O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

29 de abril de 2010

Alguma poesia /Flores

(J. Ricardo A. de Oliveira)




Flores
Não sei se ainda há tempo,
Com tanto asfalto,
E tanto cimento.
Não sei se ainda vale a pena,
Lembrar e falar de pensamentos tão longínquos.
Com tantos letreiros luminosos
E caminhos tão escuros.
Mas, o que fazer
Se ainda existem pássaros
que insistem em cantar?

Uma espingarda?

E o que dizer de flores,
Que resolutas, insistem em crescer?

Uma tesoura?

Loucura?
Insanidade santa,
Bendita seja,
Esta esquizofrenia minha
Que isniste em acreditar
Que apesar desta escuridão,
Posso ver luz no final do túnel,
e acreditar no poeta de Itabira,
saudoso Drumond,
que afirma ter visto,
uma flor nascer no asfalto
.

26 de abril de 2010

Hércoles Jaci - Chico Xavier me levou ao cinema.

O Hercoles é dessas pessoas que passam pela nossa vida e deixam marcas, boas marcas.
Muito do que sei sobre Terapia Floral, eu aprendi com ele. Mas não foi só isso, junto com o pacote, com os florais de Bach, Califórnia, Minas, Austrália e um monte mais de sistemas, que nomeá-los seria cansativo ele nos mostrou uma nova maneira de "Ser Terapeutas".
O Hercoles apareceu em nossa vida, minha e de minha mulher, num momento de revisão de valores. Nós dois, eu recém saído da vida empresarial, ela e eu, amargando a perda com o fechamento do nosso Espaço Cultural e Terapeutico "O ENCONTRARTE".
Vimos um anúncio de um curso sobre Florais de Bach. Já conhecíamos os florais, mas não tinhamos nos animado a estudá-los e a nos transformar em terapeutas Florais.
Surge então o Hercoles, num colégio em meio a mata da floresta da Tijuca, um lugar lindíssimo, com um jeito todo especial de questionar a realidade para nos "fazer" terapeutas de flores. Mas, mais que isso, ele nos aprimorou a sensibilidade, o olhar dialógico, a visão holística do sujeito, que nem paciente e nem cliente se apresentava a nossa frente para ser cuidado.
Essa sensibilidade sempre foi a marca do Hercoles, seu humor e suas sacadas diretas.
Estivemos em contato com esse grande amigo e mestre durante toda a década de 90, em cursos, seminários e na pós graduação na UERJ.
Já não nos vemos já há muto tempo, mas trocamos e-mails, felicitações e mantemos o carinho por quem nos ajudou a encontrar um novo caminho.

Hoje Hercoles nos mandou um presente de sua sensibilidade na forma de e-mail.
Um relato sobre a sua experiência ao ver o filme do querido Chico Xavier.

Com a devida licença dele aí vai o relato.
Valeu Hercoles!

***************************************************************************************
Chico Xavier me levou ao cinema. 25/04/2010.

Sou de uma geração que sempre ia ao cinema, tenho amigos e amigas que adoram, vão ao cinema até hoje. Adoro cinema mas prefiro ver em casa no conforto do meu sofá, tenho uma preguiça de ir ver cinema no cinema. Mas senti uma vontade tão grande de ir ver o filme sobre Chico Xavier e convidei uma amiga de infância, Sandra Greco, para ir comigo. Já li todas as biografias sobre Chico Xavier, tive contato com as críticas sobre o filme, sentimentos dos atores, as notícias sobre as pré-estréias, várias entrevistas sobre a realização dessa produção; aumentando com isso meu desejo de ver a obra. Combinamos de ir na sessão das 18:20 h no Diamond Mall, perto de minha casa, porém achamos melhor, por causa da procura pelo filme, de chegar lá por volta de 17:45 h-sessão de domingo. Saí de casa com uma sensação de ir a uma matiné, pois desde a minha infância, adolescência não ia a uma matiné, que significa ir ao cinema ainda de dia.
A fila era grande, eram dois filmes em cartaz de muita procura no mesmo espaço com 5 salas : Chico Xavier e Alice no País das Maravilhas em 3 D; atração que mobiliza os pós modernos. Quando eu e minha amiga entramos na sala indicada para o filme depois de boa fila; estranhamos um pouco (ela também é pouco assídua no cinema) porque “achamos” o público mas para Alice no País da Maravilhas do que Chico Xavier. Cochichamos muito nos perguntando se era ali mesmo o nosso filme, posto que as pessoas portavam sacos de pipocas gigantes (me senti num cinema americano), o público era muito jovem, tinha até criança. Começaram as propagandas de filmes que passarão nos próximos dias e meses e eu ainda carregava a sensação de não estar na sala correta. Eram muitos anúncios e bastante barulho de pipoca, caixa de Mentex, balas, uma orquestra de celofane...Até que começou o filme. Nisso, qualquer pessoa um pouco mais sensível perceberia a energia, o clima mudar....A comilança parou, o celofane quietou o facho, o astral pós moderno foi se transformando. Aconteceu um silêncio vivo e atento, o fluxo da energia doce e humilde de Chico Xavier mesmerizou nossos sentidos. Há muitos anos peregrino numa busca espiritual, atrás de mim mesmo, de minha origem cósmica, dos meus por quês e dos meus para onde e sempre o cenário era ou a Índia, ou o deserto americano, os Andes, o sul da Espanha, o Oriente como um todo; mas, dessa vez o filme, a história do Chico e sua espiritualidade viva e prática tem a paisagem da minha terra; Minas Gerais. A espiritualidade na sua forma mais essencial estava se passando aqui em Minas. A fotografia e a direção do filme são de uma exuberância, numa focalização do simples, do barroco, das montanhas, daqui dessas Minas, dessa Mãe Terra montanhosa. A simplicidade de Minas Gerais é exuberante!!!!! A figura de Chico retratado por Daniel Filho é de uma doçura, de um humor, humildade, de um amor incondicional ; grandeza!!!. As cenas, os diálogos, a dinâmica do filme num “vai e volta” muito interessante, onde três atores muitos bons “fazem” o Chico em três fases etárias de sua vida. Chico era muito especial e assim como todos que são diferentes de alguma forma são perseguidos. Nossa sociedade hipócrita e ignorante não suporta o diferente, não admite o que destoa de uma verdade congelada e cristalizada.
Por volta de 1980/81 conheci um mestre indiano chamado Rajneesh (hoje o chamam de Osho) e me tornei discípulo dele. Ele faleceu em 1990. Era uma empreitada de enfrentamento dessa sociedade hipócrita e congelada, do sistema “entorpecedor” das consciências humanas . Nós, seus “sannyasins”(iniciados) éramos mal vistos pelos amigos, pelas famílias que abominavam aquela troupe de loucos e nós sabíamos (eu sabia que eu estava de fato “desenlouquecendo”) o quanto aquilo tudo era saudável, o quanto ouvir o mestre era nutritivo, o quanto sua orientação paradoxal e aparentemente anárquica era o melhor remédio para a cura de tudo que foi feito para abafar nossa essência. Em Julho de 1983 teríamos um grande encontro de todos os sannyasins do mundo com o mestre Rajneesh-Osho no estado do Oregon-USA. Nós ficamos completamente agitados nos preparando para ir nos juntar a ele, participar desse evento com +- 10..000 pessoas do mundo inteiro, onde o lema era viver, amar, rir, brincar, meditar, silenciar a mente e escutar a alma, a existência. Um sannyasin amigo daqui de Belo Horizonte queria muito ir a esse encontro e seu pai, que tinha condições financeiras, não queria patrocinar de jeito algum aquela viagem pois achava que era uma insanidade completa. Como esse pai era um espírita muito ligado ao Chico e naquele dia de maio de 1983, eu sabia que o Chico estaria em Belo Horizonte, tive uma intuição de irmos procurá-lo depois do evento ainda mais que esse pai estaria ao lado do Chico. Não deu outra, chegamos na garagem do enorme auditório onde o Chico recebeu uma condecoração e encontramos o Chico que estava com seus colaboradores, entre eles esse pai. Quando o tal pai nos viu (nós usávamos só vermelho e um colar no pescoço chamado “malla” com a foto do mestre) disse: - Veja Chico, lá está meu filho que você conhece desde que nasceu , lá está ele com a turma de loucos do tal guru que os estão convocando para essa viagem maluca que eu estava te contando. O Chico nos recebeu com seu melhor sorriso e quando eu fui beijar a sua mão e pedir a sua benção e ele disse com a voz do fundo da alma: -Deus te abençoe!!! . Eu senti meu liquor dentro da minha coluna. Eu tive uma sensação corporal de inteireza, de harmonia, senti uma vibração passar pelo meu corpo das mais fortes e inesquecíveis já vividas. Depois de cumprimentar e saudar cada um de nós, o Chico voltou-se para o pai aflito e disse: -Dê a passagem e as condições para seu filho ir nesse encontro, esse povo é muito feliz!!! Eles são muito alegres!!! Chico Xavier “sacou” Rajneesh (Osho); eu senti isso nessa hora. Chico ficou muito feliz com nossa presença. Veja a foto inédita tirada numa noite maio de 1983 em Belo Horizonte no anexo desse e-mail. Chico entendia perfeitamente aqueles que seguiam caminhos diferentes, aqueles que estavam à margem da massificação, aqueles que buscavam um bem maior, um bem mais abrangente do que o oferecido no adestramento social.
Voltando ao filme, quando percebi que estava terminando, me espantei, pois não senti que havia se passado 2 horas e nunca tinha assistido a um filme no qual parte dele ainda se passa enquanto se mostra os créditos finais e ninguém arreda pé. Quando a luz acendeu para irmos embora, senti na aura da sala o que o Chico fala sobre irmandade, amor universal, suavidade. Aquela comilança e ansiedade pós moderna percebidas antes do filme e a suspeita de estar numa sala para assistir Alice no País das Maravilhas em 3D deram lugar à uma paz, um contentamento interno, à uma decantação dessa ansiedade; à uma sensação de felicidade por voltar no cinema na matine de domingo. Chico Xavier me levou ao cinema!!!!!
Esse filme é um presente e eu indico para todos aqueles que acreditam no amor, acreditam que a vida é muito mais que esse olhar apequenado que nos permitiram ter. Esse filme traz a espiritualidade, a possibilidade desse reencontro com a essência aqui mesmo, por aqui nas Minas, aqui dentro de mim, dentro de cada um de nós; sempre....
Um abraço;
Hercoles Jaci- Psicólogo clínico e Organizacional- Professor na Pós em Belo Horizonte-MG. hercoles@uai.com.br




20 de abril de 2010

Carta aberta aos bispos católicos de todo o mundo

Hans Kung *

Nos anos 1962-1965 Joseph Ratzinger - hoje Bento XVI - e eu éramos os dois mais novos teólogos do Concílio. Hoje, somos os mais anciãos e os únicos em plena atividade. Sempre entendi meu compromisso teológico como um serviço à Igreja. Por isso, movido pela preocupação com a crise de confiança que atinge essa nossa Igreja, a mais profunda que recordamos desde os tempos da Reforma, dirijo-me a vós com uma carta aberta, na comemoração do quinto aniversário do pontificado de Bento XVI.
De fato, esse é o único meio de que disponho para entrar em contato com vocês.

Apreciei muito o convite do papa Bento, que, no início de seu pontificado, me concedeu uma conversa de quatro horas -apesar da minha posição crítica ao seu respeito- que se desenvolveu bem amigavelmente. Tive a esperança de que Joseph Ratzinger, meu colega na universidade de Tubingen, teria encontrado o caminho rumo a uma ulterior renovação da Igreja e um entendimento ecumênico, no espírito do Concílio Vaticano II. Infelizmente, minhas esperanças, bem como as de tantas/os crentes que vivem com compromisso a fé católica, não se realizaram. Tive a oportunidade de comunicar-lhe isso mais de uma vez através das correspondências que lhe enviei.

Sem dúvida, ele nunca deixou de cumprir com consciência os compromissos cotidianos do papado, e nos presenteou com três encíclicas sobre a fé, a esperança e a caridade. Porém, frente ao maior desafio de nosso tempo, a cada dia mais, seu pontificado apresenta-se como uma ocasião perdida, por não ter sabido captar uma serie de oportunidades:

- Faltou a reaproximação com as Igrejas evangélicas, sequer consideradas Igrejas no sentido próprio do termo: daí a impossibilidade de um reconhecimento de suas autoridades e da comum celebração da Eucaristia.

- Faltou a continuidade do diálogo com os judeus: o papa reintroduziu o uso pré-conciliar da oração para a iluminação dos judeus acolheu na Igreja alguns bispos notoriamente cismáticos e antissemitas; sustenta a beatificação de Pio XII; e leva a sério o judaísmo enquanto raiz histórica do cristianismo; não como comunidade de fé que hoje também busca seu caminho de salvação. No mundo inteiro os judeus expressaram indignação pelas palavras do Pregador da Casa Pontifícia que, na liturgia da Sexta-Feira Santa, comparou as críticas dirigidas ao papa com as perseguições anti-semitas.

- Com os muçulmanos faltou levar adiante um diálogo pautado na confiança. Sintomático nesse sentido é o discurso pronunciado pelo papa em Regensburg: mal aconselhado, Bento XVI apresentou o Islã com uma imagem caricatural, descrevendo- o como uma religião desumana e violenta e alimentando assim a desconfiança entre os muçulmanos.

- Faltou a reconciliação com os povos autóctones da América Latina: com toda seriedade, o papa afirmou que aqueles povos colonizados "desejassem" a acolher a religião dos conquistadores europeus.

- Desperdiçou-se a oportunidade de vir em socorro das populações da África na luta contra a superpopulação e contra o HIV, dando o aval à contracepção e ao uso de preservativos.

- Perdeu-se a oportunidade de se reconciliar com a ciência moderna, reconhecendo sem ambigüidade a teoria da evolução e aderindo sempre com as devidas diferenciações às novas perspectivas das pesquisas, por exemplo, sobre as células-tronco.

- Faltou, enfim, assumir, no interior mesmo do Vaticano, o espírito do Concílio Vaticano II como bússola da Igreja católica, levando adiante as reformas.

Este último ponto, queridíssimos bispos, tem um valor crucial. Este papa nunca parou de relativizar os textos do Concílio, interpretando- os em sentido regressivo e contrário ao espírito dos Padres Conciliares; chegando até a se contrapor expressamente ao Concílio Ecumênico que representa com base no direito canônico, a autoridade suprema da Igreja católica:

- Readmitiu, incondicionalmente, na Igreja Católica os bispos tradicionalistas da Fraternidade de Pio X, ordenados ilegalmente fora da Igreja Católica que recusaram o Concílio em alguns pontos essenciais;

- Promoveu através de todos os meios a missa medieval tridentina e, ocasionalmente, celebra ele mesmo a Eucaristia em latim virando as costas aos fiéis;

- Não concretiza o entendimento com a Igreja Anglicana previsto nos documentos ecumênicos oficiais (ARCIC); ao contrário, procura puxar os padres anglicanos casados para a Igreja Católica romana, renunciando à obrigação do celibato;

- Potencializou, em âmbito mundial, as forças anticonciliares no interior da Igreja através da nomeação de altos cargos anticonciliares (por ex.: Secretaria de Estado, Congregação para a Liturgia) e de bispos reacionários.

O papa Bento XVI parece afastar-se sempre mais da grande maioria do povo da Igreja que já, por si, é levado a desinteressar- se do que acontece em Roma e, no melhor dos casos, se identifica com sua paróquia e com o bispo local.


Sei que muitos de vocês sofrem com esta situação: a política anticonciliar do papa tem todo o apoio da Cúria Romana, que procura sufocar as críticas entre os bispos e no seio da Igreja e busca, por todos os meios, desacreditar aos dissidentes. Em Roma, faz-se o esforço para dar crédito, com renovadas exibições de luxo barroco e manifestações de grande impacto midiático, a uma imagem de Igreja forte, com um "vigário de Cristo" absolutista, que reúne em suas mãos os poderes legislativo, executivo e judiciário.
Mas a política de restauração de Bento XVI faliu. Suas aparições públicas, suas viagens, seus documentos, não serviram a influenciar no sentido da doutrina romana as idéias da maioria dos católicos sobre várias questões controvertidas e, em particular, sobre a moral sexual. Nem seus encontros com os jovens, pertencentes em grande parte a grupos carismáticos de orientação conservadora, puderam frear a fugas da Igreja, ou incrementar as vocações ao sacerdócio.

Em sua qualidade de bispos, certamente, vocês são os primeiros a perceber dolorosamente a renúncia de dezenas de milhares de sacerdotes que, desde o Concilio até hoje, se demitiram de seus cargos, sobretudo, devido à lei do celibato. O problema das novas vocações atinge não só os padres, mas também as congregações religiosas, as freiras, os leigos consagrados. A resignação e a frustração se difundem no meio do clero e, sobretudo, entre seus expoentes mais ativos; muitos sentem-se abandonados em suas necessidades e sofrem por causa da Igreja. Em muitas de suas dioceses vê-se claramente um maior número de igrejas desertas, de seminários e de presbitérios vazios. Em muitos países, com o pretexto da reforma eclesiástica, se decide por juntar muitas paróquias, muitas vezes contra sua vontade, para construir gigantescas 'unidades pastorais' confiadas a um pequeno número de padres sobrecarregados pelo trabalho excessivo.

E, por fim, aos muitos sinais da crise em andamento, junta-se o espantoso escândalo dos abusos cometidos por membros do clero contra milhares de adolescentes -nos Estados Unidos, na Irlan da, na Alemanha e em outros lugares-, acompanhado por uma falta de liderança, uma crise sem precedentes. Não se pode silenciar sobre o fato de que o sistema mundial de ocultamento dos abusos sexuais do clero respondesse às disposições da Congregação Romana para a Doutrina da Fé (pela qual era responsável, entre 1981 e 2005, o cardeal Ratzinger), que, no mais rigoroso silêncio, desde o pontificado de João Paulo II, reunia a documentação sobre estes casos. Em 18 de maio de 2001, Joseph Ratzinger divulgou para todos os bispos uma carta de tom solene sobre os delitos mais graves ("Epistula de delictis gravioribus" - Carta sobre os delitos mais graves), impondo ao caso de abuso o "segredo pontifício", cuja violação é castigada pela Igreja com severas sanções. É com razão, portanto, que muitos exigiram um pessoal 'mea culpa' ao prefeito de outrora, hoje papa Bento XVI. Este, porém, não acolheu a boa oportunidade da Semana Santa; ao contrário, fez declarar " urbi et orbi" (à cidade -Roma- e ao mundo), no domingo de Páscoa, sua inocência através do cardeal decano.

Para a Igreja Católica, as conseqüências de todos os escândalos divulgados são devastadores, como confirmaram alguns de seus maiores expoentes. A suspeita generalizada já golpeia indiscriminadamente inúmeros educadores e pastores de gran de compromisso e de conduta irrepreensível. É vossa tarefa, estimadíssimos bispos, perguntar-se qual será o futuro de vossas dioceses e o da nossa Igreja.




Não é minha intenção vos propor um programa de reformas. Já fiz isso mais de uma vez, quer antes, quer depois do Concílio. Aqui quero limitar-me a apresentar-lhes seis propostas, as quais, estou convencido, são partilhadas por milhões de católicos que não têm voz.

1. Não calem. O silêncio frente a tantos gravíssimos abusos vos torna responsáveis. Ao contrário, toda vez que pensam que determinadas leis, disposições ou decisões vão ter efeitos contraproducentes, deveriam declará-lo publicamente. Não escrevam cartas a Roma para fazer ato de submissão e devoção, mas para exigir reformas.

2. Tomem as rédeas para iniciativas reformadoras. Muitos, na Igreja e no episcopado, se queixam de Roma; nunca, porém, tomam a iniciativa. Mas, se hoje nesta ou naquela diocese ou comunidade os paroquianos param de frequentar a missa; se a atividade pastoral não dá resultados; se falta abertura para os problemas e os males do mundo; se a cooperação ecumênica está reduzida ao mínimo, não se pode descarregar todas as culpas sobre Roma. Todos, desde o bispo até ao padre e o/a leigo/a, devem comprometer- se com a renovação da Igreja em seu ambiente de vida pequeno ou grande que seja. Muitas coisas extraordinárias nasceram nas comunidades e, em geral, no seio da Igreja, em nível pessoal ou de pequenos grupos. É vossa tarefa na qualidade de bispos, promover e sustentar tais iniciativas, assim como responder, sobretudo nesse momento, às justificadas queixas dos fiéis.

5. Procurar soluções regionais: o Vaticano mostra-se, muitas vezes, surdo a justificadas exigências dos bispos, dos padres e dos leigos/as. Uma razão a mais para caminhar para soluções regiona is. Como bem sabem, um problema particularmente delicado é constituído pela lei do celibato, uma norma de origem medieval que, com razão, é agora colocada em discussão em todo o mundo precisamente no contexto do escândalo suscitado pelos abusos sexuais. Uma mudança em contraposição a Roma parece praticamente impossível; mas, não é por isso que estão condenados à passividade. Um padre que depois de serias reflexões tenha amadurecido a decisão de casar não deveria ser obrigado a se demitir automaticamente de seu cargo, se pudesse contar com o apoio de seu bispo e da comunidade. Uma conferência episcopal sozinha poderia abrir a estrada a caminho de uma solução regional. Melhor seria, porém, visar uma solução global para a Igreja no seu conjunto. Por isso,

6. peça-se a convocação de um Concílio: se para chegar à reforma litúrgica, à liberdade religiosa, ao ecumenismo e ao diálogo interreligioso foi necessário um Concíl io, o mesmo vale hoje frente aos problemas que se apresentam em termos tão dramáticos. Um século antes da Reforma, o Concílio de Constança tinha decidido a convocação de um Concílio a cada cinco anos, decisão que, porém, não foi atendida pela Cúria Romana, que, sem dúvidas, também hoje fará tudo que puder para evitar um concílio do qual pode temer uma limitação de seus poderes. É responsabilidade de todos vocês conseguir que se aprove a proposta de realização de um Concílio, ou pelo menos de uma assembléia episcopal representativa.

Frente a uma Igreja em crise, este é o apelo que dirijo a vocês, estimadíssimos bispos: vos convido a colocar na balança o peso de vossa autoridade episcopal, revalorizada pelo Concílio. Na difícil situação que estamos vivendo, os olhos do mundo estão dirigidos para vós. Inúmeros são os católicos que perderam a confiança em sua Igreja; e o único jeito para contribuir para restaurá-la é o de enfre ntar honestamente e abertamente os problemas, para adotar as reformas necessárias. Peço-lhes, respeitosamente, que façam o que lhes corresponde; quando possível, em colaboração com outros bispos; mas, se necessário, também sozinhos, com apostólica 'coragem' (At 4,29.31). Deem um sinal de esperança aos vossos fiéis; deem uma perspectiva à nossa Igreja.

Saúdo-vos na comunhão da fé cristã.


[Fonte: La Repúbblica (diário italiano), 15 abril 2010].

* Catedrático emérito de Teología Ecuménica en la Universidad de Tubinga (Alemania) y presidente de Global Ethic

19 de abril de 2010

Pedra revela Messias anterior a Jesus ?

Acid :: escreve o Blog (Saindo da Matrix).


Já se falava de um Messias ressuscitado antes de Jesus ter nascido. Pelo menos é essa a interpretação que investigadores fazem da inscrição, em hebraico, numa pedra encontrada no Mar Morto e que data do século I antes de Cristo.

A inscrição na pedra - adquirida por um colecionador israelita na Jordânia, há nove anos - sugere que a ressurreição do Messias não é única nem genuína do cristianismo. De acordo com aquele texto, que investigadores já decifraram, a ressurreição seria um conceito adotado pelo judaísmo ainda antes de o ser pelo cristianismo. A premissa de que Jesus era o Messias e ressuscitou três dias depois de morrer - vencendo a própria morte - serve de base à fé cristã. Confirmar-se que a ressurreição aconteceu antes de Cristo seria pôr em questão o dogma católico da ressurreição de Jesus.

O judaísmo sempre encarou Jesus apenas como um profeta que mudou as crenças tradicionais, mas não como o Messias ou o filho de Deus. Agora, esta descoberta vem reacender o debate, enquanto investigadores decifram as 87 linhas do texto em hebraico, escrito na pedra, e não esculpido, em duas colunas.

Irás viver

A imprensa israelita chama a pedra de "A Visão de Gabriel", uma vez que grande parte do texto remete para uma visão do Apocalipse transmitida pelo anjo Gabriel. Israel Knohl, professor de estudos bíblicos da Universidade Hebraica de Jerusalém, explicou que se trata de um texto profético escrito no século I antes de Cristo, e que cita este anjo dizendo a um certo "príncipe dos príncipes": "Daqui a três dias irás viver. Eu Gabriel, te ordeno".

Na interpretação do Sr. Knohl, o texto trata de uma figura messiânica que ele acha ser Simão. Acredita também que os escritores da história seriam os seguidores de Simão. No texto, o Sr. Knohl aponta que a morte e sofrimento desse Messias seriam necessárias para a salvação, segundo as linhas 19 a 21 da inscrição: "Em três dias, você saberá que o mal será derrotado pela justiça", e outras linhas que falam de sangue e sacrifício como o caminho para a justiça.

Dois investigadores israelitas, Ada Yardeni e Binyamin Elitzur, publicaram uma análise detalhada do escrito em 2007, confirmando a data. No entanto, consideraram indecifrável a palavra que se segue a "daqui a três dias", na 80ª linha. Knohl, por seu turno, argumenta que a palavra é "Hayeh" ou "viver" no imperativo. Segundo a interpretação deste docente, a lápide sugere a ideia de que o sangue do Messias morto e ressuscitado é necessário para atingir a redenção, o que demonstraria que a premissa terá sido adotada pelo judaísmo antes de o ser pelo cristianismo, já que o texto foi escrito previamente. Knohl sublinha que esta interpretação sustenta uma teoria que ele já tinha exposto num livro editado em 2000, segundo a qual existia um Messias antes de Cristo. Ele diz que um Messias sofredor é um conceito muito diferente da imagem judia tradicional de um Messias triunfante, poderoso descendente de David. "O que acontece no Novo Testamento foi a adoção de Jesus e seus seguidores de uma história anterior sobre um Messias".

Moshe Bar-Asher é respeitoso, mas cauteloso quanto à tese de Knohl: "Há um problema, pois em partes cruciais do texto há palavras faltando. Eu entendo a tendência do Sr. Knohl a achar aí evidências de um período pré-cristão, mas em dois pontos cruciais do texto há várias palavras faltando".
Knohl disse que é menos importante saber se foi ou não Simão o Messias, e mais importante o fato de que o texto sugere que um salvador que morre e ressuscita após 3 dias já era um conceito estabelecido na época de Jesus. "A missão de Jesus foi sofrer e ser morto pelos romanos, para que seu sangue fosse um sinal da redenção que viria. Isto dá a Última Ceia um significado absolutamente diferente. Ele deu o sangue não pelos nossos pecados, mas pela redenção do povo de Israel".

A polêmica revelação do investigador, a partir da sua interpretação dos escritos, foi revelada numa conferência no Museu de Israel, subordinada à celebração dos 60 anos da descoberta dos "Manuscritos do Mar Morto".

Referência:
The Independent;
The New York Times

15 de abril de 2010

Maria Clara Bingemer - Onde dormirão os pobres?

(Maria Clara Lucchetti Bingemer)

Nunca esquecerei onde estava naquela segunda feira quando o mundo pareceu desabar. De vestido longo, indo para a posse na Academia Brasileira de Letras da queridíssima Cleonice Berardinelli. Não havia táxis e quando se encontrou um, foi preciso enfrentar vários rios de lama e enxurradas de pedras para chegar à Academia. Pior ainda foi voltar para casa, façanha só compensada pelo prazer que foi escutar a fala impecável e refinada de Cleonice com sua voz que parecia música.

Entrar sob um teto seguro e dormir em cama seca foi experiência de alívio até acordar na manhã seguinte com o telefonema angustiado de uma aluna que me dizia não poder sair de casa para ir à universidade fazer a prova. Foi então que a televisão começou a mostrar a sucessão de horrores em que se transformou minha cidade, meu estado, meu povo, minha gente. Em um mar de água, lama e pedras, gente se misturava à enxurrada, pobres corpos arrastados pela força das águas juntamente com tábuas, sofás, geladeiras, televisões, bichos de pelúcia, tristes destroços do que antes eram vidas de pessoas como eu.

Na telinha se sucediam autoridades desorientadas que alternavam conselhos desorbitados para as pessoas deixarem imediatamente suas moradias com considerações inconseqüentes sobre as causas da tragédia, que sempre culpavam os moradores. Como tiveram a idéia de construir seus barracos em semelhante despenhadeiro? Por que insistiam em morar ali? A troco de que não se haviam mudado para outro lugar? Depois começou o circo patético das acusações mútuas, o presidente responsabilizando o governador, o governador jogando a culpa para o prefeito, o prefeito olhando em volta e não tendo a quem culpar e culpando os moradores.

Aos meus ouvidos voltava e voltava, como um refrão doloroso, o título de um já antigo livro do teólogo peruano Gustavo Gutiérrez: Donde dormirán los pobres? Onde dormirão todas estas pessoas que da noite para o dia perderam tudo que possuíam, inclusive o teto que levaram uma vida inteira para ter? Foram enviados para abrigos, escolas, hospitais, CIEPS. Mas...e depois? Quando a chuva passar, quando todo mundo esquecer, quando as encostas voltarem a ser ocupadas porque não há chão, não há teto, não há terra, não há justiça...onde dormirão os pobres?
Onde dormirá o pequeno Vinicius de oito anos para que não morra soterrado enquanto joga videogame sem sequer se dar conta da avalancha que lhe vem por cima? Onde dormirá a telefonista Natalia que falava ao celular com o namorado até dizer o que foi, sem ela saber, seu testamento: “Está caindo tudo aqui. Caiu tudo.” Onde dormirá o filho de seis anos de Verônica de quem os jornais imprimiram o rosto desarvorado diante das águas que o levaram sem que ela pudesse agarrá-lo por um dos braços? E a esposa e filha de Leonardo, estudante de Engenharia que, ao despertar com a lama caindo sobre seu corpo, procurou por elas e já não a encontrou?

Todos eles e elas dormem agora debaixo de muitas camadas de terra, lixo e lama. Ou estão nas gavetas do Instituto Médico Legal esperando que parentes vão reconhecê-los para dar-lhes sepultura. Como eles, muitos outros. Sobem para várias centenas já os mortos no Rio de Janeiro, vítimas da tragédia mais que anunciada que já virou tradição anual das águas de março que este ano vieram mais tarde, em abril, e mais violentas, carregando morro abaixo sonhos, vidas e muito mais.

É fácil culpar os pobres, acusando-os de ignorância e imprudência. Mais ainda : de teimosia por insistir em construir suas casas em terrenos perigosos. Mais fácil ainda culpar os mortos. Todos concordamos que um lixão com toneladas de dejetos não é solo firme nem adequado para se construir habitações onde seres humanos vão morar. Porém quando é a única alternativa e ninguém oferece outra, o que se faz? Ocupa-se o solo que se apresenta, mesmo que seja um lixão. Os pobres não são geólogos nem urbanistas. Vivem em tal precariedade que sua unidade de tempo é o minuto. Com o minuto contam e sobre o minuto presente constroem o pouco que a vida lhes oferece. E em um minuto igualmente perdem tudo, todo o pouco que tinham, e sobretudo as vidas que lhes eram caras e preciosas. E com tenacidade sobre humana se dispõem a recomeçar do zero, com dor redobrada, perdas incalculáveis e teimosa esperança.

Não, senhores, os pobres não têm culpa de estar no lugar errado no momento errado. A responsabilidade é de sucessivos governos que há mais de quatro décadas acompanham o efeito devastador que as chuvas de final de verão realizam em uma cidade cheia de encostas cada vez mais ocupadas por moradias populares e que este ano recebeu uma carga de precipitações de proporções nunca vistas. Como são pobres pode ser adiada a solução? Como não contam nas estatísticas, suas vidas podem estar em risco permanente?

O Cristo Redentor chora sobre a Cidade Maravilhosa como naquele tempo sobre a Jerusalém assassina de profetas. Vê vidas destroçadas, famílias enlutadas, comunidades inteiras destruídas. Seu olhar compassivo se comove vendo os barracões de zinco pedindo socorro à cidade que se espalha a seus pés.

Os movimentos de solidariedade angariam e distribuem donativos por toda parte. A população não fica indiferente. Mas não basta. É urgente uma solução mais permanente. Há que repensar urbanisticamente o Rio de Janeiro. Há que redesenhar com inteligência e cuidado a ocupação de suas encostas. E isso é solução a médio e longo prazo. Não a toque de caixa em ano eleitoral com ritmo eleitoreiro. São vidas, muitíssimas que estão em jogo. Não é brincadeira.

Enquanto esta estratégia urbana não for pensada e, sobretudo executada seriamente, ficará sem resposta a grave e profunda pergunta lançada por Gustavo Gutiérrez: “Onde dormirão os pobres”? Tomara que enquanto esta pergunta ressoar sem resposta, nenhum de nós consiga repousar a cabeça no travesseiro e dormir.

Fonte:
http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=14791&cod_canal=47

3 de abril de 2010

Liturgia das horas - Sábado Santo


De uma antiga Homilia no grande Sábado
Santo (séc IV), de um autor grego
desconhecido - Da Liturgia das Horas –
II leitura do Sábado Santo.

“Que está acontecendo hoje? Um grande
silêncio reina sobre a terra. Um grande
silêncio e uma grande solidão. Um grande
silêncio porque o Rei está dormindo; a
terra estremeceu e ficou silenciosa,
porque o Deus feito homem adormeceu e
acordou os que dormiam à séculos. Deus
morreu na carne e despertou a mansão dos
mortos.

Ele vai, antes de tudo, à procura de
Adão, nosso primeiro pai, a ovelha
perdida. Faz questão de visitar os
que estão mergulhados nas trevas e na
sombra da morte. Deus e seu Filho vão ao
encontro de Adão e Eva cativos, e agora
libertos dos sofrimentos.

O Senhor entrou onde eles estavam,
levando em suas mãos a arma da cruz
vitoriosa. Quando Adão, nosso primeiro
pai, o viu, exclamou para todos os
demais, batendo no peito e cheio de
admiração: “O meu Senhor está no meio de
nós”. E Cristo respondeu a Adão: “E com
teu espírito”. E tomando-o pela mão,
disse: “Acorda, tu que dormes,
levante dentre os mortos, e Cristo te
iluminará. Eu sou o teu Deus, que por
tua causa me tornei teu filho; por ti e
por aqueles que nasceram de ti, agora
digo, e com todo o meu poder, ordeno aos
que estavam na prisão: “Saí!”; e aos que
jaziam nas trevas: “Vinde para a luz!”;
e aos entorpecidos: “Levantai-vos!”


Eu te ordeno: Acorda, tu que dormes,
porque não te criei para permaneceres na
mansão dos mortos. Levanta-te, obra de
minhas mãos; eu sou a vida dos mortos.
Levanta-te, obra das minhas mãos;
levanta-te, ó minha imagem, tu que foste
criado à minha semelhança. Levanta-te,
saiamos daqui; tu em mim e eu em ti,
somos uma só e indivisível pessoa.


Por ti, eu, o teu Deus, me tornei teu
filho; por ti, eu, o Senhor, tomei tua
condição de escravo. Por ti, eu, que
habito no mais alto dos céus, desci à
terra, e fui mesmo sepultado abaixo da
terra; por ti, feito homem, tornei-me
como alguém sem apoio, abandonado entre
os mortos. Por ti, que deixaste o jardim
do paraíso, ao sair de um jardim fui
entregue aos judeus e num jardim,
crucificado.

Vê em meu rosto os escarros que por ti
recebi; para restituir-te o sopro da
vida original. Vê nas minhas faces as
bofetadas que levei para restaurar,
conforme à minha imagem, a tua beleza
corrompida. Vê em minhas costas as
marcas dos açoites que suportei por ti
para retirar dos teus ombros os pesos
dos pecados. Vê minhas mãos fortemente
pregadas à árvore da cruz, por causa de
ti, como outrora estendeste levianamente
tuas mãos para a árvore do paraíso.
Adormeci na cruz e por tua causa a lança
penetrou no meu lado, como Eva surgiu do
teu, ao adormeceres no paraíso. Meu lado
curou a dor do teu lado. Meu sono vai
arrancar-te do sono da morte. Minha
lança deteve a lança que estava voltada
contra ti.

Levanta-te, vamos daqui. O inimigo te
expulsou da terra do paraíso; eu, porém,
já não te coloco no paraíso mas num
trono celeste. O inimigo afastou de ti a
árvore, símbolo da vida; eu, porém, que
sou a vida, estou agora junto de ti.
Constituí anjos que, como servos, te
guardassem; ordeno agora que eles te
adorem como Deus, embora não sejas Deus.
Está preparado o trono dos querubins,
prontos e a postos os mensageiros,
constituído o leito nupcial, preparado o
banquete, as mansões e os tabernáculos
eternos adornados, abertos os tesouros
de todos os bens e o reino dos céus
preparado para ti desde toda a
eternidade.”

2 de abril de 2010

A “teologia da cruz” como subversão e poesia dos crucificados

(Paulo Nascimento)


Fecisti nos ad Te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in Te.
[Fizeste-nos para Ti, e nosso coração permanece inquieto enquanto não repousa em Ti.]
(Santo Agostinho, Confissões, Livro I)


Considero a “teologia da cruz”, como elaborada por Paulo de Tarso, um duplo exercício intelectual de subversão e poesia.
Mas também não posso deixar de dizer que o Cristianismo parece ter desprezado o sentido político da crucificação de Jesus. Para Rudolf Bultmann foi justamente Paulo o primeiro a “espiritualizar” a crucificação, tornando-a de um evento político num evento religioso. Eu discordo totalmente dessa interpretação. Prefiro pensar com Pablo Richard, para quem a despolitização do evento da crucificação de Jesus de Nazaré foi levada a cabo mais tardiamente, pelos quatro primeiros concílios ecumêmicos da Igreja Católica. Na verdade, já o Credo Apostólico parece testemunhar um claro desprezo tanto pela práxis de Jesus de Nazaré quanto pelas razões humanas da crucificação. No Credo, os únicos elementos mencionados da vida concreta de Jesus são seu nascimento e sua morte. Os três anos de sua subversiva atividade não são contemplados na produção desse documento dos primeiros séculos da Era Cristã. Portanto, Paulo de Tarso não deveria ser responsabilizado por tal esvaziamento dos significados políticos da cruz.
A Sexta-feira Santa talvez seja o melhor dia do ano para dizer que a crucificação de Jesus foi um evento político-religioso. Gosto da frase de Frei Betto, mencionada pelo meu amigo Ascânio Júnior, que diz que “Jesus não morreu atropelado por um jumento numa esquina de Jerusalém”. Nossa teologia cristã se aferrou por muito tempo à idéia de que o Império Romano interpretou de forma equivocada a práxis de Jesus. Instigados pelas perturbações religiosas da elite sacerdotal judaica, os romanos teriam se equivocado na acusação impetrada contra Jesus de Nazaré. Dessa forma, a sua crucificação permaneceria sendo um evento de dimensões meramente religiosas, ligada à “teologia do sacrifício vicário” oferecido por Deus aos seres humanos.
Richard A. Horsley e John Dominic Crossan talvez sejam dois dos melhores nomes que têm nos ajudado a compreender o significado político da crucificação de Jesus de Nazaré. Conforme eles, a acusação romana resumida na inscrição ao alto da cruz Iesu(a) Nazarenus Rex Iudaeorum foi legítima. Com isso não se está concordando com a sentença do aparelho judicial romano em sua condenação de Jesus de Nazaré. O que se está afirmando é que conforme a natureza da atividade de Jesus de Nazaré, outra acusação não seria possível. Também se está afirmando que somente hoje, a partir de nossa dicotomia moderna entre práticas estritamente políticas e práticas estritamente religiosas, é que podemos pensar que a práxis de Jesus era exclusivamente dirigida à correção das almas humanas. Ora, sua crucificação é a melhor prova de que as coisas não eram bem assim!
A crucificação, por parte dos romanos, constituía a pena capital do aparelho jurídico imperial a fim de preservar o controle, a dominação e a expropriação econômica das províncias subjugadas pela presença romana. O controle, a dominação e a expropriação das províncias subjugadas davam o suporte econômico para a Pax et Securitas Romana, que era pax et securitas somente para os próprios romanos. Profetas ambulantes movidos à base de meros sonhos religiosos, numerosos naqueles dias, nunca exigiram o gasto de um prego por parte de Roma. Pregos, madeiros, soldados e armas, eram exclusivamente utilizados contra aqueles que representavam uma ameaça concreta às campanhas imperiais de expropriação das colônias, sobretudo com a prática abusiva de impostos. Conforme Horsley, a cruz romana deveria ser dirigida exclusivamente aos “bandidos”, isto é, ela era uma forma de reprimir os insurretos que representassem uma ameaça à expropriação imperial feita em nome da pax romana.
Nesse contexto, a atividade de Jesus de Nazaré não pode ser circunscrita a uma atividade meramente religiosa. Ela se inscreve numa tradição de resistência anti-imperial presente em Israel, representada sobretudo pelos profetas. Mais do que a correção das almas humanas, a práxis de Jesus de Nazaré deve ser vista como a luta por revitalizar as formas tradicionais de vida na Palestina, que vinham sendo paulatinamente esmagadas pela opressão imperial. Tais formas tradicionais de vida deveriam ser marcadas pelo comunitarismo, pela fraternidade e por uma sociedade sem os flagelos da pobreza, da miséria e da exclusão (por exemplo, cf. Dt 15,7-11). Não estou equiparando o “movimento de Jesus” aos demais movimentos revolucionários e aos banditismos sociais contemporâneos a Jesus de Nazaré na Palestina. Mas a cruz, como repressão máxima do aparelho jurídico romano, foi o fim comum entre Jesus de Nazaré e os demais líderes de movimentos anti-imperiais de que temos notícia naqueles dias.
A “teologia da cruz” como subversão dos crucificados
Paulo de Tarso, mais do que todos nós hoje, sabia de todos esses pormenores. E ainda que ele quisesse esvaziar o conteúdo político da cruz, isso não lhe seria possível, a menos que sua atividade apostólica fosse desempenhada fora do alcance geográfico do Império Romano. Sua “teologia da cruz”, pelo contrário, se dá justamente no miolo do Império. E eu concordo com Neil Elliott quando afirma que, mais do que isso, a “teologia da cruz” em Paulo se dá em oposição deliberada ao Império. Utilizar a cruz como símbolo teológico tal como Paulo o fez seria insano, a menos que ele quisesse fazê-lo como oposição deliberada ao Império, como diz Elliott.
Num raciocínio simples, perguntemo-nos o seguinte: como o Império reagiria ao saber que alguém propalava em algumas de suas principais cidades (Corinto, Roma, Éfeso, Tessalônica etc) que um dos muitos “bandidos” e “insurretos judeus” abatidos pela crucificação agora havia ascendido à condição de Sotér kai Kýrios (Salvador e Senhor)? Não seria subversivo atribuir a um crucificado os títulos cabíveis somente ao Divino César – justamente os títulos de Senhor e Salvador (1Co 12,3)? Mais ainda subversivo do que atribuir os títulos pontifícios a um crucificado galileu, é afirmar que os “príncipes deste mundo” (archontes em grego, uma explícita alusão aos dirigentes do Império [1Co 2,6-8]) estão julgados por terem crucificado aquele insurreto.
Portanto, fazer do crucificado Sotér kai Kýrios não pode ser tomado como um esvaziamento do caráter político da cruz. Num contexto de dominação imperial, essa teologização só pode ser vista como um grande ato subversivo, de afronta deliberada às autoridades romanas, sobretudo ao Imperador. Não devemos esquecer que a política de expansão romana se dava justamente à base das prerrogativas messiânicas da pax, securitas et soteria – paz, segurança e salvação –, agora tributadas ao crucificado Jesus de Nazaré.
No plano das possibilidades e desdobramentos dessa “teologia da cruz”, temos então a potencialização e o empoderamento de todos crucificados e crucificadas do mundo. O próprio Paulo chegou a explorar esses desdobramentos, ao dizer que “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são” (1Co 1,27-28). É por isso que a palavra da cruz só pode ser “loucura” para uns e “poder de Deus” para outros (1Co 1,18).
Isso quer dizer que uma “teologia cruz”, enquanto potencialização e empoderamento dos humilhados e humilhadas da terra, é mais do que necessária entre nós que hoje vivemos entre milhares de crucificados e crucificadas [Não é Alagoas, por exemplo, um estado majoritariamente feito de crucificados e crucificadas?]. Nesse sentido, a “teologia da cruz” consiste em falar do potencial que os humilhados e humilhadas têm de retomar a força e de serem autores de sua própria história. Significa tratar-lhes de forma não infantilizada. Mas, como dizia o grande psicólogo social Ignácio Martin-Baró, significa explorar o potencial de libertação latente no coração dos próprios oprimidos. Significa ainda viver à luz da convicção de que, se a história hoje é escrita em função dos crucificadores, amanhã é possível uma reversão disso, de modo que ela seja escrita pelos crucificados.
Assim como o crucificado de ontem foi feito Senhor e Salvador, uma “teologia da cruz” consiste em que os crucificados e crucificadas de hoje também possam ser feitos “senhores” e “salvadores”, pelo menos de suas próprias histórias.
A “teologia da cruz” como poesia e reconciliação
A Adélia Prado dizia no programa Sempre um Papo que a criação poética consiste num exercício de transcendência. A pedra que Carlos Drummond de Andrade viu não é a mesma que eu vi hoje no meio do caminho. O corpo feminino que instigou Vinicius de Moraes a escrever o poema Receita de Mulher não é o mesmo corpo feminino que o anatomista vê. Os seres humanos se tornam poetas e poetizas assim que esta capacidade de ver as coisas “transcendidas” os alcança. E é assim mesmo: é essa capacidade que os alcança, e não elas a ela!
Pensando assim eu reputo a “teologia da cruz” como uma poesia de tamanho maior. Porque ver a pedra no meio do caminho e um belo corpo feminino transcendidos, talvez esteja entre a média da criação poética. Mas ver um espetáculo como a crucificação, marcado pelo horror e o terror, transcendido como a forma com que “Deus reconcilia consigo todo o mundo” (2Co 5,19), ou é o Maior Delírio Psicótico da História, ou é a criação poética maximizada à toda potência. É por meio da fé que fazemos a segunda opção!
A crucificação era um espetáculo de horrores. Como Michel Foucault mostrou muito depois em Vigiar e Punir, “o corpo” era o local de manifestação das penas judiciárias. Todos os pormenores do ritual de suplício no corpo dos condenados deveriam ser minimamente regulamentados pelos códigos penais vigentes. No caso das crucificações romanas, a quantidade de chibatadas, o quebrar dos braços e pernas, a posição e a quantidade dos pregos, a caracterização pública do tipo de crime cometido (no caso de Jesus, a ridicularização da sua “realeza” por meio da coroa de espinhos), deveriam estar detalhadamente explicitados nos códigos penais. Conforme Foucault, o horror dos suplícios se prestava a duas coisas: (1) à afirmação do poder soberano sobre os corpos dos supliciados; (2) e o caráter exemplar para as testemunhas. Não é possível afirmar se Mel Gibson, em Paixão de Cristo, reproduziu com fidelidade o horror da crucificação de Jesus de Nazaré. Mas é possível arriscar a opinião de que sua dramaturgia deva estar mais próxima da crueldade das crucificações que a maioria das representações iconográficas que temos delas.
A “teologia da cruz”, tal como a temos em Paulo, transcende esse aspecto de horror ao ver na cruz a reconciliação do mundo com Deus (Cl 2,14-15).
Mas que significa estar reconciliado com Deus? Num mundo cheio de crucificados e crucificadas, como ter a paz que advém da reconciliação com Deus? Nesse mundo de crucificados e crucificadas, paz e sossego não seriam sinônimos de cinismo? Gosto da resposta que Rubem Alves deu a essas perguntas em sua tese de doutorado. Ele dizia em 1969: “Estamos reconciliados com Deus na medida em que compartilhamos da sua irreconciliação com o mundo, irreconciliação que faz com que Deus e os homens sofram. Por isso a paz com Deus significa uma ‘espada’ para o mundo: o julgamento permanente e a rejeição da inverdade daquilo que é, em favor de um novo amanhã de reconciliação e libertação”.
Sim, uma vez que Deus não está em paz com o mundo, estar reconciliado com Ele significa estar “inquieto” junto a Ele, até que “a justiça corra com um rio perene” (Am 5,24). A “teologia da cruz”, portanto, consiste nessa inquietação que nos impele a uma prática transformadora no mundo, e que tem por fundamento o movimento poético de ver a reconciliação do mundo com Deus, num lugar onde aparentemente reina um espetáculo de horrores.

Trabalhos citados
ALVES, Rubem. Da Esperança. Campinas: Papirus, 1987
BULTMANN, Rudolf. O significado do Jesus histórico para a teologia de Paulo. In: Crer e compreender: Ensaios selecionados. São Leopoldo: Sinodal, 2001
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico: A vida de um camponês judeu no mediterrâneo. Rio de Janeiro: Imago, 1997
ELLIOTT, Neil. A mensagem antiimperial da cruz. In: HORSLEY, Richard A. (Org). Paulo e o império: Religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: História da violência nas prisões. 36ª edição, Petrópolis: Vozes, 2009
HORSLEY, Richard A. Jesus e o império: O reino de Deus e a nova desordem mundial. São Paulo: Paulus, 2004
________ (Org.). Paulo e o império: Religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004
MARTIN-BARÓ, Ignácio. Para uma Psicologia da Libertação. In: GUZZO, Raquel & LACERDA JR., Fernando. Psicologia Social: O resgate da Psicologia da Libertação. São Paulo: Alínea, 2009
RICHARD, Pablo. El Jesús histórico y los cuatro evangelios: Memoria, credo y canon para una reforma de la Iglesia. http://www.servicioskoinonia.org/relat/343.htm

www.opiocoisanenhuma.blogspot.com
www.aliancadebatistas.com.br
http://www.novosdialogos.com/


.