O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

23 de fevereiro de 2011

A direita católica não atina com a verdade mais profunda de um Jesus Cristo plenamente humano

E se aquelas pessoas da direita católica mais preocupadas atualmente em defender a fé tiverem, na verdade, uma compreensão inadequada da mais central das doutrinas cristãs? Não a proibição doutrinal da contracepção artificial: a direita católica aprendeu esse ensinamento completamente.
Estou falando da reivindicação de que Deus se tornou um de nós.
A reportagem é de David DeCosse e publicada pelo National Catholic Reporter, 11-02-2011. A tradução é de Luiz Marcos Sander.
David DeCosse é diretor de programas de ética no Centro Markulla de Ética Aplicada da Universidade de Santa Clara, na Califórnia.
A controvérsia ocorrida em dezembro passado no Instituto Smithsoniano emWashington por causa da retirada, numa exposição, de um vídeo em que formigas se arrastavam sobre um crucifixo evoca tal pergunta. É claro que a pergunta também se levanta numa época em que a direita católica, dentro e fora das estruturas formais da igreja, está ligando em grau crescente a fé católica a uma série de testes de tornassol destinados a demarcar fronteiras.
É preciso se opor à legalização do aborto e ao casamento entre homossexuais. É preciso pensar que Cristo proibiu explicitamente que mulheres fossem sacerdotes. É preciso ter apreço pela profundidade redentora do tedioso e sangrento filme “A paixão de Cristo”, de Mel Gibson.
Geralmente, a justificação teológica desses testes se baseia em duas coisas. Em primeiro lugar, há um apelo a Cristo abstrato, sagrado mas distante de nosso mundo bagunçado e deficiente em termos de alma humana. Em segundo lugar, há um apelo a essa concepção de Cristo como justificação para a autoridade de medidas tomadas pelo magistério hierárquico da igreja.
Mas a controvérsia em torno daquele incidente no Instituto Smithsoniano oferece uma ocasião para perceber a debilidade teológica desses argumentos – e desses testes de tornassol. A controvérsia começou quando a Liga Católica pelos Direitos Religiosos e Civis questionou por que verbas governamentais foram usadas para mostrar um vídeo que, segundo a Liga, era ofensivo para os católicos.
Embora a Liga não tenha pedido que o vídeo fosse removido, o museu fez isso de qualquer modo. O filme supostamente ofensivo era um segmento curto de um vídeo muito mais longo, feito pelo falecido artista católico gay David Wojnarowicz, que era uma reflexão sobre o fato de ele próprio estar morrendo de AIDS.
O crítico de arte Holland Custer, do New York Times, disse a respeito do vídeo, chamado “A Fire in my Belly” [Um fogo em meu ventre], que Wojnarowicz “se sentia, com razão, envolvido num combate mortal, e o vídeo está repleto de símbolos da vulnerabilidade sob ataque: mendigos, animais mortos em matadouros, corpos deslocados e o Jesus crucificado. No simbolismo da natureza de Wojnarowicz – e isto é confirmado em outras obras – as formigas eram símbolos de uma vida humana movida mecanicamente por suas próprias necessidades, desatenta a qualquer outra coisa. Neste caso elas se apinham cegamente sobre um emblema de sofrimento e autossacrifício.”
A reivindicação central em toda a doutrina cristã é que o Filho de Deus se tornou plenamente humano. Isto não significa apenas que Cristo entrou no mundo como uma criança desamparada. Mas significa também que Cristo assumiu os fardos complexos da liberdade humana e da corporificação humana, chegando ao ponto de aceitar livremente a morte. E quando consideramos essa doutrina central, chegamos a duas conclusões surpreendentes. Primeiramente, que o vídeo de Wojnarowicz passa facilmente no teste dessa crença ortodoxa.
Em segundo lugar, a Liga Católica e seus aliados parecem estar atuando a partir de uma compreensão inadequada dessa convicção cristã central.
A controvérsia em torno do vídeo de Wojnarowicz tem a ver com a aceitação da humanidade plena de Cristo. Particularmente, a questão doutrinal em jogo está representada pela antiga máxima cristã: Quod non est assumptum non est sanatum [O que não foi assumido também não foi redimido]. Ou, em outras palavras, a menos que se entenda que o Filho de Deus assumiu as profundezas da experiência humana – incluindo o medo e a solidão da morte –, não se poderia dizer que Cristo também redimiu essa experiência.
Essa é uma máxima dura porque exige que se veja Jesus Cristo não como uma figura abstrata e sagrada cujo poder sobre o pecado combina com sua distância em relação a tudo que poderia enodoá-lo. Pelo contrário: exige que se o veja como uma figura cuja sacralidade é obtida em sua presença para com tudo que está enodoado e através dessa presença.
E aí podemos ver as raízes da tensão relacionada ao vídeo mostrado no Instituto Smithsoniano. Para um grupo como a Liga Católica, o vídeo é um ataque – ou, como eles preferem se expressar, um “golpe” – contra algo sagrado: o fato de formigas andarem sobre uma estátua de Cristo sinaliza um ato indiferente de macular o que é santo e puro.
Mas para Wojnarowicz, a imagem supostamente ofensiva representa uma forma vigorosa de imaginar um Cristo compassivo, um acompanhante do artista moribundo e de todas as outras pessoas no desamparo e na vergonha da morte. Num processo judicial que ganhou contra Donald Wildmon, um ralhador moral de uma geração mais antiga, Wojnarowicz falou dessas convicções teológicas que animavam sua arte.
Podemos ver um problema teológico afim no apreço que os guerreiros da cultura católica têm pelo filme “A paixão de Cristo”, de Mel Gibson. Aos olhos deles, o retrato extenso e brutal da crucificação de Jesus feito pelo filme tornou claro o grau do sacrifício de Cristo. Mas seu louvor do filme se fundamentou no erro sutil, porém significativo, de pensar que a mera capacidade de Jesus de suportar a dor física era, em si mesma, um testemunho de seu nobre compromisso de aceitar o fardo de uma morte dolorosa.
A dor, na opinião deles, provava o amor. Certamente esse juízo pode ser correlacionado com a melhor avaliação crítica do filme enquanto filme: Gibsonconseguiu, de modo esquisito, criar as visões e sons vívidos de uma crucificação de uma forma dramaticamente rasa. Foi um desfile de sangue coagulado em exibição – não o retrato da destruição de um homem.
Mas essa forma de estimar a dor como prova de amor tem afinidades com uma heresia rejeitada nos primeiros séculos pela igreja. Essa heresia sustentava que Cristo assumiu um corpo humano, mas não uma alma plenamente humana com toda a liberdade, emoção e racionalidade de uma pessoa.
O teólogo e cardeal católico Walter Kasper falou dessa “heresia subliminar” que persiste até a atualidade entre as pessoas que consideram a redenção da Sexta-Feira Santa apenas em termos “da dor física de Jesus e quase nada em termos de sua obediência pessoal e entrega completa ao Pai”.
Tudo indica que podemos esperar mais testes de tornassol da fé católica nos anos vindouros. A hierarquia cada vez mais conservadora favorece tal política temerária em detrimento da solicitude pastoral. E a sempre vigilante Liga Católica não precisa de motivação para denunciar outro caso de “golpe”.
Mas nós faríamos bem em examinar os compromissos teológicos que estão por trás desses testes de tornassol. Uma defesa da fé católica que esteja animada por uma concepção abstrata de Cristo desligada do mundo faz com que as pessoas se sintam ofendidas onde não há razão para isso – e com que absolutamente não atinem com o sentido de um vídeo como o de Wojnarowicz.
De modo semelhante, uma defesa da fé que esteja animada por uma concepção de Cristo com uma alma humana diminuída faz com que se valorize o meramente físico às custas do espiritual.
Também deveríamos nos lembrar de outra admoestação de Kasper no sentido de tomar cuidado com as pessoas que invocam esse Cristo abstrato como ideologia para defender como eternas as estruturas eclesiásticas de feitura humana e, ao fazerem isso, confundem as fronteiras fixas dos testes de tornassol com a verdade católica mais profunda de que estamos sempre a caminho de Jesus Cristo.

UMA IGREJA QUE MARIA PODE AMAR

por Nicholas D. Kristof
Nicholas D. Kristof é colunista do New York Times
Tradução: Rodrigo Garcia

É bom lembrar que o Vaticano não é sinônimo da Igreja Católica, que tem inúmeros exemplos de freiras, padres e leigos que realizam um grande trabalho em favor do próximo. Dia desses, ouviuma piada sobre um devoto que morre, vai para o céu e tem direito a uma audiência com a Virgem Maria. O visitante pergunta a Nossa Senhora por que, mesmo com todas as suas graças, ela sempre aparece nos quadros como se estivesse um pouco triste, um pouco melancólica: "Está tudo bem"? Maria tranquiliza o visitante: "Sim, tudo está ótimo. Nenhum problema, é só que nós sempre quisemos ter uma filha". Lembro-me da história nesse momento em que o Vaticano enfrenta as consequências de uma mentalidade patriarcal pré-moderna: escândalo, acobertamento e a autodefesa mais desastrada desde Watergate. É isso que ocorre com clubes de garotos velhos. Não era inevitável que a Igreja Católica crescesse tão vinculada ao domínio masculino, ao celibato e a hierarquias rígidas. O próprio Jesus se fixou mais nos necessitados do que nos dogmas; ele desviou-se de sua rota para ir ao encontro das mulheres e as tratava com respeito. A Igreja do primeiro século era inclusiva e democrática, englobando até mesmo uma ala e textos protofeministas. O Evangelho de Felipe, um texto gnóstico do século 3, afirma sobre Maria Madalena: "Ela era a quem o Salvador amava mais do que a todos os seus discípulos". Da mesma forma, o Evangelho de Maria (do início do século 2) sugere que Jesus confiou a Maria Madalena a tarefa de ensinar aos apóstolos suas pregações religiosas. São Paulo se refere, em Romanos 16, a uma mulher do primeiro século, chamada Júnias, como figura importante entre os primeiros apóstolos, e a uma mulher de nome Febe que trabalhava como diaconisa. A apóstola Júnias se tornou cristã antes de São Paulo (tradutores machistas às vezes usam o nome como se fosse de um homem, sem nenhuma base histórica para isso). Ao longo dos séculos seguintes, a Igreja se voltou para atitudes fortemente patriarcais, ao mesmo tempo que ficava cada vez mais desconfortável com a sexualidade. A mudança pode ter surgido com as igrejas sendo transferidas das casas, onde as mulheres eram naturalmente aceitas, para reuniões mais públicas. A consequência foi que os textos protofeministas não foram incluídos quando a Bíblia foi compilada e, em grande parte, ficaram perdidos até a época moderna. Tertuliano, um líder cristão primitivo, denunciou as mulheres como "a porta para o demônio", enquanto crônicas da época relatam que o eminente Orígenesde Alexandria levou sua devoção até um passo além e se castrou. A Igreja Católica de hoje ainda parece presa a esse comportamento patriarcal. A mesma fé tão pioneira, que teve Júnias como apóstola logo no primeiro século, não consegue atualmente sequer ter uma mulher como simples sacerdotisa de paróquia. Diaconisas, permitidas durante século, são proibidas hoje. O clube do garotos velhos do Vaticano ficou tão autocentrado quanto outros clubes de garotos velhos, como o Lehman Brothers, com resultados parecidos. E essa é a razão pela qual o Vaticano está cambaleando agora. Contudo, existe mais para ser mostrado do que isso. Em minhas viagens pelo mundo, encontrei duas Igrejas Católicas. Uma é a rígida hierarquia do Vaticano, composta apenas de homens, que parece estar fora da realidade quando proíbe preservativos até para casais casados quando um dos cônjuge é HIV positivo. Pelo menos para mim, essa Igreja –obsecada por dogmas e regras e afastada da justiça social – é uma repetição moderna dosfariseus que Jesus criticou. Mas também existe outra Igreja Católica, que admiro intensamente. Essa é a Igreja Católica das bases, que faz muito mais coisas boas para o mundo do que recebe em créditos. É a Igreja que apoia extraordinárias organizações de ajuda, como a Catholic Relief Services (CRS) e a Caritas, salvando vidas todos os dias, e que mantém escolas fantásticas, garantindo a crianças necessitadas uma escada para sair da pobreza. É a Igreja de freiras e padres no Congo, trabalhando no anonimato para alimentar e educar crianças. É a Igreja do padre brasileiro que combate a aids e que me disse que, se fosse papa, ergueria uma fábrica de preservativos no Vaticano para salvar vidas. Essa é a Igreja das irmãs Maryknoll , na América Central, e das irmãs Cabrini na África. Existe um estereótipo de freiras como tradicionalistas vitorianas enfadonhas. Eu vi o contrário na Suazilândia – enquanto me agarrava à vida no banco de passageiros e uma irmã norte-americana, com pé de chumbo, dirigia seu jipe por entre picadas e cruzava riachos para visitar órfãos da aids. Após vários encontro como esses, comecei a crer que as pessoas mais divertidas e interessantes do mundo podem ser freiras. Então, quando você ler sobre os escândalos, lembre-se que o Vaticano não é a mesma coisa que a Igreja Católica. Leprosos, prostitutas e moradores de favelas talvez nunca vejam um cardeal, mas diariamente encontram um verdadeiro nobre da Igreja Católica na forma de padres, freiras e membros leigos lutando para fazer a diferença. É a última chance do Vaticano se inspirar nesse sublime – até divino – lado da Igreja Católica, com seus membros cuja grandeza se baseia não em suas vestes, mas em seu altruísmo. Eles são o suficiente para fazer a Virgem Maria sorrir.
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"O nosso testemunho no campo missionário e político é estarmos ao lado dos deserdados, sofrendo com os que sofrem, chorando com os que choram, nos alegrando com os que se alegram" - Paulo Wright - cristão e subversivo