando queremos abordar os evangelhos numa perspectiva não intencionada por seus autores e queremos respostas para perguntas que eles não se colocaram nem intencionaram colocar. Os evangelhos, especialmente o evangelho da infância de Jesus, não são um livreto de história. São anúncio e pregação, onde fatos reais e ditos da Sagrada Escritura ou comentários midráxicos da época foram assumidos, trabalhados e postos a serviço de uma verdade de fé que querem proclamar. Por isso o Magistério oficial da Igreja recomenda ao estudioso da Escritura que ele, "para bem entender o que Deus nos quis transmitir, deve investigar atentamente o que os autores sagrados quiseram dar a entender e aprouve a Deus manifestar por suas palavras... especialmente deve tomar em conta o gênero literário" (Dei Verbum n. 12). Na época do Novo Testamento um gênero literário muito divulgado é o midraxe hagádico que, como repetidas vezes anotamos, toma um fato ou um dito escriturístico, trabalha-o, embeleza-o com o fito de sublinhar e proclamar de forma inequívoca uma verdade de fé.
É o que aconteceu com os relatos da infância. Aí há fatos reais. Mas revestidos de forma teológica, numa linguagem que para nós hoje se tomou quase incompreensível. Mas é dentro deste gênero literário que se esconde a mensagem, que devemos desentranhar, reter e proclamar novamente, dentro de nossa linguagem atual: que esse menino frágil não era um joão-ninguém nem um ninguém-joão, mas o próprio Deus feito condição humana, que tanto amou a matéria que a assumiu, e que gostou tanto dos homens que quis fazer-se um deles, para libertar-nos, e se humanizou para divinizar-nos. Com ele o processo evolutivo psicossocial atingiu uma culminância determinante para o resto da marcha até Deus, pois nele já se deu o fim presente e a meta já alcançada dentro do tempo. Essa é a mensagem fundamental que os relatos da infância de Jesus nos querem transmitir, para que, aceitando-a, tenhamos esperança e alegria: já não estamos sós na nossa imensa solidão e busca de unidade, integração, solidariedade e reconciliação de tudo com tudo. Ele está no meio de nós, o Emanuel, o Deus-conosco: "hoje nasceu-nos um Libertador, que é Cristo Senhor" (Lc 2,11).
Quem quiser salvaguardar a todo custo a historicidade de cada cena dos relatos natalinos, acaba perdendo a mensagem intencionada por seus autores inspirados e por fim situa-se fora da atmosfera evangélica criada por São Lucas e São Mateus, onde a preocupação não é se houve ou não estrela dos reis magos, se apareceram ou não anjos em Belém, mas sim o significado religioso do Pequeno que aí está para ser recebido por nós, não numa fria manjedoura, mas no calor de nossos corações, cheios de fé.
Mas que faremos com os mitos depois de desmitologizados? Eles estão aí sendo sempre representados no presépio e vividos na memória das crianças pequenas e grandes. Perderam seu valor? Se perderam seu valor histórico-factual talvez agora começam a ganhar seu verdadeiro significado religioso-antropológico. Podemos falar dos mistérios profundos de Deus que se encarna, do mistério insondável da própria existência humana do bem e do mal, da salvação e perdição sem ter que contar estórias e usar de mitos e de símbolos? O estruturalismo o viu muito bem, mas a teologia o sabia desde sempre que o mito, o símbolo e a analogia constituem o próprio da linguagem religiosa, porque sobre as realidades profundas da vida, do bem e do mal, da alegria e da tristeza, do homem e do Absoluto só conseguimos balbuciar e usar uma linguagem figurada e representativa.
Contudo ela é mais envolvente que o conceito frio. Por ser sem limites estanques e definidos sugere muito mais o inefável e o transcendente que qualquer outra linguagem científica ou do método historicista. Por isso é bom que continuemos a falar do Menino entre o boi e o asno, dos pastores e das ovelhas, da estrela e dos magos, do rei mau e do bom José, da Virgem-mãe e das faixas que envolvem o Pequenino sobre as palhas secas. Mas devemos nos dar conta - e isso é necessário se não quisermos alimentar magicismo e sentimentalismo - que tudo isso constitui o reino do símbolo e não da realidade do fato bruto. O símbolo é humanamente mais real e significativo do que a história factual e os dados frios. O mito e o conto (bem dizia Guimarães Rosa que no conto tudo é verdadeiro e certo porque tudo é inventado) quando conscientizados e aceitos pela razão como contos e mitos não alienam, não magificam nem sentimentalizam o homem, mas, o fazem mergulhar numa realidade onde ele começa a perceber o que significa inocência, reconciliação, transparência divina e humana das coisas mais banais e o sentido desinteressado da vida, aqui no Natal encarnado na criança divina.
Que fazer dos relatos do Natal e com o presépio? Que continuem. Mas que sejam entendidos e revelem aquilo que querem e devem revelar: que a eterna juventude de Deus penetrou esse mundo para nunca mais deixá-lo, que na noite feliz de seu nascimento nasceu um sol que não conhece mais ocaso.


(De "Jesus Cristo Libertador", capítulo 8, Vozes 1986, pp. 116-128)

1 de dezembro de 2014

Fábula do rato e companheirismo

Mario Sérgio Cortela do livro "Qual é a tua Obra"

Mario Sergio Cortella, conta no livro Qual é a tua Obra, que já falamos aqui, esta fábula do rato e do fazendeiro, como fábula da coletividade.


Em uma pequena chácara vivia uma mulher e seu marido fazendeiro. Por lá também viviam alguns animais: a vaca, o porco, a galinha e o RATO.

O rato vivia tranquilamente em um buraco na parede da casa e tinha boa convivência com os outros animais, mas em um certo dia ficou desesperado.
A senhora dona da casa havia colocado uma ratoeira para pegá-lo.



Na hora que viu a armadilha, saiu correndo para pedir ajuda a seus colegas animais:



– Vaca, nós estamos com um problemão, armaram uma ratoeira lá na casa.
A vaca, que estava mascando capim, deu risada.
– Nós? Por um acaso entro na casa do fazendeiro? Aliás, você já viu ratoeira pegar vaca? Isto é problema seu.
O rato ainda desesperado saiu a procura do porco:
– Porco, está havendo uma baita confusão, a mulher do fazendeiro colocou uma ratoeira em casa.
– Ratoeira? Olha o meu tamanho, você acha que ratoeira pega um porco como eu? Se vire, isto é um problema seu.
O rato, triste e perplexo por ninguém lhe ajudar, correu para conversar com a galinha:
– Galinha, nós estamos com um problema muito sério.
– Mais problemas eu não aguento, já tenho que botar um monte de ovos e você me aparece com mais problemas? Não quero nem saber…
– Mas tem uma ratoeira armada lá na casa, disse desesperadamente o rato!
– Mas isso não é comigo, é contigo.
O rato foi embora triste e desapontado, pois não conseguiu sensibilizar ninguém a ajudá-lo.
À noite todos dormiram e, de repente, splaft.
A ratoeira desarmou.
O barulho chamou a atenção de todos lá na chácara. Todos correram para ver o que aconteceu……..
inclusive o rato.
Era uma cobra cascavel que havia sido pega na ratoeira.
A mulher levantou-se e foi tirar a cascavel da ratoeira e num descuido, tomou uma picada.
Foi levada imediatamente ao hospital por seus parentes, onde ficou internada por vinte dias, na volta, com a saúde muito debilitada, precisava de muitos cuidados e uma alimentação especial.
Qual a melhor dieta para recuperar a saúde?
Canja!
Lá se foi a galinha.
Depois de um mês, com a saúde restabelecida, resolveu oferecer um almoço para todos seus parentes que a tinham ajudado.
E lá se foi o porco (assado no espeto).
Para completar o tratamento no hospital tinha ficado muito caro, não houve alternativa, tiveram que vender a vaca para um açougueiro.
Você não está sozinho no mundo

Cuidado: a ratoeira pode não te pegar em um primeiro momento, mas seus efeitos podem ser devastadores.


29 de novembro de 2014

o Papa Menino



Chegar a maturidade sem perder a capacidade de se emocionar como um menino, ao soltar uma pomba não é para qualquer um. É preciso ter muita intimidade com aquele menino Deus que vive no coração de cada um de nós e que na maioria das vezes não damos muita atenção, com medo que nos achem imaturos. Tolos que somos...
Deus abençoe este papa de olhos brilhantes que não se envergonha de se emocionar diante do mundo com pequenos, significativos e sobretudo simples gestos infantis. Ele sabe que Jesus disse que o Reino é para os simples e os pequeninos.
Deus abençoe e proteja Francisco, o mensageiro do Espírito Santo em nossos dias.

4 de outubro de 2014

4 de Outubro - São Francisco de Assis

.
Dos muitos santos que a igreja conduziu ao altar, na minha opinião Francisco foi o que mais próximo chegou do ideal proposto por Jesus.
Ele procurou viver exatamente da forma como Lucas descreve as primeiras comunidades no inicio dos Atos dos Apóstolos. Despojou-se de tudo para mergulhar no cuidado aos pequeninos, atendendo ao que disse Jesus no evangelho de Mateus. Que ele possa mais que nos inspirar interceder por cada um de nós junto ao Mestre que ele tanto amava e a quem era tão fiel.
Que cada um de nós se esforce para pelo menos fazer em vida, uma tentativa de ser parecido com ele, na semeadura da Paz , na pratica do amor sem que seja preciso ser amado, na ampliação da capacidade de perdoar, diminuindo as discórdias, procurando sanar as dúvidas, difundido a verdade, a esperança e a alegria.
Que possamos ser instrumentos do Espírito Santo, para como Francisco, inundar as trevas com a Luz e que o seu exemplo nos de a certeza de que é servindo que se vive para a vida eterna.

25 de setembro de 2014

Sejamos UM


João 17
11.Já não estou no mundo, mas eles estão ainda no mundo; eu, porém, vou para junto de ti. Pai santo, guarda-os em teu nome, que me encarregaste de fazer conhecer, A FIM DE QUE SEJAM UM COMO NÓS.........

21 Para QUE TODOS SEJAM UM assim como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, PARA QUE TAMBÉM ELES ESTEJAM EM NÓS e o mundo creia que tu me enviaste

.22. DEI-LHES A GLÓRIA QUE ME DESTES, PARA QUE SEJAM UM, COMO NÓS SOMOS UM  23.EU NELES E TU EM MIM, para que sejam perfeitos na unidade e o mundo reconheça que me enviaste e os amaste, como amaste a mim.

.

16 de setembro de 2014

A Religião do século XXI


Conspiração Universal


É isso, simples assim

Não precisamos de templos, somos o templo.
Não precisamos ficar repetindo orações, precisamos sim de ações, ora!
A liturgia mais perfeita e que mais agrada a Deus é o ato de repartir, que começa com o gesto de Jesus e se repete no beijo que salva alguém do suicido, nos abraços dados sem que se olhe a quem. 
Partilhado num olhar, num sorriso, numa palavra amiga a um desconhecido.

Assim com Deus cansou-se dos sacrifícios sangrentos Ele também cansou-se de todo o palavrório dito sem muita consciencia, dos gestos mecânicos, da aparência piedosa que esconde um coração de pedra.Jesus nos disse que toda a lei e toda a profecia se resumia em amar como ele nos ama. que é um sentimento e Note que ele nos disse AMAR, e não "o amor" que é um sentimento. Em sentimento não mandamos, apenas sentimos, já AMAR é pratica, ação concreta, exercício.De coração a coração comunque o que
tem de melhor.
 

3 de setembro de 2014

"Não esperava ver uma mudança radical na Igreja"


O teólogo Hans Küng, "reformista crítico", celebra o papado de Francisco, critica a canonização de João Paulo II e fala de Céu, Inferno, eutanásia, amor carnal...
por Markus Grill — publicado 03/09/2014 05:08
Papa Francisco, o verdadeiro revolucionário
Hans küng lutou durante toda a sua vida pelas reformas hoje avaliadas pelo Vaticano. Nesta entrevista, o teólogo suíço fala sobre as probabilidades de o papa Francisco revolucionar a Igreja, por que João Paulo II não deveria ser canonizado e o que ele espera aprender no Céu.
Küng tem sido uma voz a favor da reforma da Igreja Católica há décadas: da infalibilidade papal ao celibato dos padres e à eutanásia. Sua atuação custou-lhe a licença para ensinar teologia católica e levou muitos a considerá-lo um herege. Aos 85 anos, afetado por mal de Parkinson e outras doenças, o suíço vê a Igreja sob Francisco contemplar várias das ideias defendidas por ele faz muito tempo.
Markus Grill: Professor Küng, o senhor irá para o Céu?
Hans Küng: Certamente, espero que sim.
MG: Alguns diriam que o senhor irá para o Inferno, por ser um herege aos olhos da Igreja.
HK: Não sou um herege, mas um teólogo reformista crítico. Diferentemente de muitos de meus detratores, uso como parâmetro o Evangelho, em vez da teologia medieval, a liturgia e a lei da Igreja.
MG: O Inferno existe?
HK: A referência ao Inferno é uma advertência ao fato de um ser humano poder negligenciar completamente seu propósito na vida. Não acredito em um Inferno eterno.
MG: Se o Inferno significa perder seu propósito na vida, deve ser uma noção muito secular.
HK: Os indivíduos criam seu próprio inferno, em guerras, assim como no capitalismo desenfreado.
MG: Em seu ensaio “Fragmento sobre o tema da religião”, Thomas Mann admitiu pensar na morte quase todos os dias. E o senhor?
HK: Na verdade, sempre pensei que morreria jovem, pois acreditava que, diante da minha vida louca, não chegaria aos 50 anos. Hoje estou surpreso por ter 85 e continuar vivo.
MG: O senhor é um homem idoso e doente. Tem perda auditiva aguda, osteoartrite e degeneração macular, que destruirá sua capacidade de ler.
HK: Essa seria a pior coisa, não ser mais capaz de ler.
MG: O senhor foi diagnosticado com doença de Parkinson.
HK: Entretanto, ainda trabalho muito duro todos os dias. Mas interpreto todas essas coisas como sinais de advertência sobre minha morte iminente. Minha caligrafia tem ficado pequena e muitas vezes ilegível, quase como se estivesse prestes a desaparecer. Meus dedos falham. É um fato que minha condição geral deteriorou. Mas eu também combato isso. Nado 15 minutos todos os dias onde moro e faço exercícios de fisioterapia, assim como exercícios para a voz e para os dedos, e me dedico a novas tarefas. Além disso, tomo vários remédios por dia.
MG: O senhor escreveu mais de 60 livros e sempre foi um homem muito produtivo, que gostava de entrar em discussões. Em suas memórias, o senhor avalia se em breve não será nada além de uma sombra de si mesmo.
HK: É claro, os diagnósticos e prognósticos dos médicos são imprecisos. Minha visão, por exemplo, deteriora-se mais lentamente do que o previsto. Dois anos atrás, meu médico disse que eu só conseguiria ler por mais dois anos. E hoje ainda consigo ler. Mas vivo em aviso prévio, e estou preparado para me despedir a qualquer momento.
MG: Seu amigo, o escritor e intelectual Walter Jens, caiu em um estado de demência que rapidamente se deteriorou nove anos atrás. Ele morreu faz pouco tempo.
HK: Eu o visitei várias vezes, inclusive pouco antes de sua morte. Até alguns anos atrás, seu rosto ainda se iluminava quando eu o visitava. Mas nos últimos anos ele não se lembrava mais se tinha me visto na véspera ou um mês antes. No final, não me reconhecia mais. Foi deprimente pensar que Jens, um dos intelectuais mais importantes do pós-Guerra, havia recuado para uma espécie de infância.
MG: A demência também foi dura para Jens, ou apenas para seus parentes e amigos?
HK: No início de sua doença, quando você perguntava como se sentia, ele quase sempre dizia “péssimo” ou “mal”. Ao mesmo tempo, ele passou a apreciar pequenas coisas, como crianças, animais e doces. Eu costumava levar-lhe chocolates. No início ele comia sozinho, mas depois eu tinha de colocá-los em sua boca. Não podemos saber o que Jens experimentou no final. Mas não se pode esperar que eu aceite estar em uma condição semelhante.
MG: Em 1995, o senhor e Jens coescreveram o livro Dying With Dignity (Morrendo com Dignidade). Como cristão, o senhor pode pôr fim à sua própria vida?
HK: Sinto que a vida é um dom de Deus. Mas Deus me tornou responsável por esse dom. O mesmo se aplica à última fase da vida, a morte. O Deus da Bíblia é um Deus de compaixão, e não um déspota cruel que quer ver os seres humanos passarem o maior tempo possível em um inferno de sua própria dor. Em outras palavras, o suicídio assistido pode ser a forma definitiva de ajuda na vida.
MG: A Igreja Católica considera a eutanásia um pecado, uma infração à soberania do criador.
HK: Não apreciei quando o porta-voz do bispo de Rotemburgo declarou que o que eu havia escrito representava os ensinamentos de Küng, e não os ensinamentos da Igreja. Uma hierarquia eclesiástica que errou tanto sobre o controle de natalidade, a pílula e a inseminação artificial não deveria cometer os mesmos erros agora sobre questões relativas ao fim da vida. Nossa situação mudou fundamentalmente no século XXI. A expectativa média de vida cem anos atrás era de 45 anos, e a maioria morria cedo. Hoje tenho 85, mas é uma extensão artificial da minha vida, graças às dez pílulas que tomo diariamente, e graças aos progressos na higiene e na medicina.
MG: O senhor tem medo de uma doença prolongada?
HK: Escrevi instruções cuidadosamente formuladas e recentemente entrei para uma organização de suicídio assistido. Isso não significa que desejo cometer suicídio. Mas, caso minha doença piore, quero ter uma garantia de que posso morrer de maneira digna. Em nenhum lugar a Bíblia diz que um ser humano tem de se manter até o fim ordenado. Ninguém nos diz o que “ordenado” significa.
MG: O senhor tem de ir para outro país para ter acesso ao suicídio assistido.
HK: Sou um cidadão suíço.
MG: Como funciona exatamente? O senhor telefona e diz: estou indo?
HK: Ainda não tenho um mapa do caminho. Mas escrevi minha própria liturgia da morte no último volume de minhas memórias.
MG: Um padre não poderá lhe administrar os últimos ritos.
HK: Terei comigo um amigo que é padre, um de meus alunos.
MG: Em Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, o protagonista se mata por amor. O livro termina com a sentença: “Nenhum padre esteve presente”. Essa é a posição da Igreja.
HK: Eu sempre objetei a que minha posição sobre a morte fosse considerada um protesto contra a autoridade da Igreja. Não quero fornecer regras gerais, e só posso decidir por mim mesmo. Seria ridículo encenar a própria morte como um protesto contra a autoridade da Igreja. O que eu quero, entretanto, é que a questão seja discutida de maneira aberta e amigável.
MG: Mas que ser humano com uma doença incurável desejará impor uma carga a seus parentes quando o suicídio assistido se tornar socialmente aceito?
HK: Existe, é claro, o risco que você descreve. Mas hoje o suicídio assistido ocorre em uma zona cinzenta, pois é proibido. Muitos médicos aumentam a dose de morfina quando chega a hora, e ao fazê-lo correm o risco de ser condenados por um crime. Alguns pacientes, quando não conseguem encontrar esses médicos, saltam da janela do hospital. Isso é intolerável. Não podemos deixar essa questão à discrição de cada médico. Precisamos de um regulamento legal, em parte para proteger os médicos.
MG: Não nos agarramos demais à vida no final, de modo que perdemos o momento certo?
HK: Isso é possível, é claro.
MG: O senhor se agarra à vida?
HK: Eu não me agarro à vida terrena, porque acredito na vida eterna. Essa é a grande distinção entre meu ponto de vista e uma posição puramente secular.
MG: O senhor escreve em suas memórias: “Meu coração dói quando penso em todas as coisas que terei de abandonar”.
HK: É verdade. Não me despeço da vida por ser um misantropo ou por desprezá-la, mas porque, por outros motivos, está na hora de seguir em frente. Estou firmemente convencido de que existe vida após a morte, não em um sentido primitivo, mas como a entrada de minha natureza completamente finita no infinito de Deus, como uma transição para outra realidade além da dimensão do espaço e do tempo que a pura razão não pode afirmar nem negar. É uma questão de razoável confiança. Não tenho evidência matemática e científica disso, mas tenho bons motivos para confiar na mensagem da Bíblia, e acredito em ser recebido por um Deus misericordioso.
MG: O senhor tem um conceito de céu?
HK: A maioria das maneiras de falar sobre o céu são imagens puras que não podem ser tomadas literalmente. Estamos muito distantes das noções de céu no período anterior a Copérnico. No céu, espero, porém, conhecer as respostas para os grandes mistérios do mundo, para perguntas como: Por que uma coisa é uma coisa e não nada? De onde vêm o big-bang e as constantes físicas? Em outras palavras,  há perguntas que nem a astrofísica nem a filosofia responderam. De qualquer modo, falo sobre um estado de paz eterna e felicidade eterna.
MG: Hoje a física pode explicar o cosmo escuro, com seus bilhões de estrelas, muito melhor do que no passado. Isso abalou a sua fé?
HK: Quando consideramos como o universo é enorme e escuro, certamente não facilita as coisas para a fé. Quando Beethoven compôs a Nona Sinfonia, ainda podia esperar que “acima da abóbada de estrelas vivesse um pai amoroso”. Nós, entretanto, temos de aceitar que sabemos pouco. Noventa e cinco por cento do universo é desconhecido para nós, e nada sabemos sobre os 27% de matéria escura ou 68% de energia escura. A física se aproxima cada vez mais da origem, no entanto não consegue explicar a origem em si.
MG: O que acontece atualmente no Vaticano é aquilo pelo qual o senhor passou a vida a lutar: uma liberalização e reforma da Igreja. Isso acontece no momento em que o senhor envelhece e se torna frágil. É uma ironia da história?
HK: A ironia aplica-se mais a meu ex-colega Joseph Ratzinger do que a mim. Eu não esperava ver uma mudança radical na Igreja Católica durante minha vida. Sempre acreditei, e passei a aceitar, que Küng partiria e Ratzinger ficaria. Por isso fiquei tão surpreso ao ver Bento XVI sair e o papa Francisco assumir o cargo em 19 de março de 2013, meu aniversário e dia onomástico de Ratzinger.
MG: Como foi possível que um colégio de cardeais formado por homens conservadores e de modo geral retrógrados elegesse um revolucionário para papa?
HK: Em primeiro lugar, eles nem sabiam o quanto ele é revolucionário. Mas, fora o núcleo duro da Cúria, muitos cardeais sabiam que a Igreja está em uma crise profunda, simbolizada pela corrupção no Vaticano, o encobrimento de casos de abuso e o escândalo do VatiLeaks. Os cardeais muitas vezes foram confrontados com duras críticas de suas congregações nativas.
MG: Um indivíduo pode revolucionar uma instituição como a Igreja Católica?
HK: Sim, se ela receber bons conselhos como papa e tiver uma equipe capaz. Do ponto de vista jurídico, o papa tem mais poder que o presidente dos Estados Unidos.
MG: Mas só dentro da igreja, porque suas decisões não são submetidas à aprovação de um órgão legislativo.
HK: Também não há Suprema Corte. Se quisesse, o papa poderia abolir imediatamente a lei do celibato adotada no século XII.
MG: A Primavera Árabe poderia ser seguida por uma Primavera Católica?
HK: Já está aqui, mas existe o mesmo risco de reveses e movimentos contrários, como houve na Primavera Árabe. Existem grupos poderosos no Vaticano e na Igreja em todo o mundo que gostariam de reverter o tempo. Eles estão preocupados com seus privilégios.
MG: O senhor se incomoda por não poder mais se envolver nesses debates?
HK: Aceito isso calmamente. Para mim é mais importante o papa ler o que eu lhe envio do que me convidar para ir a Roma.
MG: Recentemente, ele lhe escreveu e disse ter gostado de ler os dois livros que o senhor lhe enviou, e que permanece “à sua disposição”.
HK: Recebi recentemente duas cartas manuscritas e muito amigáveis dele. O endereço do remetente nos envelopes dizia apenas “F., Domus Sanctae Marthae, Vaticano”, e ele assinou as cartas “com saudações fraternas”. Até isso é um novo estilo. Em 27 anos, João Paulo II não me considerou digno de uma única resposta.
MG: Com quem Francisco pode ser comparado?
HK: Provavelmente, com João XXIII, mas ele não tem uma de suas fraquezas. João XXIII fez reformas apressadas e sem uma agenda. Ele cometeu sérios erros administrativos.
MG: A questão é se Francisco impressiona apenas com gestos, ou há mais por trás disso.
HK: Os trajes mais simples, as mudanças no protocolo e o tom de voz completamente diferente não são coisas superficiais. Ele introduziu uma mudança de paradigmas. Com esse papa, ressurgiu o caráter de serviço do cargo papal. Ele quer que os padres saiam das igrejas e encontrem os fiéis. Recentemente, enviou aos bispos uma pesquisa para obter as opiniões dos laicos sobre assuntos familiares. Sua primeira viagem o levou aos refugiados em Lampedusa. Tudo isso é um distanciamento da maneira como Bento XVI interpretava o cargo. O apelo por uma Igreja pobre leva a uma maneira de pensar diferente. Com Bento, o extravagante bispo de Limburg provavelmente ainda estaria no cargo.
MG: Mas Francisco confirmou o arcebispo linha-dura Gerhard Ludwig Müller como chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, o vigilante do Vaticano e policial em questões da doutrina aceita.
HK: Poderia imaginar que Bento fizesse uma forte campanha para manter Müller no cargo. Mas o teste definitivo será se o novo papa continuará a permitir que ele interprete o supervisor da fé e o grande inquisidor.
MG: E a canonização de João Paulo II, que reforçou grupos controversos como o Opus Dei e a Legião de Cristo?
HK: Não posso entender a canonização. Trata-se do papa mais contraditório do século XX. Ele venerava a Virgem Maria, mas negava às mulheres cargos na Igreja. Ele pregava contra a pobreza em massa, no entanto proibia a contracepção. Discuti extensamente 11 dessas enormes contradições no último volume de minhas memórias. Suas palavras divergiam constantemente de seus atos. Ele considerava o padre Marcial Maciel, um dos piores molestadores de meninos e fundador da Legião de Cristo, seu amigo e o defendeu contra todas as críticas.
MG: O senhor perdoa Francisco por essa canonização?
HK: Bento XVI acelerou a canonização de Wojtyla e ignorou todos os períodos de espera requeridos. Deter o processo agora não apenas seria uma afronta a Bento, mas a muitos poloneses. Posso entender que Francisco não queira fazer isso. Ao menos o papa reformista João XXIII também foi canonizado. Devemos pensar se as canonizações, uma invenção medieval, ainda têm sentido hoje.
MG: Há alguma coisa em sua vida que gostaria de desfazer?
HK: Fui muito polêmico às vezes, e gostaria de não ter dito certas coisas. Minha experiência mais drástica foi, porém, a revogação da licença para ensinar como teólogo católico, em 1979. Foi devastador para mim, emocional e fisicamente. Houve um dia em que eu estava deitado neste sofá amarelo e não conseguia ir à reunião de professores marcada para discutir meu caso.
MG: O senhor espera ser reabilitado em vida?
HK: Não. A Conferência Episcopal Alemã poderia iniciar o processo e Roma só teria de concordar. Mas não prevejo ou espero isso. O papa Francisco não deveria pôr em risco outras tarefas importantes ao me reabilitar e aproximar-se demais de mim.
MG: O senhor foi acusado de vaidade durante toda a sua vida. Existe até um capítulo inteiro sobre isso em suas memórias.
HK: Provavelmente, não sou mais vaidoso que a média.
MG: Parte do motivo de sua licenciatura ter sido revogada deveu-se ao fato de o senhor pôr em dúvida a necessidade de celibato dos padres. O senhor acredita que as regras poderão ser modificadas com Francisco?
HK: Não posso realmente imaginar que essa questão continue a ser adiada. A cada dia há menos sacerdotes paroquiais. Não sei como a Igreja poderá oferecer atendimento pastoral na próxima geração. A questão é relevante há algum tempo e os fiéis apoiam amplamente essa reforma.
MG: O senhor vive em celibato?
HK: Não sou casado e não tenho esposa nem filhos.
MG: Há uma mulher em suas memórias a quem o senhor se refere como “minha companheira ideal na vida”.
HK: Sim, no sentido de uma companheira de viagem ideal. Temos propriedades separadas, vivemos em andares separados e temos apartamentos separados. Eu descrevo tudo isso em minhas memórias 

"Não esperava ver uma mudança radical na Igreja"

O teólogo Hans Küng, "reformista crítico", celebra o papado de Francisco, critica a canonização de João Paulo II e fala de Céu, Inferno, eutanásia, amor carnal...
por Markus Grill — publicado 03/09/2014 05:08



Papa Francisco, o verdadeiro revolucionário
Hans küng lutou durante toda a sua vida pelas reformas hoje avaliadas pelo Vaticano. Nesta entrevista, o teólogo suíço fala sobre as probabilidades de o papa Francisco revolucionar a Igreja, por que João Paulo II não deveria ser canonizado e o que ele espera aprender no Céu.
Küng tem sido uma voz a favor da reforma da Igreja Católica há décadas: da infalibilidade papal ao celibato dos padres e à eutanásia. Sua atuação custou-lhe a licença para ensinar teologia católica e levou muitos a considerá-lo um herege. Aos 85 anos, afetado por mal de Parkinson e outras doenças, o suíço vê a Igreja sob Francisco contemplar várias das ideias defendidas por ele faz muito tempo.
Markus Grill: Professor Küng, o senhor irá para o Céu?
Hans Küng: Certamente, espero que sim.
MG: Alguns diriam que o senhor irá para o Inferno, por ser um herege aos olhos da Igreja.
HK: Não sou um herege, mas um teólogo reformista crítico. Diferentemente de muitos de meus detratores, uso como parâmetro o Evangelho, em vez da teologia medieval, a liturgia e a lei da Igreja.
MG: O Inferno existe?
HK: A referência ao Inferno é uma advertência ao fato de um ser humano poder negligenciar completamente seu propósito na vida. Não acredito em um Inferno eterno.
MG: Se o Inferno significa perder seu propósito na vida, deve ser uma noção muito secular.
HK: Os indivíduos criam seu próprio inferno, em guerras, assim como no capitalismo desenfreado.
MG: Em seu ensaio “Fragmento sobre o tema da religião”, Thomas Mann admitiu pensar na morte quase todos os dias. E o senhor?
HK: Na verdade, sempre pensei que morreria jovem, pois acreditava que, diante da minha vida louca, não chegaria aos 50 anos. Hoje estou surpreso por ter 85 e continuar vivo.
MG: O senhor é um homem idoso e doente. Tem perda auditiva aguda, osteoartrite e degeneração macular, que destruirá sua capacidade de ler.
HK: Essa seria a pior coisa, não ser mais capaz de ler.
MG: O senhor foi diagnosticado com doença de Parkinson.
HK: Entretanto, ainda trabalho muito duro todos os dias. Mas interpreto todas essas coisas como sinais de advertência sobre minha morte iminente. Minha caligrafia tem ficado pequena e muitas vezes ilegível, quase como se estivesse prestes a desaparecer. Meus dedos falham. É um fato que minha condição geral deteriorou. Mas eu também combato isso. Nado 15 minutos todos os dias onde moro e faço exercícios de fisioterapia, assim como exercícios para a voz e para os dedos, e me dedico a novas tarefas. Além disso, tomo vários remédios por dia.
MG: O senhor escreveu mais de 60 livros e sempre foi um homem muito produtivo, que gostava de entrar em discussões. Em suas memórias, o senhor avalia se em breve não será nada além de uma sombra de si mesmo.
HK: É claro, os diagnósticos e prognósticos dos médicos são imprecisos. Minha visão, por exemplo, deteriora-se mais lentamente do que o previsto. Dois anos atrás, meu médico disse que eu só conseguiria ler por mais dois anos. E hoje ainda consigo ler. Mas vivo em aviso prévio, e estou preparado para me despedir a qualquer momento.
MG: Seu amigo, o escritor e intelectual Walter Jens, caiu em um estado de demência que rapidamente se deteriorou nove anos atrás. Ele morreu faz pouco tempo.
HK: Eu o visitei várias vezes, inclusive pouco antes de sua morte. Até alguns anos atrás, seu rosto ainda se iluminava quando eu o visitava. Mas nos últimos anos ele não se lembrava mais se tinha me visto na véspera ou um mês antes. No final, não me reconhecia mais. Foi deprimente pensar que Jens, um dos intelectuais mais importantes do pós-Guerra, havia recuado para uma espécie de infância.
MG: A demência também foi dura para Jens, ou apenas para seus parentes e amigos?
HK: No início de sua doença, quando você perguntava como se sentia, ele quase sempre dizia “péssimo” ou “mal”. Ao mesmo tempo, ele passou a apreciar pequenas coisas, como crianças, animais e doces. Eu costumava levar-lhe chocolates. No início ele comia sozinho, mas depois eu tinha de colocá-los em sua boca. Não podemos saber o que Jens experimentou no final. Mas não se pode esperar que eu aceite estar em uma condição semelhante.
MG: Em 1995, o senhor e Jens coescreveram o livro Dying With Dignity (Morrendo com Dignidade). Como cristão, o senhor pode pôr fim à sua própria vida?
HK: Sinto que a vida é um dom de Deus. Mas Deus me tornou responsável por esse dom. O mesmo se aplica à última fase da vida, a morte. O Deus da Bíblia é um Deus de compaixão, e não um déspota cruel que quer ver os seres humanos passarem o maior tempo possível em um inferno de sua própria dor. Em outras palavras, o suicídio assistido pode ser a forma definitiva de ajuda na vida.
MG: A Igreja Católica considera a eutanásia um pecado, uma infração à soberania do criador.
HK: Não apreciei quando o porta-voz do bispo de Rotemburgo declarou que o que eu havia escrito representava os ensinamentos de Küng, e não os ensinamentos da Igreja. Uma hierarquia eclesiástica que errou tanto sobre o controle de natalidade, a pílula e a inseminação artificial não deveria cometer os mesmos erros agora sobre questões relativas ao fim da vida. Nossa situação mudou fundamentalmente no século XXI. A expectativa média de vida cem anos atrás era de 45 anos, e a maioria morria cedo. Hoje tenho 85, mas é uma extensão artificial da minha vida, graças às dez pílulas que tomo diariamente, e graças aos progressos na higiene e na medicina.
MG: O senhor tem medo de uma doença prolongada?
HK: Escrevi instruções cuidadosamente formuladas e recentemente entrei para uma organização de suicídio assistido. Isso não significa que desejo cometer suicídio. Mas, caso minha doença piore, quero ter uma garantia de que posso morrer de maneira digna. Em nenhum lugar a Bíblia diz que um ser humano tem de se manter até o fim ordenado. Ninguém nos diz o que “ordenado” significa.
MG: O senhor tem de ir para outro país para ter acesso ao suicídio assistido.
HK: Sou um cidadão suíço.
MG: Como funciona exatamente? O senhor telefona e diz: estou indo?
HK: Ainda não tenho um mapa do caminho. Mas escrevi minha própria liturgia da morte no último volume de minhas memórias.
MG: Um padre não poderá lhe administrar os últimos ritos.
HK: Terei comigo um amigo que é padre, um de meus alunos.
MG: Em Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, o protagonista se mata por amor. O livro termina com a sentença: “Nenhum padre esteve presente”. Essa é a posição da Igreja.
HK: Eu sempre objetei a que minha posição sobre a morte fosse considerada um protesto contra a autoridade da Igreja. Não quero fornecer regras gerais, e só posso decidir por mim mesmo. Seria ridículo encenar a própria morte como um protesto contra a autoridade da Igreja. O que eu quero, entretanto, é que a questão seja discutida de maneira aberta e amigável.
MG: Mas que ser humano com uma doença incurável desejará impor uma carga a seus parentes quando o suicídio assistido se tornar socialmente aceito?
HK: Existe, é claro, o risco que você descreve. Mas hoje o suicídio assistido ocorre em uma zona cinzenta, pois é proibido. Muitos médicos aumentam a dose de morfina quando chega a hora, e ao fazê-lo correm o risco de ser condenados por um crime. Alguns pacientes, quando não conseguem encontrar esses médicos, saltam da janela do hospital. Isso é intolerável. Não podemos deixar essa questão à discrição de cada médico. Precisamos de um regulamento legal, em parte para proteger os médicos.
MG: Não nos agarramos demais à vida no final, de modo que perdemos o momento certo?
HK: Isso é possível, é claro.
MG: O senhor se agarra à vida?
HK: Eu não me agarro à vida terrena, porque acredito na vida eterna. Essa é a grande distinção entre meu ponto de vista e uma posição puramente secular.
MG: O senhor escreve em suas memórias: “Meu coração dói quando penso em todas as coisas que terei de abandonar”.
HK: É verdade. Não me despeço da vida por ser um misantropo ou por desprezá-la, mas porque, por outros motivos, está na hora de seguir em frente. Estou firmemente convencido de que existe vida após a morte, não em um sentido primitivo, mas como a entrada de minha natureza completamente finita no infinito de Deus, como uma transição para outra realidade além da dimensão do espaço e do tempo que a pura razão não pode afirmar nem negar. É uma questão de razoável confiança. Não tenho evidência matemática e científica disso, mas tenho bons motivos para confiar na mensagem da Bíblia, e acredito em ser recebido por um Deus misericordioso.
MG: O senhor tem um conceito de céu?
HK: A maioria das maneiras de falar sobre o céu são imagens puras que não podem ser tomadas literalmente. Estamos muito distantes das noções de céu no período anterior a Copérnico. No céu, espero, porém, conhecer as respostas para os grandes mistérios do mundo, para perguntas como: Por que uma coisa é uma coisa e não nada? De onde vêm o big-bang e as constantes físicas? Em outras palavras,  há perguntas que nem a astrofísica nem a filosofia responderam. De qualquer modo, falo sobre um estado de paz eterna e felicidade eterna.
MG: Hoje a física pode explicar o cosmo escuro, com seus bilhões de estrelas, muito melhor do que no passado. Isso abalou a sua fé?
HK: Quando consideramos como o universo é enorme e escuro, certamente não facilita as coisas para a fé. Quando Beethoven compôs a Nona Sinfonia, ainda podia esperar que “acima da abóbada de estrelas vivesse um pai amoroso”. Nós, entretanto, temos de aceitar que sabemos pouco. Noventa e cinco por cento do universo é desconhecido para nós, e nada sabemos sobre os 27% de matéria escura ou 68% de energia escura. A física se aproxima cada vez mais da origem, no entanto não consegue explicar a origem em si.
MG: O que acontece atualmente no Vaticano é aquilo pelo qual o senhor passou a vida a lutar: uma liberalização e reforma da Igreja. Isso acontece no momento em que o senhor envelhece e se torna frágil. É uma ironia da história?
HK: A ironia aplica-se mais a meu ex-colega Joseph Ratzinger do que a mim. Eu não esperava ver uma mudança radical na Igreja Católica durante minha vida. Sempre acreditei, e passei a aceitar, que Küng partiria e Ratzinger ficaria. Por isso fiquei tão surpreso ao ver Bento XVI sair e o papa Francisco assumir o cargo em 19 de março de 2013, meu aniversário e dia onomástico de Ratzinger.
MG: Como foi possível que um colégio de cardeais formado por homens conservadores e de modo geral retrógrados elegesse um revolucionário para papa?
HK: Em primeiro lugar, eles nem sabiam o quanto ele é revolucionário. Mas, fora o núcleo duro da Cúria, muitos cardeais sabiam que a Igreja está em uma crise profunda, simbolizada pela corrupção no Vaticano, o encobrimento de casos de abuso e o escândalo do VatiLeaks. Os cardeais muitas vezes foram confrontados com duras críticas de suas congregações nativas.
MG: Um indivíduo pode revolucionar uma instituição como a Igreja Católica?
HK: Sim, se ela receber bons conselhos como papa e tiver uma equipe capaz. Do ponto de vista jurídico, o papa tem mais poder que o presidente dos Estados Unidos.
MG: Mas só dentro da igreja, porque suas decisões não são submetidas à aprovação de um órgão legislativo.
HK: Também não há Suprema Corte. Se quisesse, o papa poderia abolir imediatamente a lei do celibato adotada no século XII.
MG: A Primavera Árabe poderia ser seguida por uma Primavera Católica?
HK: Já está aqui, mas existe o mesmo risco de reveses e movimentos contrários, como houve na Primavera Árabe. Existem grupos poderosos no Vaticano e na Igreja em todo o mundo que gostariam de reverter o tempo. Eles estão preocupados com seus privilégios.
MG: O senhor se incomoda por não poder mais se envolver nesses debates?
HK: Aceito isso calmamente. Para mim é mais importante o papa ler o que eu lhe envio do que me convidar para ir a Roma.
MG: Recentemente, ele lhe escreveu e disse ter gostado de ler os dois livros que o senhor lhe enviou, e que permanece “à sua disposição”.
HK: Recebi recentemente duas cartas manuscritas e muito amigáveis dele. O endereço do remetente nos envelopes dizia apenas “F., Domus Sanctae Marthae, Vaticano”, e ele assinou as cartas “com saudações fraternas”. Até isso é um novo estilo. Em 27 anos, João Paulo II não me considerou digno de uma única resposta.
MG: Com quem Francisco pode ser comparado?
HK: Provavelmente, com João XXIII, mas ele não tem uma de suas fraquezas. João XXIII fez reformas apressadas e sem uma agenda. Ele cometeu sérios erros administrativos.
MG: A questão é se Francisco impressiona apenas com gestos, ou há mais por trás disso.
HK: Os trajes mais simples, as mudanças no protocolo e o tom de voz completamente diferente não são coisas superficiais. Ele introduziu uma mudança de paradigmas. Com esse papa, ressurgiu o caráter de serviço do cargo papal. Ele quer que os padres saiam das igrejas e encontrem os fiéis. Recentemente, enviou aos bispos uma pesquisa para obter as opiniões dos laicos sobre assuntos familiares. Sua primeira viagem o levou aos refugiados em Lampedusa. Tudo isso é um distanciamento da maneira como Bento XVI interpretava o cargo. O apelo por uma Igreja pobre leva a uma maneira de pensar diferente. Com Bento, o extravagante bispo de Limburg provavelmente ainda estaria no cargo.
MG: Mas Francisco confirmou o arcebispo linha-dura Gerhard Ludwig Müller como chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, o vigilante do Vaticano e policial em questões da doutrina aceita.
HK: Poderia imaginar que Bento fizesse uma forte campanha para manter Müller no cargo. Mas o teste definitivo será se o novo papa continuará a permitir que ele interprete o supervisor da fé e o grande inquisidor.
MG: E a canonização de João Paulo II, que reforçou grupos controversos como o Opus Dei e a Legião de Cristo?
HK: Não posso entender a canonização. Trata-se do papa mais contraditório do século XX. Ele venerava a Virgem Maria, mas negava às mulheres cargos na Igreja. Ele pregava contra a pobreza em massa, no entanto proibia a contracepção. Discuti extensamente 11 dessas enormes contradições no último volume de minhas memórias. Suas palavras divergiam constantemente de seus atos. Ele considerava o padre Marcial Maciel, um dos piores molestadores de meninos e fundador da Legião de Cristo, seu amigo e o defendeu contra todas as críticas.
MG: O senhor perdoa Francisco por essa canonização?
HK: Bento XVI acelerou a canonização de Wojtyla e ignorou todos os períodos de espera requeridos. Deter o processo agora não apenas seria uma afronta a Bento, mas a muitos poloneses. Posso entender que Francisco não queira fazer isso. Ao menos o papa reformista João XXIII também foi canonizado. Devemos pensar se as canonizações, uma invenção medieval, ainda têm sentido hoje.
MG: Há alguma coisa em sua vida que gostaria de desfazer?
HK: Fui muito polêmico às vezes, e gostaria de não ter dito certas coisas. Minha experiência mais drástica foi, porém, a revogação da licença para ensinar como teólogo católico, em 1979. Foi devastador para mim, emocional e fisicamente. Houve um dia em que eu estava deitado neste sofá amarelo e não conseguia ir à reunião de professores marcada para discutir meu caso.
MG: O senhor espera ser reabilitado em vida?
HK: Não. A Conferência Episcopal Alemã poderia iniciar o processo e Roma só teria de concordar. Mas não prevejo ou espero isso. O papa Francisco não deveria pôr em risco outras tarefas importantes ao me reabilitar e aproximar-se demais de mim.
MG: O senhor foi acusado de vaidade durante toda a sua vida. Existe até um capítulo inteiro sobre isso em suas memórias.
HK: Provavelmente, não sou mais vaidoso que a média.
MG: Parte do motivo de sua licenciatura ter sido revogada deveu-se ao fato de o senhor pôr em dúvida a necessidade de celibato dos padres. O senhor acredita que as regras poderão ser modificadas com Francisco?
HK: Não posso realmente imaginar que essa questão continue a ser adiada. A cada dia há menos sacerdotes paroquiais. Não sei como a Igreja poderá oferecer atendimento pastoral na próxima geração. A questão é relevante há algum tempo e os fiéis apoiam amplamente essa reforma.
MG: O senhor vive em celibato?
HK: Não sou casado e não tenho esposa nem filhos.
MG: Há uma mulher em suas memórias a quem o senhor se refere como “minha companheira ideal na vida”.
HK: Sim, no sentido de uma companheira de viagem ideal. Temos propriedades separadas, vivemos em andares separados e temos apartamentos separados. Eu descrevo tudo isso em minhas memórias