Leonardo Boff
Quanto mais se medita sobre Jesus mais
se descobre o mistério que sua vida humilde escondia e mais se remonta para as
origens. Por volta dos anos 75-85, quando S. Lucas e S. Mateus redigiram seus
evangelhos, se recolheram as reflexões que se haviam feito nas várias
comunidades. Para todos era claro que Jesus fora constituído por Deus como
Messias, Salvador, Filho de Deus e Deus mesmo em forma humana. A partir desta
fé se interpretaram os fatos relativos ao nascimento e à infância de Jesus.
Atrás desses relatos se esconde trabalho teológico muito profundo e intenso num
esforço de decifrar o mistério de Jesus e anunciá-lo para os fiéis dos anos
75-85 dC. As cenas familiares do Natal, descritas por S. Lucas e por S. Mateus,
querem antes ser proclamações da fé acerca de Jesus Salvador do que relatos
neutros acerca de sua história.
O processo cristológico, como o temos
desenvolvido no capítulo precedente, nos fez compreender como surgiram os títulos
e os nomes atribuídos a Jesus. Atrás de cada título, seja Cristo, Filho do
Homem, Filho de Deus, etc., esconde-se uma longa reflexão teológica. Essa
reflexão pode chegar até à sofisticação da teologia rabínica mais refinada. É o
que veremos nos relatos da infância de Jesus. No sentir comum dos cristãos os
relatos do nascimento de Jesus e a celebração do Natal constituem uma festa
para o coração. A fé se toma sentimento. Com isso ela atinge o que há de mais
profundo e íntimo na personalidade humana: faz vibrar, alegrar e saborear a
vida como sentido. No presépio, diante da manjedoura com o Menino entre o asno
e o boi, a virgem e o bom José, os pastores e as ovelhas, a estrela, as artes e
as profissões, a natureza, as montanhas, as águas, o universo das coisas e dos
homens se congraçam e reconciliam diante do Menino. No dia de Natal todos nos
tornamos meninos e deixamos que, uma vez pelo menos, o pequeno príncipe que
mora em cada um de nós fale a linguagem inocente das crianças que se extasiam
diante do pinheirinho, das velas acesas e das bolas cristalinas. O homem
mergulha no mundo da infância, do mito, do símbolo e da poesia que é a própria
vida, mas que os interesses, os negócios, a preocupação pela sobre-vivência
abafam, impedindo a vivência da eterna criança adulta que cada qual ainda é.
Tudo isso são valores que devem ser defendidos e alimentados. Contudo para se
manterem como valores cristãos devem estar em conexão com a fé. Sem isso o
sentimento e a atmosfera do Natal se transformam em sentimentalismo, explorado
pela máquina comercial da produção e do consumo. A fé se relaciona com a
história e com Deus que se revela dentro da história. Então: o que se deu de
fato no Natal? Será mesmo que apareceram anjos nos campos de Belém? Vieram de
fato reis do Oriente? É curioso imaginar uma estrela errando por aí, primeiro
até Jerusalém e depois até Belém onde estava o Menino. Por que não se dirigiu
diretamente a Belém, mas primeiro resplendeu sobre Jerusalém, estarreceu toda a
cidade e o Rei Herodes, aponto de este ter decretado a morte das crianças
inocentes? Em que medida nisso tudo vai conto ou realidade? Qual é a mensagem
que Lucas e Mateus intencionaram com a história da infância de Jesus? O
interesse deles é histórico ou, quem sabe, através da amplificação edificante e
embelezadora de um dito da Escritura ou de um acontecimento real, comunicar uma
verdade mais profunda acerca do Menino que mais tarde pela Ressurreição iria
manifestar-se como o Libertador da condição humana e a grande esperança de vida
humana e eterna para todos os homens?
Para os olhos de um conhecedor dos
procedimentos literários usados nas Escrituras e para o historiador do tempo de
Jesus os relatos do Natal não são sem problemas. Atrás da simplicidade cândida
e do lirismo de algumas cenas esconde-se uma teologia sofisticada e pensada até
nas suas mínimas minúcias. Esses textos não são os mais antigos dos evangelhos.
São os mais recentes e elaborados quando já havia toda uma reflexão teológica
sobre Jesus e o significado de sua morte e ressurreição, quando já estavam
ordenados por escrito os relatos de sua paixão, as parábolas, os milagres e os
principais ditos de Jesus, quando já se tinham criado os principais títulos,
como Filho de Davi, Messias, Cristo, novo Moisés, Filho de Deus, etc., pelos
quais se tentava decifrar o mistério da humanidade de Jesus. No fim de tudo
apareceu o começo: a infância de Jesus pensada e escrita à luz da teologia e da
fé que se criara ao redor de sua vida, morte e ressurreição. É exatamente aqui
que se situa o lugar de compreensão dos relatos de sua infância, como vêm
narrados por Mateus e por Lucas.
1.
A
fé que procura compreender
A fé não exime nem dispensa a razão.
Ela, para ser verdadeira, deve procurar compreender, não para abolir o
mistério, mas vislumbrar-lhe as reais dimensões e cantar, maravilhada, a
graciosa lógica de Deus. A fé professava que Jesus é o Salvador, o Messias, o
Sentido de tudo (Logos), o profeta anunciado outrora (Dt 18,15-22), o novo
Moisés que libertaria os homens num êxodo definitivo de todas as ambigüidades
da condição humana. Eis, porém que uma pergunta preocupou bem cedo os
apóstolos: em que ponto de sua vida Deus instituiu Jesus como Salvador, Messias
e Filho de Deus?
A pregação mais antiga responde: na
morte e na ressurreição (cf. 1Cor 15,3-8; At 10,34-43). São Marcos, que
escreveu seu evangelho por volta de 67-69, afirma: com o batismo de João, Jesus
foi ungido pelo Espírito Santo e proclamado Messias e Libertador. Realmente o
evangelho de S. Marcos não conhece nenhum relato da infância de Cristo e inicia
com a pregação preparadora de João Batista e com o batismo de Jesus. Mateus,
que elaborou seu evangelho por volta de 80-85 dC, responde: Jesus é desde o seu
nascimento o Messias esperado; mais ainda: toda a história da salvação desde
Abraão caminhou para ele (cf. a genealogia de Cristo: Mt 1;1-17). Lucas, que
escreveu seu evangelho pela mesma época, dá um passo adiante e diz: desde o
Natal na gruta de Belém Jesus é o Messias e o Filho de Deus. Porém não só a
história santa de Israel desde Abraão marchou até que Ele nascesse na gruta,
mas toda a história humana desde Adão (Lc 3,38). Por fim vem S. João por volta
do ano 100, herdando uma longa e profunda meditação sobre quem era Jesus, e
responde: Jesus era o Filho de Deus já antes de ter nascido, em sua
preexistência junto a Deus, muito antes da criação do mundo porque "no
princípio era a Palavra. E a Palavra se fez condição humana e armou tenda entre
nós" (Jo 1, 1.14). Como transparece, quanto mais se medita sobre Jesus
mais se descobre seu mistério e mais se remonta para as origens. Todo esse
processo é fruto do amor. Quando se ama uma pessoa, procura-se saber tudo dela:
sua vida, seus interesses, sua infância, sua família, seus antepassados, de que
país vieram, etc. O amor vê mais longe e profundamente que o frio raciocínio. A
ressurreição revelou as verdadeiras dimensões da figura de Jesus: ele interessa
não só aos judeus (Abraão), nem só aos homens todos (Adão), mas até ao cosmos
porque "sem ele nada se fez de tudo o que foi criado" (Jo 1 ,3). A
partir da luz ganha com o clarão da ressurreição, os apóstolos começam a reler
toda a vida de Cristo, reinterpretar suas palavras, recontar seus milagres, e a
descobrir em alguns fatos, em si simples, de seu nascimento a presença latente
do Messias e Salvador, revelado patentemente, porém, só depois com a
ressurreição. Nessa mesma luz foram ganhando nova luz muitas passagens do
Antigo Testamento tidas como proféticas, agora ampliadas e explicadas em função
da fé em Jesus, Filho de Deus. Por isso, o sentido teológico dos relatos da
infância não reside tanto em narrar fatos do nascimento de Jesus, mas através
da roupagem de narrações plásticas e teológicas em anunciar para os ouvintes
dos anos 80-90 dC quem é e o que é para a comunidade dos fiéis Jesus de Nazaré.
Portanto deve-se buscar menos história do que mensagem da fé. Entre os fatos
históricos contidos nos relatos de Natal a exegese crítica católica enumera os
seguintes: 1. Noivado de Maria com José (Mt 1,18; Lc 1,27; 2,5) ; 2. A
descendência davídica de Jesus (Mt 1,1; Lc 1,32) através da descendência de
José (Mt 1,16.20; Lc 1,27; 2,4); 3. O nome Jesus Mt 1,21; Lc 1,31) ; 4. O
nascimento de Jesus da Virgem Maria (Mt 1,21.23.25; Lc 1,31; 2,6-7) ; 5. Nazaré
como residência de Jesus (Mt 2,23; Lc 2,39). Abaixo veremos como Mateus e Lucas
trabalharam literária e teologicamente esses dados para com eles e através
deles anunciarem, cada qual a seu modo, uma mensagem de salvação e de alegria
para os homens: que nesse menino "envolto em faixas e deitado na
manjedoura por não haver lugar na estalagem" (Lc 2,7) se escondia o
sentido secreto da história desde a criação do primeiro ser e que nele se
realizaram todas as profecias e as esperanças humanas de libertação, e total
plenitude em Deus.
2.
Mateus
e Lucas: Jesus é o ponto Ômega da história, o Messias, filho de Davi esperado,
o filho de Deus
A ressurreição mostrou que, com Cristo,
a história chegou ao seu ponto Ômega porque a morte foi vencida e o homem
totalmente realizado e inserido dentro da esfera divina. Por isso ele é o
Messias e, se Messias, então da família real de Davi. Pelas genealogias de
Jesus tanto Mateus (1,1-17) quanto Lucas (3,23-38) querem trazer a prova de que
Jesus e nenhum outro realmente emergiu quando a história chegou ao seu ponto Z;
que ele ocupa aquele exato lugar na genealogia davídica que corresponde ao
Messias e que ele se insere nesta genealogia de tal forma que se cumpra a
profecia de Isaías (7,14) - de ser filho de uma virgem -, recebendo o nome, e
com isso seu inserimento na genealogia, de seu pai adotivo José. Segundo o
livro 4 Esdras 14,11-12 esperava-se o Messias, Salvador de todos os homens
desde Adão, no final da 11.ª semana do mundo. Onze semanas do mundo resultam 77
dias do mundo. São Lucas constrói a genealogia de Jesus desde Adão mostrando
que ele surgiu na história quando se completaram os 77 dias do mundo, cada dia
com um ancestral de Jesus. Por isso a genealogia de Jesus de Adão até José
perfaz 77 antepassados. A história chegou ao seu ponto Ômega quando Jesus nasceu
em Belém. Que essa genealogia é artificialmente construída se percebe
comparando-a com a de Mateus. Ademais há longos espaços vazios entre uma
geração e outra.
Mateus utiliza um procedimento
semelhante para provar que Jesus é filho de Davi e assim o Messias esperado.
Substituindo-se as consoantes do nome DaViD (as vogais não contam em hebraico)
por seus respectivos números resulta o número 14 (D = 4, V= 6, D = 4: 14).
Mateus constrói a genealogia de Jesus de tal forma que resultam, como ele mesmo
o diz expressamente (1,17), 3 vezes 14 gerações. O número 14 é o duplo de 7,
número que para a Bíblia simboliza a plenitude do plano de Deus ou a totalidade
da história. As 14 gerações de Abraão até Davi mostram o primeiro ponto alto da
história judaica; as 14 gerações de Davi até a deportação para a Babilônia
revelam o ponto mais baixo da história santa; e as 14 gerações do cativeiro
babilônico até Cristo patenteiam o definitivo ponto alto da história da
salvação que jamais conhecerá ocaso porque aí surgiu o Messias. À diferença de
Lucas, Mateus insere ainda na genealogia de Jesus 4 mulheres, todas elas mal
afamadas: duas prostitutas, Tamar (Gn 38,1-30) e Raab (Js 2; 6,17.22s) , uma
adúltera, Betsabéia, mulher de Urias (2Sm 11,3; 1Cr 3,5) e uma moabita pagã,
Rute (Rt 4,12s). Com isso Mateus quer insinuar que Cristo assumiu os pontos
altos e baixos da história e tomou também sobre si as ignomínias humanas.
Cristo é o último membro da genealogia, exatamente aquele ponto aonde a
história chega ao seu ponto Z, completando 3 vezes quatorze gerações. Portanto
só ele pode ser o Messias prometido e esperado.
3.
José
e a concepção da virgem em Mateus: um rodapé à genealogia
Em sua genealogia de Jesus, Mateus quer
provar que Cristo realmente descende de Davi. Na realidade não o consegue
provar, porque no passo decisivo em vez de dizer: Jacó gerou José, José gerou
Jesus, interrompe e afirma: Jacó gerou José, esposo de Maria, da qual nasceu
Jesus, chamado o Cristo (1,16). A mulher na jurisprudência judaica não conta na
determinação genealógica. Logo, Cristo através de Maria não pode se inserir na
casa de Davi. Contudo para Mateus é claro que Jesus é filho da Virgem Maria e
do Espírito Santo (1,18). Aqui, pois surgiu um problema: como inserir Jesus
através da árvore genealógica masculina dentro da genealogia davídica se ele
não tem pai humano? Para resolver tal problema faz como que um rodapé ou uma
glosa (explicação de uma dificuldade) e narra a concepção e a origem de Jesus
(1,18-25). A intenção não é narrar a concepção virginal de Jesus, nem
descrever, como o faz Lucas, o nascimento de Jesus. O centro do relato está em
S. José que, sabendo do estado de Maria, quer abandoná-la de noite. O sentido
do relato de Mt 1,18-25 é resolver o problema levantado: o esclarecimento vem
no versículo 25: José coloca no menino o nome de Jesus. José, descendente de
Davi, legalmente esposo de Maria, dando o nome a Jesus, torna-se juridicamente
seu pai e com isso o insere em sua genealogia davídica. Assim Jesus é filho de
Davi através de José e também o Messias. Desta forma realiza-se também a
profecia de Isaías que o Messias nasceria de uma virgem (Is 7,14) e o plano de
Deus se realiza plenamente.
4.
Quis
S. Lucas contar a concepção virginal de Jesus?
A anunciação e o nascimento de Cristo
são relatados pelo evangelista S. Lucas. S. Lucas é considerado na tradição
como o evangelista pintor. Realmente nos capítulos 1-2 ele pinta um dípticon.
Dípticon era para o mundo medieval (como podem ser vistos em igrejas antigas
também no Brasil) um altar com duas semijanelas ou alas nas quais havia
pinturas que se correspondiam. Assim Lucas 1-2 pinta a infância de João Batista
num paralelo perfeito com a infância de Jesus. De modo semelhante fará depois
Mateus, traçando um paralelo entre Moisés e Jesus. Contudo, em cada ponto
paralelo, Lucas mostra como Cristo é maior que João Batista. Assim há uma
correspondência perfeita entre o anúncio do nascimento de João Batista através
do anjo Gabriel (Lc 1,5-25) e o anúncio do nascimento de Jesus (1,26-56); em
ambos os casos ao nascer, ao se circuncidar a criança e ao se dar o nome
verificam-se sinais miraculosos (1,57-66; 2,1-21); anuncia-se em ambos os casos
o significado salvífico de João e de Jesus nas profecias de Zacarias (João),
respectivamente de Simeão e da profetisa Ana (Jesus) (1,67-80; 2,22-40). Em
ambos os casos faz-se também uma referência ao crescimento dos dois meninos
João e Jesus. Em todas as cenas releva-se que o ciclo de Jesus supera sempre o
ciclo de João: na anunciação da concepção de João o anjo Gabriel não faz
nenhuma saudação (Lc 1,11), ao passo que com Maria ele a saúda gentilmente
(1,28). A Zacarias o anjo diz: Tua oração foi ouvida (1,13), ao passo que a
Maria observa reverente: Tu achaste graça aos olhos do Senhor (1,31). Na cena
da visitação de Maria a Isabel a saudação de Maria faz a criança estremecer no
seio materno de Isabel, agora repleta do Espírito Santo.
Jesus, ao contrário, desde o início é o
portador do Espírito porque tem sua origem dele e da Virgem. João Batista surge
no deserto (1,80), Cristo, porém no templo (2,41-52).Tais procedimentos
literários para ressaltar a função salvífica de Cristo são utilizados de forma
ainda mais refinada ao narrar o anúncio da concepção de Cristo (1,26-38) que se
deu no sexto mês da concepção de João Batista. Ora, seis meses de 30 dias
resultam 180 dias; 9 meses da concepção de Jesus até seu nascimento dão 270
dias; do nascimento até a apresentação do menino no templo, somam 40 dias. A
soma total resulta 490 dias, ou 70 semanas. O que significam para os leitores
do Novo Testamento 70 semanas? Segundo Daniel (9,24) após 70 semanas-ano o
Messias viria e libertaria o povo dos pecados e traria a justiça eterna. Lucas
quer com esses dados insinuar que a profecia de Daniel se completou e só Jesus
é o Messias esperado. As palavras da anunciação mesma, ditas pelo anjo, a
reação da Virgem, a saudação de Gabriel são formuladas em estreita ligação com
palavras semelhantes ou iguais proferidas em semelhantes situações no Antigo
Testamento (para Lc 1,42 = Jt 13,18; para Lc 1,28.30-33 = Sf 3,14-17; para Lc
1,28 = Gn 26,3.28; 28,15; Ex 3,12; 1Sm 3,19; 1Rs 1,37, etc.). A concepção de
Jesus por obra e força do Espírito Santo não quer tanto explicar o processo
biológico da concepção (para Lucas é indiscutível que Jesus nasceu da Virgem
como virgem), mas, antes relacionar Jesus-Salvador com outras figuras
libertadoras do Antigo Testamento que, pela força do Espírito Santo, foram
instituídas em sua função (1Sm 10,6s; 16,13s; Jz 3,10; 6,34; 11,29; 13,25; 1Rs
19,19; 2Rs 2,8-15, etc.). Aqui se percebe a diferença de perspectiva entre a
catequese tradicional e a perspectiva de S. Lucas e S. Mateus. A catequese
tradicional acentuava por excelência a virgindade de Nossa Senhora, o fato da
virgindade física e perpétua de Maria, "antes, durante e após o
parto". Para os relatos evangélicos a virgindade pessoal de Maria é
secundária. Mais importante é a concepção virginal de Jesus. Como o exprime
muito bem Dom Paulo Eduardo Andrade Ponte: "A preocupação dos evangelistas
era destacar não o caráter virginal, mas o caráter sobrenatural, divino dessa
concepção. Para eles a concepção de Jesus foi virginal para poder ser
sobrenatural, e não sobrenatural para ser virginal. Ela foi virginal para que
Deus pudesse ser a sua causa, não somente primeira, mas principal, para que Ele
pudesse ser o seu autor direto... Ao ouvir certos sermões ou ao ler
determinados livros de espiritualidade, tinha-se a impressão de que a concepção
de Jesus foi sobrenatural e milagrosa para preservar a virgindade de sua mãe.
Ela teria sido, portanto sobrenatural para ser virginal e não virginal para ser
sobrenatural. E isso era inspirado por toda uma conceituação moralizante e
maniqueísta da virgindade no cristianismo". Bem diversa, porém é a
perspectiva dos Evangelhos; para eles Cristo está no centro e em sua função a
virgindade de Maria. Por isso que o Novo Testamento prefere chamar Maria de Mãe
de Jesus (Jo 2,1.3.12; 19,25-26; At 1,14) ao invés de a Virgem que ocorre
apenas duas vezes nos textos neotestamentários (Lc 1,27 ; Mt 1,23 ) e ainda
para relevar sua função maternal por obra do Espírito Santo. A concepção de
Jesus mesma é descrita na forma como a glória de Deus é manifestada no
tabernáculo da aliança (Ex 40,32 = Lc 1,35). Assim como o tabernáculo está
cheio do Espírito de Deus, da mesma forma e ainda muito mais o filho de Maria,
que realmente merece ser chamado Filho de Deus (Lc 1,35). Por força do Espírito
surge alguém que é de tal forma penetrado por esse mesmo Espírito que somente
dele ganha sua existência. Cristo é a nova criação daquele mesmo Espírito que
criou o velho mundo. Esse é o sentido teológico profundo que Lucas quer
transmitir com a concepção de Jesus por força do Espírito Santo; e não tanto
descrever um fenômeno miraculoso de ordem biológica, embora esse esteja suposto
e sirva de motivo da reflexão teológica.
5.
Onde
teria nascido Jesus: Belém ou Nazaré?
Semelhante trabalho teológico como vimos
até aqui se processa também ao se narrar o nascimento de Jesus em Belém. O
nascimento em si é narrado sem qualquer tom romântico, mas no seu caráter rude
e seco ganha grande profundidade: "Ora, quando se achavam lá (Belém),
chegou o tempo em que devia dar à luz. Ela deu à luz seu filho primogênito,
envolveu-o em faixas, e deitou-o numa manjedoura, por não haver lugar para eles
na hospedaria" (Lc 2,6-7). Esse fato comum, que poderia ter acontecido com
qualquer mãe, é relido, devido à ressurreição, dentro de um conteúdo teológico.
Se ele se revelou como sendo o Messias e é filho de Davi por parte de seu pai
legal José, então deve-se realizar nele também a outra profecia que diz: de
Belém sairá aquele que irá governar Israel (Mq 5,1; 1Sm 16, ls), o Messias; e
não de Nazaré, a pátria de Jesus, lugar tão insignificante que jamais ocorre em
todo o Antigo Testamento. Lucas não visa especialmente ressaltar o lugar
geográfico, mas fazer uma reflexão teológica sobre Belém e sua significação
messiânica para deixar claro que Jesus é o Messias. Provável que a pátria de
Jesus historicamente tenha sido Nazaré, lugar teologicamente irrelevante. Para
fazer Jesus nascer em Belém, Lucas cria uma situação em que de Nazaré a Sagrada
Família é levada a ir para Belém. Para atingir tal fim teológico Lucas refere
que César Augusto decretara um recenseamento de toda aterra e que fora feito na
Palestina quando Quirino era governador da Síria (província a que pertencia a
palestina). Sabemos, contudo, que esse censo só foi feito historicamente no ano
6 dC como o próprio Lucas nos Atos lembra (At 5,37), dando origem a um grupo de
guerrilheiros terroristas comandados por Judas da Galiléia, os Zelotas, que
protestaram contra tal medida. Lucas utiliza tal fato histórico, reprojeta-o
para trás, para por um lado motivar a viagem de Maria e José de Nazaré para
Belém (e por motivos teológicos lá fazer nascer Jesus) e por outro insinuar que
o evento-Jesus interessa não só a Israel, mas a todos os homens como "luz
que ilumina as nações" (Lc 2,32). As referências à história profana por
ocasião do nascimento de Cristo e do surgimento da pregação de João não visam
tanto situar historicamente os fatos, mas antes ressaltar a estreita ligação
existente entre a história sagrada com a história profana universal na qual
Deus através de Jesus Cristo realiza a salvação.
6.
Quem
são os pastores dos campos de Belém?
Se o relato do nascimento de Cristo por
sua simplicidade pouco revela do mistério inefável que acontecia dentro da
história do mundo, a narrativa dos anjos aparecendo nos campos de Belém o
proclama com toda a clareza. Um anjo do Senhor (aqui são legiões) proclama,
como comumente ocorre na Bíblia, o significado secreto e profundo do
acontecimento: "eis que vos anuncio uma boa-nova, de grande alegria para
todo o povo: hoje na cidade de Davi, nasceu-vos um salvador, que é Cristo
Senhor" (Lc 2,11).Os anjos proclamam o significado daquela noite: céu e
terra se reconciliam porque Deus dá paz e salvação aos homens todos. O que em
Lc 2,8-20 se narra, por sua origem, não quer tradicionar um fato passado com os
pastores em Belém. Os pastores são, teologicamente, os representantes dos pobres,
para os quais foi anunciada a boa-nova e para os quais Jesus foi enviado (Lc
4,18). Aqui não há nenhum resquício de um romantismo pastoril. Os pastores
constituíam uma classe desprezada e sua profissão tornava as pessoas impuras
frente à lei. Eles pertenciam à classe daqueles que não conheciam a lei, como
diziam os fariseus. Ora, Cristo - e isso Lucas deixa transparecer várias vezes
em seu evangelho - foi enviado exatamente a esses associais e marginalizados
religiosamente. A eles é comunicada por primeiro a mensagem alegre da
libertação. Essa mensagem muito provavelmente não foi proclamada aos pastores
nos campos de Belém, mas dirige-se aos ouvintes de São Lucas por volta de 80-85
dC para explicar-lhes que aquele em quem crêem é o verdadeiro libertador. Para
os que têm olhos de fé, a fraqueza da criança franzina envolta em faixas
esconde um mistério que, desvelado, é uma alegria para todo o povo: é Ele, o
Esperado, o Senhor do cosmos e da história (Lc 2,11).
7.
S.
Mateus: Jesus é o novo Moisés e o libertador
São Mateus conhece ainda quatro
episódios ligados à infância de Cristo: a vinda dos reis magos seguindo uma
estrela do Oriente, a fuga da Sagrada Família para o Egito, a matança dos
santos inocentes decretada por Herodes e a volta da Sagrada Família do Egito
para Nazaré (Mt 2).
Estamos aqui diante de fatos históricos
ou antes diante de reflexão teológica no estilo dos midraxes (historização de
uma passagem da Sagrada Escritura ou amplificação embelezadora de um fato para
ressaltar-lhe a mensagem) para exprimir a fé acerca de Jesus? Esta última
possibilidade ressalta clara dos próprios textos.
a)
Que
significam os reis magos e a estrela?
Como vimos acima, para S. Mateus Cristo
é o Messias que chegou na plenitude dos tempos, realizando as profecias todas
ditas a respeito dele. Uma destas profecias referia-se ao fato de que no final
dos tempos viriam para Jerusalém reis e nações para adorar a Deus e ao Messias
e oferecer-lhe dons (Is 60,6; SI 71,10s). Por isso que Magos vão a Jerusalém
(Mt 2,ls) antes de chegarem a Belém. Eles seguem uma estrela do Oriente (Mt
2,3), chamada estrela do rei de Judá. A estrela é um motivo muito conhecido no
tempo do Novo Testamento. Cada qual possui sua estrela, especialmente, porém,
os grandes e poderosos, como Alexandre, Mitridates, Augusto, os sábios e
filósofos como Platão. O judaísmo conhece também a estrela do libertador
messiânico, na profecia de Balaão (Nm 24,17). Pelo nascimento de Abraão, de
Isaac, de Jacó e especialmente de Moisés, apareceu uma estrela no céu. Essa era
a crença judaica ao tempo do Novo Testamento. Acresce ainda um fato histórico:
desde os tempos de João Kepler os cálculos astronômicos têm mostrado que nos
anos 7 aC ocorreu realmente uma grande conjunção de Júpiter e Saturno na
constelação de Peixes. Esse fenômeno não deve ter passado despercebido, já que
na época se cultivava muito a crença nas estrelas. Júpiter, para a astronomia
helenista, era considerado o rei soberano do universo. Saturno designava o
astro dos judeus. A constelação de Peixes estava relacionada com o fim do
mundo. Dando-se a conjunção destes astros, os sábios do Oriente, magos que
decifravam o curso das estrelas, deram naturalmente a seguinte interpretação:
No país dos judeus (Saturno) nasceu um rei soberano (Júpiter) dos fins dos tempos
(Peixes). Eles se põem em marcha e assim se cumprem, para Mateus, as profecias
acerca do Messias Jesus Cristo. Textos do Antigo Testamento e um fenômeno
astronômico teriam motivado o relato de Mateus com o fito de anunciar a fé da
Igreja em Jesus como o Messias escatológico.
b)
Como
o primeiro libertador (Moisés) assim também o último (Jesus)
Assim como Lucas traça um paralelo entre
a infância de Jesus e a de João Batista, de forma semelhante Mateus traça um
paralelo entre a infância de Jesus e a de Moisés. Era crença da época do Novo
Testamento que o Messias libertador dos últimos tempos seria também o novo
Moisés, fazendo sinais e milagres como Moisés. Até se dizia: "Como o
primeiro libertador (Moisés) assim também o último (o Messias)". Sabemos
que Mateus em seu evangelho apresenta Cristo como o novo Moisés, que à
semelhança do primeiro deu também uma nova lei, na montanha: o Sermão da
Montanha. O midraxe judaico de Moisés refere o seguinte -e nisso vai o paralelo
quase perfeito com Jesus: O faraó é notificado do nascimento do libertador
(Moisés) através de Magos; de forma semelhante Herodes sabe dos magos acerca do
definitivo Libertador (Jesus).O faraó e todo o povo do Egito ficam
estarrecidos: Herodes e toda Jerusalém perturbaram-se (Mt 2,3).Tanto o faraó
quanto Herodes determinam a matança das crianças inocentes. Como Moisés, assim
também Jesus escapa do morticínio. O pai de Moisés sabe através de um sonho que
seu filho Moisés será o futuro salvador. José, de forma semelhante, sabe
através de um sonho que Jesus será o salvador ("pois ele salvará seu povo
dos seus pecados": Mt 2,21). O paralelismo salta aos olhos, completado
ainda por um outro texto de Êxodo 4,19-23: "Após a morte do faraó disse
Deus a Moisés: Volta para o Egito, pois morreram os que tramavam contra tua
vida". Moisés toma sua mulher e seu filho e regressa.
Mateus 2, 2.19-21 diz a mesma coisa:
após a morte do rei Deus fala através do anjo: "Levanta-te, toma o menino
e sua mãe e volta para a terra de Israel, pois morreram os que haviam tramado
contra a vida do Menino". José toma sua mulher e seu filho legal e retoma.
O destino do novo Moisés (Jesus) repete o destino do primeiro Moisés. Como se
deu com o primeiro Libertador, assim também com o último. Jesus menino é
realmente o Messias-Libertador esperado e o profeta escatológico. A fuga para o
Egito e o morticínio das crianças inocentes de Belém não precisam ter sido
necessariamente fatos históricos. Eles servem para criar um paralelo com o
destino de Moisés. As fontes da época, especialmente Flávio Josefo, que informa
bastante minuciosamente de Herodes, não conhecem semelhante matança. Embora não
possa ser provada historicamente (nem precisa porque no relato de Mateus ela
serve como reflexão teológica) podia ter sido possível. Sabemos que Herodes era
extremamente cruel: dizimou a própria família, a ponto de o historiador do
século V Macróbio (Satumale 2,4.11) referir o trocadilho de César Augusto:
Prefiro ser o porco (hys) de Herodes a ser seu filho (hyós).
Mateus 1-2 apresenta numa perspectiva
pós-pascal, como num prólogo, os grandes temas de seu evangelho: Esse Jesus de
Nazaré é o único verdadeiro Messias, filho de Abraão, descendente da casa real
messiânica de Davi, o novo Moisés, que agora no ponto culminante da história e
no seu final conduzirá o povo do êxodo do Egito para a pátria definitiva.
8.
Conclusão:
Natal - ontem e hoje a mesma verdade
Um ou outro leitor, não informado dos
elementares procedimentos exegéticos com os quais a exegese católica hoje
trabalha, poderá no final deste capítulo ficar escandalizado. Tudo é conto? Os
evangelistas nos enganaram?
Os relatos do Santo Natal não são contos
nem fomos enganados. Nós é que erramos quando queremos abordar os evangelhos
numa perspectiva não intencionada por seus autores e queremos respostas para
perguntas que eles não se colocaram nem intencionaram colocar. Os evangelhos,
especialmente o evangelho da infância de Jesus, não são um livreto de história.
São anúncio e pregação, onde fatos reais e ditos da Sagrada Escritura ou
comentários midráxicos da época foram assumidos, trabalhados e postos a serviço
de uma verdade de fé que querem proclamar. Por isso o Magistério oficial da
Igreja recomenda ao estudioso da Escritura que ele, "para bem entender o
que Deus nos quis transmitir, deve investigar atentamente o que os autores
sagrados quiseram dar a entender e aprouve a Deus manifestar por suas
palavras... especialmente deve tomar em conta o gênero literário" (Dei
Verbum n. 12). Na época do Novo Testamento um gênero literário muito divulgado
é o midraxe hagádico que, como repetidas vezes anotamos, toma um fato ou um
dito escriturístico, trabalha-o, embeleza-o com o fito de sublinhar e proclamar
de forma inequívoca uma verdade de fé.
É o que aconteceu com os relatos da
infância. Aí há fatos reais. Mas revestidos de forma teológica, numa linguagem
que para nós hoje se tomou quase incompreensível. Mas é dentro deste gênero
literário que se esconde a mensagem, que devemos desentranhar, reter e
proclamar novamente, dentro de nossa linguagem atual: que esse menino frágil
não era um joão-ninguém nem um ninguém-joão, mas o próprio Deus feito condição
humana, que tanto amou a matéria que a assumiu, e que gostou tanto dos homens
que quis fazer-se um deles, para libertar-nos, e se humanizou para divinizar-nos.
Com ele o processo evolutivo psicossocial atingiu uma culminância determinante
para o resto da marcha até Deus, pois nele já se deu o fim presente e a meta já
alcançada dentro do tempo. Essa é a mensagem fundamental que os relatos da
infância de Jesus nos querem transmitir, para que, aceitando-a, tenhamos
esperança e alegria: já não estamos sós na nossa imensa solidão e busca de
unidade, integração, solidariedade e reconciliação de tudo com tudo. Ele está
no meio de nós, o Emanuel, o Deus-conosco: "hoje nasceu-nos um Libertador,
que é Cristo Senhor" (Lc 2,11).
Quem quiser salvaguardar a todo custo a
historicidade de cada cena dos relatos natalinos, acaba perdendo a mensagem
intencionada por seus autores inspirados e por fim situa-se fora da atmosfera
evangélica criada por São Lucas e São Mateus, onde a preocupação não é se houve
ou não estrela dos reis magos, se apareceram ou não anjos em Belém, mas sim o
significado religioso do Pequeno que aí está para ser recebido por nós, não
numa fria manjedoura, mas no calor de nossos corações, cheios de fé.
Mas que faremos com os mitos depois de
desmitologizados? Eles estão aí sendo sempre representados no presépio e
vividos na memória das crianças pequenas e grandes. Perderam seu valor? Se
perderam seu valor histórico-factual talvez agora começam a ganhar seu
verdadeiro significado religioso-antropológico. Podemos falar dos mistérios
profundos de Deus que se encarna, do mistério insondável da própria existência
humana do bem e do mal, da salvação e perdição sem ter que contar estórias e
usar de mitos e de símbolos? O estruturalismo o viu muito bem, mas a teologia o
sabia desde sempre que o mito, o símbolo e a analogia constituem o próprio da
linguagem religiosa, porque sobre as realidades profundas da vida, do bem e do
mal, da alegria e da tristeza, do homem e do Absoluto só conseguimos balbuciar
e usar uma linguagem figurada e representativa.
Contudo ela é mais envolvente que o
conceito frio. Por ser sem limites estanques e definidos sugere muito mais o
inefável e o transcendente que qualquer outra linguagem científica ou do método
historicista. Por isso é bom que continuemos a falar do Menino entre o boi e o
asno, dos pastores e das ovelhas, da estrela e dos magos, do rei mau e do bom
José, da Virgem-mãe e das faixas que envolvem o Pequenino sobre as palhas
secas. Mas devemos nos dar conta - e isso é necessário se não quisermos
alimentar magicismo e sentimentalismo - que tudo isso constitui o reino do
símbolo e não da realidade do fato bruto. O símbolo é humanamente mais real e
significativo do que a história factual e os dados frios. O mito e o conto (bem
dizia Guimarães Rosa que no conto tudo é verdadeiro e certo porque tudo é
inventado) quando conscientizados e aceitos pela razão como contos e mitos não
alienam, não magificam nem sentimentalizam o homem, mas, o fazem mergulhar numa
realidade onde ele começa a perceber o que significa inocência, reconciliação,
transparência divina e humana das coisas mais banais e o sentido desinteressado
da vida, aqui no Natal encarnado na criança divina.
Que fazer dos relatos do Natal e com o
presépio? Que continuem. Mas que sejam entendidos e revelem aquilo que querem e
devem revelar: que a eterna juventude de Deus penetrou esse mundo para nunca
mais deixá-lo, que na noite feliz de seu nascimento nasceu um sol que não
conhece mais ocaso.
(De "Jesus Cristo Libertador",
capítulo 8, Vozes 1986, pp. 116-128)
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