O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

19 de janeiro de 2012

''Na Igreja, também há quem trabalhe contra o Evangelho''. Artigo de Enzo Bianchi

Não basta se dizer crente em Cristo; é preciso se dizer e ser seguidor de Jesus na forma ditada pelo Evangelho que, antes de ser um livro quadriforme, é a vida do homem Jesus.

A opinião é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado na revista Jesus, de janeiro de 2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Estes são os dias da memória do nascimento e da infância de Jesus, e os Evangelhos que nos querem narrar a vinda ao mundo do Filho de Deus, daquele que só Deus nos podia dar, de Jesus, Palavra do Pai feita carne (cf. Jo 1,14) por ação do Espírito de Deus, são obrigados, no entanto, a testemunhar que essa vinda, esse admirável dom se realizou no silêncio, na discrição e foi percebido só por alguns, por poucos fiéis.

Eram muitíssimos aqueles que se diziam fiéis e eram contados no número do povo de Deus, eram muitos aqueles que frequentavam o templo, as sinagogas e falavam do Deus uno e vivo. Porém, só pouquíssimos homens e mulheres, anônimos em sua maioria, souberam esperar realmente o Messias, souberam reconhecê-lo e acolhê-lo entre eles como um dom de Deus. Se não tivessem acolhido e olhado com esperança para esse menino, para Jesus, jamais saberíamos da sua existência nem conheceríamos os seus nomes: Zacarias, um sacerdote, e Isabel, sua esposa; José, um artesão, e Maria, sua esposa; Simeão, um velho sacerdote; Ana, uma velha e pobre viúva; alguns pastores de Belém.

Por outro lado, os profetas já tinham entendido e souberam ler a realidade e a verdade da comunidade do Senhor. Dentro do povo de Israel, o povo empírico que é humanamente legível como um povo de fiéis, o Senhor sente na verdade como suas testemunhas só um "resto", uma "porção" quase escondida que não se impõe, que não tem força, que não sabe o que significa vencer, que não é contada... São fiéis humildes, sobretudo, pobres até no coração, mansos que não tem ninguém em quem esperar, senão no Senhor; são fiéis que não buscam apoios mundanos, que não tecem relações para ter poder, que não sonham coisas grandes para além das suas forças (cf. Sl 131, 1): são os 'anawim, os pobres do Senhor.

Mas essa realidade não se refere apenas aos tempos da antiga aliança; refere-se também ao nosso hoje. Na nossa linguagem, muitas vezes abusamos da palavra "Igreja", que repetimos frequentemente de modo ambíguo, quando não até desviado e desviante. Porque a Igreja é uma realidade misteriosa, em que nós acreditamos, mas que não podemos verificar com segurança. A Igreja é a comunhão com os santos no céu daqueles que "o Senhor conhece como seus" (cf. 2Tim 2, 19; Nm 16, 5), como membros do seu corpo; é uma comunhão que não é mensurável (só o Senhor a "conta"!); é uma comunhão constituída por pecadores sempre perdoados, que conhecem o seu pecado e o oferecem ao Senhor como invocação de misericórdia; é uma comunhão daqueles que não simplesmente dizem acreditar em Deus e ser cristãos, mas buscam sincera e obstinadamente dar forma à sua vida segundo o Evangelho.

Sim, a Igreja é uma comunhão que conhece Jesus Cristo como Evangelho, não um Jesus fruto das suas próprias projeções, das suas próprias ideologias e, por isso, desfraldado como "o que temos de mais caro no cristianismo", mas sim o Jesus do Evangelho, que é o Evangelho feito carne, a carne de um homem que viveu humanamente. Não basta se dizer crente em Cristo; é preciso se dizer e ser seguidor de Jesus na forma ditada pelo Evangelho que, antes de ser um livro quadriforme, é a vida do homem Jesus.

Portanto, é preciso discernir quando se fala de Igreja. Não se trata de gostar de posições elitistas, de se alegrar sentindo-se entre poucos, nem de se sentir vítimas, como afirmavam muitos pregadores do século XIII: Duo sunt ecclesiae, "duas são as Igrejas," uma que persegue, a outra que é perseguida. Trata-se de não pensar em "vencer", em "se impor", mas sim em saber discernir, na medida do possível, um núcleo que olha para Cristo como para o Evangelho e, para o Evangelho, como para Cristo, sem distinções ou separações: um núcleo que ouve o Evangelho, que permite que a sua vida seja moldada pelo Evangelho; um núcleo de fiéis que, apesar de suas inadequações e contradições provocadas pelo Evangelho, quer que o Evangelho vença sobre si mesmos; um núcleo que conhece o fogo do Evangelho, aquele fogo que é redespertado por baixo das cinzas pelas quais às vezes parece estar coberto, todas as vezes que um homem ou uma mulher o busca.

Sim, o cristão deve saber que no povo de Deus também, na Igreja também, pode haver aqueles que trabalham contra o Evangelho, aqueles que se dizem cristãos e consideram o Evangelho uma utopia, que dizem crer em Deus em Cristo, mas que riem das palavras de Jesus, do seu Evangelho.

Fonte:

11 de janeiro de 2012

Redescobrir a essencia da Igreja

Na primeira Constituição, sobre a liturgia, já há a eclesiologia de comunhão da Lumen Gentium, mas ainda não a entendemos. A 50 anos da convocação do Vaticano II, fala oMons. Iginio Rogger, ainda hoje o maior historiador doConcílio de Trento e, nos anos 1960, um dos protagonistas da reforma litúrgica conciliar.

A reportagem é de Maria Teresa Pontara Pederiva, publicada na revista Vita Trentina, 08-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Do Concílio de Trento, ele conhece todos os detalhes, mas sobre o Vaticano II ele também não brinca e cita de cor passagens das Constituições, em latim, porque, diz, "a tradução italiana muitas vezes perdeu o pleno sentido do original". Mons. Iginio Rogger, nascido em 1919, professor de história da Igreja e de liturgia, foi um dos seus protagonistas trentinos.

Eis a entrevista.

Como foram acolhidos o anúncio e a convocação do Concílio?


Ninguém esperava. No anúncio em janeiro de 1959, naBasílica de São Paulo, eu estava trabalhando no quarto volume de História da Igreja: parecia ser o fim do Vaticano I, ainda sem uma solene conclusão formal. Mas lembremos o que aconteceu aqui no momento da convocação. Em fevereiro de 1961, por decisão-relâmpago do papa, encerrava-se o episcopado De Ferrari, devido à doença, e o governo da diocese era confiado a um administrador apostólico, o bispo Gargitter, de Bressanone. Seguiu-se um biênio em que a atenção estava sim in loco, mas aumentavam as interrogações sobre o que estava acontecendo lá em cima. A incerteza, em parte, terminou com a nomeação de Gottardi, em fevereiro de 1963. Nesse meio tempo, iniciou um Concílio que não se assemelha a nenhum dos anteriores, porque desaparecem todos os velhos esquemas.

Em que sentido?

No número de pessoas envolvidas e nas intenções: não para condenar heresias, mas sim para atualizar ideias e estruturas. E por uma definição mais exata e completa da Igreja, embora o nosso contexto catequético não sentia nenhuma necessidade disso. A palavra innovatores era conhecida pelo Concílio de Trento em âmbito protestante: algo a ser combatido, assim como as doutrinas secularizantes do século XVIII. E ainda a recomposição da unidade dos cristãos, a conexão com o mundo contemporâneo...

De Trentino, quem estava presente em Roma?

Gargitter representava a todos nós. Em junho de 1963, entrou Gottardi, em julho, abriu-se o Museu Diocesano e, em dezembro, o quarto centenário da conclusão do Concílio de Trento. Enquanto isso, com a morte de Roncalli, sucedeuPaulo VI, e, nos dias 3 a 4 de dezembro, somos admitidos ao Concílio como delegação trentina: no dia 3 para a solene comemoração da clausura do Concílio de Trento; no dia seguinte para a aprovação da Sacrosanctum Concilium, a primeira Constituição Conciliar, apesar de todas as manobras dos tradicionalistas.

Em que termos ela é inovadora?

Enquanto me perguntava se a Igreja deveria ser monarquia papal ou uma colegialidade de responsabilidades, aSacrosanctum Concilium já oferece uma resposta. É iluminadora a aprovação: essas coisas placuerunt aos Padres do Concílio, ou seja, "foram decididas". É um parlamento! E o papa, em virtude dos poderes que lhe foram conferidos, as aprova. Não era mais o tempo de Pio IX! Para mim, foi uma alegria.

Quanto ela foi compartilhada naquela época e agora?

Ainda hoje, pouco: Ratzinger não sentiu a necessidade de convocar um concílio sobre a questão do missal em latim. Na Sacrosanctum Concilium, já está claro o construto teológico da Lumen Gentium: uma eclesiologia bem definida, que, com grave dor, eu constato que ainda não foi recebida.

Pode nos dar alguns exemplos?


Uma série de circunstâncias congelaram a situação. Tudo deveria ser educado, amadurecido...

Quer dizer que faltou um envolvimento?

As celebrações litúrgicas são ações da Igreja", mas se não sabe se o que são... devem ser explicadas. Da Dei Verbum é preciso citar mais frequentemente: "Deus fala ao seu povo", ao povo de hoje, como de todos os tempos. Como a Sacrosanctum Concilium, nº. 7: "Cristo está sempre presente (praesens adest) na sua Igreja e de modo especial nas ações litúrgicas". Quando se fala de extensão das línguas nacionais (nº. 36), refere-se às autoridades territoriais, aos bispos. Nos nº. 41 e 42, a vida litúrgica "em torno ao bispo", depois estendida às paróquias. E ainda "sentido da comunidade paroquial" e "celebração comunitária da missa dominical". Eu ainda tenho o texto do Pe. Hertling que usávamos na universidade, Communio und Primat: a Igreja nada mais é do que comunhão. Com ele também amadureceu o Vaticano II.

E depois como se seguiu em frente?

Havia sido estabelecido um órgão separado, presidido pelo cardeal Lercaro, para os novos livros litúrgicos. Para o missal, liderava o Mons. Wagner, diretor do instituto litúrgico de Trier, na época o mais competente. A partir de janeiro de 1964, eu estava envolvido na comissão do novo Breviário, rebatizado de Liturgia das Horas. Na introdução, as minhas palavras: Oratio populi Dei. Eu lembrava de São Cipriano: quando rezamos, sempre dizemos "Pai Nosso". A oração do cristão nunca é individual. Na Missa, reintroduzimos a oração dos fiéis perdida ao longo dos séculos, justamente por causa da língua latina, que tinha excluído o povo. Eu também estava na comissão De cantibus: pensemos no Sanctus, canto do povo, a ser cantado espontaneamente, não para ouvir do coro.

E a música?

É melhor um violão que ajude a assembleia, do que instrumentos que fazem cantar o coro por conta própria. É preciso nos entendermos com relação ao termo sagrado: até a adoração do bezerro de ouro era sagrada!

E o retorno ao latim?

Não podemos mudar as coisas ao nosso próprio gosto. A história vai responder, mas eu não cometeria o erro de voltar para trás: o Pai Eterno quer nos ajudar a entender, porque nos quer bem, a todos.

O problema, então, é sempre a ideia de Igreja?

Em 1950, tendo voltado da Gregoriana, comecei a ensinar história da Igreja, mas em 1955 percebeu-se a urgência de uma disciplina litúrgica, para além do rubricismo de então (como se posicionavam os dedos). Por isso, eu também ensinava liturgia. É Cristo quem batiza, é ele quem fala quando se lê a Escritura, mas não se recebe a Eucaristia se não nos sentimos irmãos. "Onde dois ou mais estiverem reunidos...". Clemente Romano escreve: "A Igreja de Deus, que é peregrina em Roma, à Igreja de Deus peregrina em Corinto". Não é menos Igreja do que a de Corinto! Não é a sujeição ao romano pontífice – segundo a infalibilidade de Pio IX –, o pertencimento à Igreja, mas sim a fidelidade a Cristo. Todas as Igrejas são primeiras e apostólicas, lá onde, juntas, comprovem a sua unidade, junto com o sucessor de Pedro. O que faltou nestes anos é a dimensão histórica. Virgílio recorre a Ambrósio para a confirmação a bispo de Trento, porque vê nele a catolicidade. Sem comunhão, fazem-se apenas guerras de religião.

O senhor sente a necessidade de um outro Concílio?

Eu diria que não. Há momentos em que não se pode perder o trem: já existe o Vaticano II a ser implementado.Guardini dizia: "Ainda somos capazes de liturgia?". Se não entendermos o que é a Igreja, acho difícil responder que sim. Ainda é preciso trabalhar.