Zygmunt Bauman, no artigo publicado no jornal 'La Republica', 2011, lança reflexões sobre o Estado-nação, o papel dos homens dentro desse Estado e nos ensina como nossas ações, aparentemente, simples e menores, como o bater de asas de uma borboleta, podem nos levar às mudanças que esperamos em nossas sociedades. Sem dúvida, crises civilizatórias estão ocorrendo em todo o mundo, e faz-se necessária a reflexão sobre o funcionamento dos nossos Estados e até mesmo do que vem a ser, realmente, a democracia da qual tanto falamos
“Em que mundo eu gostaria de viver? Na verdade, não posso
dizer muito. Isso porque, em primeiro lugar, em 60 anos de empenho na
sociologia, nunca fui bom em profetizar. Em segundo lugar, no fim de uma vida
imperdoavelmente longa, a única definição de boa sociedade que eu encontrei diz
que uma boa sociedade é tal se acredita não ser suficientemente boa. Portanto,
prefiro me concentrar não tanto no mundo em que queremos viver, mas sim no
mundo em que devemos viver, simplesmente porque não temos outros mundos para os
quais escapar. Refiro-me a uma citação de Karl Marx, em que afirmava que as
pessoas fazem a sua própria história, mas não nas condições escolhidas por
elas. Todas as vezes que eu a ouço, lembro-me também de uma historinha
irlandesa que nos fala de um motorista, que para o seu carro e pergunta a um
transeunte: "Desculpe-me, senhor, poderia me dizer por gentileza como posso
chegar a Dublin a partir daqui?". O transeunte para, coça a cabeça e
depois de um tempo responde: "Bem, caro senhor, se eu tivesse que ir a
Dublin não começaria daqui". Este é o problema: infelizmente, estamos
começando daqui e não temos nenhum outro lugar de onde partir.
Portanto, pretendo sublinhar como o mundo do qual partimos
"voltados para Dublin", seja lá o que Dublin queira
dizer, está cheio de desafios e de tarefas urgentes, substancialmente
improcrastináveis. Penso que, se o século XX foi a época em que as pessoas se
perguntavam o que precisava ser feito, o século XXI será cada
vez mais a era em que as pessoas farão a pergunta sobre quem fará
o que deve ser feito.
Existe uma discrepância entre os objetivos e os meios à
nossa disposição. Meios que foram criados pelos nossos antepassados, que deram
vida ao Estado-nação e o dotaram e armaram de muitas instituições extremamente
importantes, feitas à medida do Estado-nação. No que se refere ao Estado-nação,
ele era verdadeiramente o ápice da ideia de autogoverno e de soberania, a ideia
de estar em casa, e assim por diante. Acima de tudo, o Estado-nação era um meio
confiável e impecável de ação coletiva, instrumento para alcançar os objetivos
sociais coletivos.
Acreditava-se nisso para além da diferença entre
"direita" e "esquerda". O Estado-nação era capaz de
implementar as ideias vencedoras. Por que era assim? Porque o Estado-nação era
considerado, e em grande parte o foi por bastante tempo na história, a fazenda
do poder e da política. O matrimônio entre poder e política é um casamento
celebrado no céu, nenhum homem pode destruí-lo. Poder significa habilidade em
fazer as coisas. Política significa habilidade em dirigir essa atividade de
fazer as coisas, indicando quais coisas devem ser feitas.
Ora, o que está acontecendo hoje é a indubitável separação, uma perspectiva de divórcio, entre poder e política. Poder que evapora no ciberespaço e que se manifesta naquilo que eu chamo de "globalização negativa". Negativa no sentido de que se aplica a todos os aspectos da vida social que têm uma coisa em comum: trata-se do enfraquecimento, a erosão, a não consideração dos hábitos locais, das necessidades locais. A "globalização negativa" abraça poderes como as finanças, o capital, o comércio, a informação, a criminalidade, o tráfico de drogas e de armas, o terrorismo etc. Ela não é seguida pela "globalização positiva". Em nível global, não temos nada de remotamente semelhante à eficácia do instrumento do controle político sobre o poder, da expressão da vontade popular, isto é, da representação e da jurisdição, realidades que se desenvolveram e foram bloqueadas no nível do Estado-nação.
À luz dessa discrepância, todas as vezes em que ouço o conceito de "comunidade internacional", eu choro e rio ao mesmo tempo. Nós ainda nem começamos a construí-la. Os nossos problemas são verdadeiramente globais, mas só possuímos os meios locais para enfrentá-los; e eles são despudoradamente inadequados para a tarefa. Por isso a pergunta que eu sugiro provavelmente é questão de vida ou de morte para o século XXI. Quem vai se ocupar disso? Essa será a questão.
Eu não tenho a resposta a essa pergunta, só posso propor algumas palavras de encorajamento. Edward Lorenz é bastante conhecido pela sua tremenda descoberta de que até os eventos mais pequenos, minúsculos e irrelevantes poderiam – dado o tempo, dada a distância – se desenvolver em catástrofes enormes e chocante. A descoberta de Lorenz é conhecida na alegoria de uma borboleta, em Pequim, que sacudia suas asas e mudava o percurso dos furacões no Golfo do México seis meses depois. Essa ideia foi recebida com horror, porque ia contra a natureza da nossa convicção de que podemos ter pleno conhecimento do que virá depois. Ele ia contra a teoria do tudo. De que podemos conhecer, prever, até mesmo criar, se necessário, com a nossa tecnologia, o mundo.
Lembro que nessa descoberta de Lorenz também há um vislumbre de esperança e é muito importante. Consideremos o que uma borboleta sabe fazer: uma grande quantidade de coisas. Não ignoremos os pequenos movimentos, os desenvolvimentos minoritários, locais e marginais. A nossa imaginação vai longe, além da nossa habilidade de fazer e arruinar coisas.
Na nossa história humana, tivemos um número relevante de mulheres e de homens corajosos, que, como borboletas, mudaram a história de maneira radical e positiva. De verdade. O único conselho que posso dar, então: olhemos para as borboletas, são de várias cores, felizmente são muito numerosas.
Ajudemo-las a bater as suas asas.”
Ajudemo-las a bater as suas asas.”