O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

1 de outubro de 2013

“A corte é a lepra do papado”

O jornal La Repubblica, 01-10-2013, publica entrevista que o papa Francisco concedeu ao jornalista Eugenio Scalfari.Scalfari escreveu duas cartas a Bergoglio, as quais foram respondidas pelo próprio Papa, que agora aceitou o convite do jornalista, fundador e primeiro diretor do jornal La Repubblica.
A tradução é da IHU On-Line.
Eis a entrevita.
Disse-me o papa Francisco: “O mais grave dos males que afligem o mundo nestes anos é o desemprego dos jovens e a solidão em que são deixados os idosos. Os idosos necessitam de cuidado e de companhia. Os jovens precisam de trabalho e de esperança, mas não têm nenhum dos dois. Diga-me: pode-se viver jogado fora do presente? Sem memória do passado e sem desejo de projetar-se no futuro construindo um projeto, um futuro, uma família? É possível continuar assim? Isto, segundo me parece, é o problema mais urgente que a Igreja tem pela frente”.
Santidade, lhe digo, é um problema sobretudo político, diz respeito aos Estados, aos governos, aos partidos, às organizações sindicais.
Sem dúvida, o senhor tem razão, mas diz respeito à Igreja, sobretudo à Igreja, porque esta situação não fere somente os corpos, mas também as almas. A Igreja deve sentir-se responsável tanto pelas almas quanto pelos corpos.
Santidade, o senhor diz que a Igreja dever ser responsável. Devo deduzir que a Igreja não está consciente deste problema e que o senhor a incita nesta direção?
Em grande medida, existe a consciência, mas não o bastante. Eu desejo que ela seja maior. Não é somente este problema que temos pela frente, mas é o mais urgente e o mais dramático.
O encontro com o Papa ocorreu na terça-feira passada, na sua residência de Santa Marta, numa pequena sala, austera, com uma mesa e cinco ou seis cadeiras, um quadro na parede. Foi precedida por um telefonema que não mais esquecerei enquanto eu estiver vivo.
Eram duas e meia da tarde. Tocou o telefone, e a voz um pouco agitada da minha secretária me disse: “O Papa está na linha e o passo imediatamente”.
Surpreso, ouço imediatamente a voz de Sua Santidade do outro lado da linha, que diz:
“Bom dia, sou Papa Francisco.”
Bom dia, Santidade – digo, e depois – estou surpreso. Não esperava que me telefonasse.
Por que surpreso? O senhor me escreveu uma carta pedindo para me conhecer pessoalmente. Eu tinha o mesmo desejo e aqui estou para agendar o encontro. Vejamos a minha agenda: quarta-feira não posso, nem segunda-feira. O senhor pode na terça?
Respondo: “Sim, está ótimo!”
O horário é um pouco incômodo. Às 15h, pode ser? Se não puder, mudamos o dia.
Santidade, o horário está ótimo.
Então, estamos de acordo: terça-feira, 24, às 15h. Em Santa Marta. O senhor deve entrar pela porta do Santo Ofício.
Não sei como concluir este telefonema e lhe digo: posso abraçá-lo pelo telefone?
Sem dúvida, lhe abraço igualmente. Depois o faremos pessoalmente. Até logo.
Agora estou eu aqui. O Papa entra e me dá a mão. Sentamos. O Papa sorri e me diz:
Alguns dos meus colaboradores que lhe conhecem me disseram que o senhor tentará me converter.
É uma anedota e lhe respondo. Também os meus amigos pensam que o senhor quer me converter. Ele sorri e responde:
O proselitismo é uma solene besteira (una solene sciocchezza), não tem sentido. É preciso que nos conheçamos, nos escutemos e cresçamos no conhecimento do mundo que nos circunda. Acontece comigo que, depois de um encontro, tenho vontade de fazer outro, porque nascem novas ideias e se descobrem novas necessidades. Isto é importante: conhecer-se, ouvir, ampliar o horizonte dos pensamentos. O mundo é feito de estradas que nos aproximam e distanciam, mas o importante é que nos levem para o Bem.
Santidade, existe uma visão única do Bem? E quem o estabelece?
Cada um de nós tem uma visão do Bem e também do Mal. Devemos incitar a proceder para aquilo que cada um pensa que seja o Bem.
O senhor, Santidade, já o escrevera na carta que me endereçou. A consciência é autônoma, dissera, e cada um de nós deve obedecer à própria consciência. Penso que aquela seja uma das passagens mais corajosas ditas por um Papa.
E o repito. Cada um de nós tem uma ideia do Bem e do Mal e deve fazer a escolha de seguir o Bem e combater o Mal como o concebe. Isto bastaria para melhorar o mundo.
A Igreja o está fazendo?
Sim, as nossas missões têm este objetivo: individuar as necessidades materiais e imateriais das pessoas e buscar satisfazê-las da maneira como podemos. O senhor sabe o que é “ágape”?
Sim, sei.
É o amor pelos outros, como Nosso Senhor o pregou. Não é proselitismo, é amor. Amor pelo próximo, fermento que serve o bem comum.
Ama o próximo como a ti mesmo.
Exatamente assim.
Jesus na sua pregação disse que o ágape, o amor pelos outros, é o único modo de amar a Deus. Corrija-me caso esteja errado.
Não está errando. O Filho de Deus se encarnou para infundir nas almas dos homens o sentimento da fraternidade. Todos irmãos e todos filhos de Deus. Abba, como ele chamava o Pai. Eu lhes indico o caminho, dizia. Segui e encontrareis o Pai e sereis todos seus filhos e Ele terá a sua complacência em vocês.
O ágape, o amor de cada um de nós por todos os outros, do mais próximo aos mais longínquos, é, precisamente, o único modo que Jesus indicou para encontrar o caminho da salvação e das bem-aventuranças.
Contudo, a exortação de Jesus, recordamos anteriormente, é que o amor pelo próximo é igual ao que temos a nós mesmos. Portanto, o que muitos chamam de narcisismo é reconhecido como válido, positivo, na mesma medida do outro. Discutimos longamente a este respeito.
A mim – dizia o Papa – a palavra narcisismo não agrada, indica um amor desfocado para si mesmo e isto não é bom, pois pode produzir graves problemas não somente para a alma de quem é afetado, mas também na relação com os outros, com a sociedade em que vive. O verdadeiro problema é que os mais atingidos por isto, que na realidade é uma espécie de distúrbio mental, são pessoas que têm muito poder. Muitas vezes os chefes  (“i Capi”, no original) são narcísicos.
Também muitos chefes da Igreja foram narcísicos.
Sabe o que penso sobre isto? Os chefes da Igreja muitas vezes foram narcísicos e excitados pelos seus cortesãos. A corte é a lepra do papado.
A lepra do papado. O senhor falou precisamente assim. Mas que corte? O senhor alude, por acaso, à Cúria?, perguntei.
Não, na Cúria há, às vezes, cortesãos. Mas a Cúria na sua complexidade é uma outra coisa. É a que nos exércitos se chama de intendência, gere os serviços que servem a Santa Sé. Mas tem um defeito: é Vaticano-cêntrica. Vê e cuida dos interesses do Vaticano, que são ainda, em grande parte, interesses temporais. Esta visão Vaticano-cêntrica descuida do mundo que nos circunda. Não compartilho com esta visão e farei tudo para mudá-la. A Igreja é e deve voltar a ser uma comunidade do povo de Deus, e os presbíteros, os párocos, os bispos estão a serviço do povo de Deus. A Igreja é isto, uma palavra, não por acaso, diferente da Santa Sé, que tem uma função importante, mas está a serviço da Igreja. Eu não teria a fé plena em Deus e no seu Filho se não fosse formado na Igreja e tive a sorte de me encontrar, na Argentina, numa comunidade sem a qual não teria consciência de mim e da minha fé.
O senhor percebeu a sua vocação desde jovem?
Não, não muito jovem. Tive que trabalhar, ganhar algum salário. Fiz a universidade. Tive uma professora que aprendi a respeitar e se tornou minha amiga, era uma fervorosa comunista. Muitas vezes lia para mim e me dava para ler textos do Partido Comunista. Assim conheci também aquela concepção muito materialista. Recordo que me fez ver o comunicado dos comunistas americanos em defesa de Rosenberg, que foram condenados à morte. A mulher de que estou falando foi presa, torturada e morta pelo regime ditatorial da Argentina.
O comunismo o seduziu?
O seu materialismo não me seduziu. Mas conhecê-lo por meio de uma pessoa corajosa e honesta me foi útil. Compreendi algumas coisas, um aspecto social, que depois encontrei na doutrina social da Igreja.
A teologia da libertação, que o papa Wojtyla excomungou, era bastante presente na América Latina.
Sim, muitos dos seus expoentes eram argentinos.
O senhor acha que foi certo que o Papa os combatesse?
Sim, porque davam um seguimento político à teologia. Mas muitos deles eram crentes e com um alto conceito de humanidade.
Santidade, permita-me que lhe diga algo da minha formação cultural? Fui educado por uma mãe muito católica. Aos 12 anos venci uma disputa de alunos de catequese feita entre várias paróquias de Roma e ganhei um prêmio do Vicariato. Comungava sempre nas primeiras sextas-feiras, enfim, praticava a liturgia e acreditava. Mas tudo mudou quando entrei no liceu. Li, entre outros textos de filosofia que estudávamos, o “Discurso do Método” de Descartes e fiquei impressionado pela frase, que se tornou icônica, “Penso, logo existo”. O ‘eu’ tornou-se, assim, a base da existência humana, a sede autônoma do pensamento.
Descartes, no entanto, nunca negou a fé do Deus transcendente.
É verdade, mas tinha posto o fundamento de uma visão totalmente diferente e me encaminhou depois, corroborado por muitas outras leituras, e me levou à outra margem.
O senhor, no entanto, se entendi bem, é não crente mas não um anticlerical. São duas coisas muito diferentes.
É verdade, não sou anticlerical, mas me torno quando encontro um clerical.
O Papa sorri e me diz:
Também me acontece isto. Quando encontro um clerical, me torno anticlerical de vez. O clericalismo não deveria ter nada a ver com o cristianismo. São Paulo, que foi o primeiro a falar aos Gentios, aos pagãos, aos crentes em outras religiões, foi o primeiro a nos ensinar isto.
Posso lhe pedir, Santidade, quais são os santos que estão mais próximos da sua alma e quais lhe ajudaram a formar a experiência religiosa?
São Paulo é aquele que me colocou os eixos da nossa religião e do nosso credo. Não se pode ser cristão consciente sem São Paulo. Traduziu a pregação de Cristo numa estrutura doutrinária que, apesar dos aggiornamentos de uma imensa quantidade de pensadores, de teólogos, de pastores de almas, resistiu e resiste depois de dois mil anos. E depois Agostinho, Bento e Tomás e Inácio. E, naturalmente, Francisco. Devo lhe explicar por quê?
Francisco – seja-me permitido, a esta altura, chamá-lo assim, porque é ele mesmo que o sugere pelo que fala, sorri, por suas exclamações de surpresa ou de partilha, me olha como que me encorajando a lhe fazer perguntas mais escabrosas e mais complicadas para quem guia a Igreja. Assim, lhe pergunto: De Paulo explicou a importância e o seu papel, mas gostaria de saber quais foram, entre os que foram citados, os que sente mais próximos da sua alma?
O senhor me pede uma classificação, mas estas podem ser feitas se falamos de esporte ou de coisas análogas. Poderei lhe citar os melhores jogadores de futebol da Argentina. Mas os santos...
Mas não quero evadir a sua pergunta. O senhor não me pediu uma classificação sobre a importância cultural e religiosa, mas quais santos estiveram mais próximos da minha alma. Então lhe digo: Agostinho e Francisco.
E não Inácio, ordem a qual o senhor pertence?
Inácio, por razões compreensíveis, é aquele que conheço mais do que os outros. Fundou a nossa Ordem. Recordo-lhe que desta Ordem também era Carlo Maria Martini, que me é muito caro assim como ao senhor. Os jesuítas foram e ainda são o fermento – não os únicos mas, talvez, os mais eficazes – da catolicidade; cultura, ensino, testemunho missionário, fidelidade ao Pontífice. Mas Inácio fundou a Companhia, era também um reformador e um místico. Sobretudo um místico.
E o senhor acha que os místicos são importantes para a Igreja?
Foram fundamentais. Uma religião sem místicos é uma filosofia.
O senhor tem uma vocação mística?
O que o senhor acha?
Parece-me que não.
Provavelmente, o senhor tem razão. Adoro os místicos. Também Francisco, por muitos aspectos da sua vida, foi místico, mas eu não acredito que tenho esta vocação. Mas é preciso que nos entendamos sobre o significado profundo desta palavra. O místico consegue despojar-se do fazer, dos fatos, dos objetivos e até da pastoralidade missionária e se eleva até atingir a comunhão com as Bem-aventuranças. São momentos breves, mas que preenchem a vida inteira.
Para o senhor isto nunca aconteceu?
Raramente. Por exemplo, quando o Conclave me elegeu Papa. Antes da aceitação, pedi para me retirar por alguns instantes no quarto que fica ao lado do balcão sobre a praça. A minha cabeça estava completamente vazia e uma grande ânsia me invadira. Para fazê-la passar e me relaxar, fechei os olhos e todo e qualquer pensamento desapareceu. Também aquele de recusar o encargo, como o resto do procedimento litúrgico seguinte. Fechei os olhos e não mais tive nenhuma ânsia ou emotividade. A um certo ponto, uma grande luz me invadiu. Durou um instante, mas me pareceu algo longuíssimo. Depois a luz se dissipou. Levantei-me e me dirigi até a sala em que me esperavam os cardeais e a mesa sobre a qual estava o ato de aceitação. Assinei-o, o cardeal camerlengo o assinou, e depois foi o momento do “Habemus Papam”.
Permanecemos alguns momentos em silêncio e depois disse: falávamos dos santos que o senhor sente mais próximos da sua alma e ficamos em Agostinho. Pode me dizer por que o sente mais próximo de si?
Também o meu predecessor tem em Agostinho o seu ponto de referência. Esse santo passou por muitos eventos na sua vida e mudou várias vezes a sua posição doutrinária. Teve também palavras muito duras no confronto com os hebreus, que eu nunca compartilhei. Escreveu muitos livros, e aquele que me parece mais revelador da sua intimidade intelectual e espiritual é “Confissões”. Elas contêm algumas manifestações de misticismo, mas ele não é, como muitos sustentam, o continuador de Paulo. Ele vê a Igreja e a fé no mundo de uma maneira profundamente diferente de Paulo, talvez porque quatro séculos os separam.
Qual é a diferença, Santidade?
Para mim, em dois aspectos substanciais. Agostinho se sente impotente de fronte à imensidade de Deus e às tarefas que um cristão e um bispo deveriam realizar. No entanto, ele não foi impotente, mas na sua alma se sentia sempre como estando abaixo do que deveria e queria fazer. E depois da graça dispensada pelo Senhor como elemento fundante da fé. Da vida. Do sentido da vida. Quem não é tocado pela graça pode ser uma pessoa sem mácula e sem medo, mas não será nunca uma pessoa tocada pela graça. Esta é a intuição de Agostinho.
O senhor se sente tocado pela graça?
Isto não se pode saber. A graça faz parte da consciência, é a quantidade de luz que temos na alma, não de sabedoria nem de razão. Também o senhor, sem o saber, poderia estar tocado pela graça.
Sem fé? Não crente?
A graça diz respeito à alma.
Eu não creio em alma.
Não crê, mas tem.
Santidade, o senhor dissera que não tinha nenhuma intenção em me converter e creio que não conseguiria.
Isto não se sabe; contudo, não tenho nenhuma intenção em lhe converter.
E Francisco?
É grandíssimo porque é tudo. Homem que quer fazer, quer construir, funda uma Ordem e as suas regras, é itinerante e missionário, é poeta e profeta, é místico. Constatou nele mesmo o mal e o superou. Ama a natureza, os animais, a erva do campo e os pássaros que voam no céu, mas sobretudo ama as pessoas, as crianças, os velhos, as mulheres. É o exemplo mais luminoso daquele ágape de que falávamos antes.
O senhor tem razão, Santidade. A descrição é perfeita. Mas por que nenhum dos seus predecessores escolheu o nome de Francisco? E, segundo me parece, nenhum outro o escolherá depois do senhor.
Isto não sabemos. Não hipotequemos o futuro. É verdade, antes nenhum o escolheu. Aqui afrontamos o problema dos problemas. O senhor quer beber algo?
Obrigado, talvez um copo d'água.
O Papa se levanta, abre a porta e pede a um colaborador que estava entrando que lhe traga dois copos de água. Pede se eu quero um café. Digo que não é preciso. Chega a água. No fim da nossa conversação o meu copo está vazio, mas o dele permaneceu cheio. Molha a gargante e começa.
Francisco queria uma Ordem mendicante e também itinerante. Missionários em busca de encontrar, escutar, dialogar, ajudar, difundir a fé e o amor. Sobretudo o amor. E mirava uma Igreja pobre que assumisse o cuidado dos outros, recebesse ajuda material e a utilizasse para sustentar os outros, com nenhuma preocupação consigo mesma. Passaram 800 anos desde então, e os tempos mudaram muito, mas o ideal de uma Igreja missionária e pobre permanece mais do que válida. Esta é a Igreja que foi pregada por Jesus e pelos seus discípulos.
Vocês cristãos são, atualmente, uma minoria. Até na Itália, que era definida como o jardim do Papa, os católicos praticantes seriam, segundo algumas sondagens, entre 8 e 15%. Os católicos que dizem sê-lo mas que são de fato, são poucos, uns 20%. No mundo existe um bilhão de católicos, e também com as outras Igrejas cristãs, vocês superam um bilhão e meio. Mas o planeta é habitado por 6 a 7 bilhões de pessoas. Vocês são, é certo, muitos, especialmente na África e na América Latina, mas minorias.
Sempre fomos minoria, mas o tema, hoje, não é este. Pessoalmente penso que ser uma minoria pode ser uma força. Devemos ser uma semente de vida e de amor, e a semente é uma quantidade infinitamente menor da massa dos frutos, das flores e das árvores que nascem da semente. Parece-me que já disse que o nosso objetivo não é o proselitismo, mas a escuta das necessidades, dos desejos, das desilusões, do desespero, da esperança. Devemos voltar a dar esperança aos jovens, ajudar os idosos, abrir para o futuro, difundir o amor. Pobres entre os pobres. Devemos incluir os excluídos e pregar a paz. O Vaticano II, inspirado pelo papa João e por Paulo VI, decidiu olhar para o futuro com espírito moderno e abrir-se à cultura moderna. Os padres conciliares sabiam que abrir-se à cultura moderna significava ecumenismo religioso e diálogo com os não-crentes. Desde então foi feito muito pouco nesta direção. Tenho a humildade e a ambição de querer fazê-lo.
Também porque - me permito acrescentar - a sociedade moderna em todo o planeta atravessa um momento de crise profunda, e não somente econômica, mas social e espiritual. O senhor, no início deste nosso encontro, descreveu uma geração excluída do presente. Também nós, não-crentes, sentimos este sofrimento quase antropológico. Por isto queremos dialogar com os crentes e com quem melhor os representa.
Eu não sei se sou o melhor representante, mas a Providência me colocou como guia da Igreja e da Diocese de Pedro. Farei o que for possível para cumprir o mandato que me foi confiado.
Jesus, como o senhor recordou, disse: ama o teu próximo como a ti mesmo. Parece-lhe que isto aconteceu?
Não. O egoísmo aumentou e o amor aos outros diminuiu.
Este, então, é o objetivo que nos une: ao menos intensificar estes dois tipos de amor. A sua Igreja está pronta e preparada para esta tarefa?
O senhor, o que pensa?
Penso que o amor pelo poder temporal seja ainda muito forte entre os muros do Vaticano e na estrutura institucional de toda a Igreja. Penso que a Instituição predomina sobre a Igreja pobre e missionária que o senhor desejaria.
Realmente, as coisas estão assim e nesta matéria não se fazem milagres. Recordo-lhe que também Francisco, no seu tempo, teve que negociar com a hierarquia romana e com o Papa para que as regras da sua Ordem fossem reconhecidas. No fim obteve a aprovação, mas com profundas mudanças e compromissos.
O senhor seguirá o mesmo caminho?
Certamente não sou Francisco de Assis, e não tenho a sua força e a sua santidade. Mas sou o Bispo de Roma e o Papa da catolicidade. Como primeira coisa, decidi nomear um grupo de oito cardeais para que sejam o meu conselho. Não cortesãos, mas pessoas sábias e animadas pelos mesmos sentimentos.

Entrevista polêmica do Papa Francisco ao Jornal La Republica

Entrevista polêmica  do Papa Francisco ao Jornal La Republica
(tradução de um site tradicionalista)



Leia a íntegra aqui.
Entrevista concedida pelo Papa Francisco ao diretor do jornal La Repubblica, Eugenio Scalfari — a quem o bispo de Roma dirigiu uma carta recentemente. O Papa sobre a aplicação do Vaticano II: “Muito pouco foi feito”. Scalfari: “Este é o Papa Francisco. Se a Igreja se tornar como ele e ficar do jeito que ele quer que ela seja, será uma mudança de época”.

O Papa: como a Igreja mudará *

Por Eugenio Scalfari - La Repubblica | - O Papa Francisco me disse: “Os maiores males que afligem o mundo nestes dias são o desemprego dos jovens e a solidão dos idosos. Os idosos precisam de cuidado e companhia; os jovens precisam de trabalho e esperança, mas não tem um nem outro, e o problema é que eles sequer os buscam mais. Eles foram esmagados pelo presente. Você me diz: é possível viver esmagado sob o peso do presente? Sem uma memória do passado e sem o desejo de olhar adiante para o futuro para construir algo, um futuro, uma família? Você consegue ir adiante assim? Este, para mim, é o problema mais urgente que a Igreja enfrenta”
Santidade, digo, trata-se de um principalmente de um problema econômico e político para os estados, governos, partidos políticos, sindicatos.
“Sim, você tem razão, mas também preocupa a Igreja, de fato, particularmente a Igreja, porque essa situação não fere apenas os corpos, mas também as almas. A Igreja deve se sentir responsável tanto por corpos como almas”.
Santidade, o senhor diz que a Igreja deve se sentir responsável. Devo concluir que a Igreja não está ciente desse problema e que o senhor a conduzirá nessa direção? 
“Em grande parte há ciência, mas não suficientemente. Quero que haja mais. Não é o único problema que enfrentamos, mas é o mais urgente e mais dramático”.

O encontro o Papa ocorreu na última terça-feira, na sua residência em Santa Marta, em um quarto pequeno e simples, com uma mesa, cinco ou seis cadeiras e um quadro na parede. Ele foi precedido por um telefonema que não esquecerei por toda a minha vida.
Eram duas e meia da tarde. Meu telefone tocou e com uma voz um tanto abalada minha secretária me diz: “O Papa está na linha. Transferirei imediatamente”.
Eu ainda estava chocado quando ouvi a voz de Sua Santidade do outro lado da linha dizendo: “Olá, é o Papa Francisco”. “Olá Santidade”, disse então, “Estou chocado, não esperava que o senhor pudesse me telefonar”. “Por que está tão surpreso? Você me escreveu uma carta pedindo para me encontrar pessoalmente. Tenho o mesmo desejo, então estou ligando para marcar um horário. Deixe-me ver em minha agenda: não posso na quarta-feira, nem segunda, na terça está bom para você?”
Eu respondi que estava bem.
“O horário é um pouco complicado, três da tarde, ok? De outra forma, terá que ficar para outro dia”. Santidade, o horário está bom. “Então combinamos: terça, 24, às três da tarde. Na Santa Marta. Você tem que vir até a porta do Sant’Uffizio”.
Eu não sabia como terminar o telefonema e me deixei levar, dizendo: “Posso abraçá-lo por telefone?” “Claro, um abraço meu também. Depois fazemos isso pessoalmente, tchau”.
E aqui estou. O Papa chega, aperta minha mão e então sentamos. O Papa sorri e diz: “Alguns dos meus colegas que o conhecem disseram que você tentaria me converter”.
É uma piada, respondo. Meus amigos acham que você é quem quer me converter.
Ele sorri e responde: “O proselitismo é uma solene tolice [nonsense], não tem sentido. Nós temos que conhecer um ao outro, ouvir um ao outro e melhorar o nosso conhecimento do mundo ao nosso redor. Às vezes, após um encontro, desejo marcar outro porque novas idéias surgem e descubro novas necessidade. Isso é importante: conhecer as pessoas, ouvir, expandir nosso círculo de idéias. O mundo é cruzado por vias que se aproximam e se separam, mas o importante é que elas levem ao Bem”.
Santidade, existe uma visão de Bem única? E quem decide qual é ela? 
“Cada um de nós tem uma visão do bem e do mal. Temos que encorajar as pessoas a caminhar em direção ao que elas consideram ser o Bem”.
Santidade, o senhor escreveu isso em sua carta para mim. A consciência é autônoma, o senhor disse, e todos devem obedecer a sua consciência. Creio que este seja um dos passos mais corajosos dados por um Papa. 
“E repito aqui: Cada um tem sua própria idéia de bem e mal e deve escolher seguir o bem e combater o mal como concebe. Isso bastaria para fazer o mundo um lugar melhor”.
A Igreja está fazendo isso?
“Sim, esse é o propósito de nossa missão: identificar as necessidades materiais e imateriais do povo e tentar ir ao encontro delas conforme pudermos. Você sabe o que é agape?
Sim, eu sei.
“É o amor pelos outros, como Nosso Senhor pregou. Não é fazer proselitismo, é amar. Amar o próximo, aquele fermento que serve ao bem comum”.
Amar o próximo como a si mesmo.
“Exatamente”.
Jesus, na sua pregação, disse que agape, amor pelos outros, é o único caminho para Deus. Corrija-me se eu estiver errado.
“Você não está errado. O Filho de Deus se encarnou para instilar nas almas dos homens o sentimento de fraternidade. Todos somos irmãos e todos somos filhos de Deus. Abba, como ele chamou o Pai. Mostrarei o caminho, ele disse. Siga-me e encontrará o Pai e será seu filho e ele se compadecerá de ti. Agape, o amor de cada um de nós pelo outro, do mais próximo ao mais distante, é, de fato, o único caminho que Jesus nos deu para encontrar o caminho da salvação e das Beatitudes”.
No entanto, como dissemos, a exortação de Jesus é que o amor ao próximo seja igual ao que temos por nós mesmos. Mas o que muitos chamam narcisismo é reconhecido como válido, positivo, na mesma medida do outro. Nós falamos muito sobre esse aspecto.
“Não gosto da palavra narcisismo”, diz o Papa. “Ela indica um amor excessivo por si mesmo e isso não é bom, pode produzir sérios danos não só à alma do que dele sofre, mas também no relacionamento com outros, com a sociedade na qual se vive. O verdadeiro problema é que aqueles mais afetados por isso — que é, na realidade, um tipo de desordem mental — são pessoas que têm muito poder. Normalmente os chefes são narcisistas”.
Muitos líderes na Igreja o foram.
“Sabe o que penso disso? Os líderes na Igreja frequentemente foram narcisistas, bajulados e negativamente influenciados por seus cortesãos. A corte é a lepra do Papado”.
A lepra do papado, estas foram exatamente as suas palavras. Mas o que é a corte? Talvez esteja se referindo à cúria?
“Não, há por vezes cortesãos na cúria, mas a cúria enquanto tal é outra coisa. É o que no exército se chama de intendência, ela administra os serviços que servem à Santa Sé. Mas ela tem um defeito: éVaticanocêntrica. Ela vê e cuida dos interesses do Vaticano, que são ainda, na maior parte, interesses temporais. Essa visão Vaticanocêntrica negligencia o mundo ao nosso redor. Não compartilho dessa visão e farei tudo o que eu puder para mudá-la. A Igreja é ou deve voltar a ser uma comunidade do povo de Deus e os padres, párocos e bispos que têm a cura das almas, estão a serviço do povo de Deus. A Igreja é isso, uma palavra não por acaso diferente da Santa Sé, que tem a sua própria função, importante, mas a serviço da Igreja. Eu não teria condições de ter total fé em Deus e em seu Filho se eu não tivesse sido formado na Igreja, e se eu não tivesse tido a felicidade de me encontrar na Igreja, em uma comunidade sem a qual não teria tomado consciência de mim mesmo e de minha fé”.
O senhor ouviu o seu chamado na juventude?
“Não,  não muito jovem. Minha família quis que eu tivesse uma profissão diferente, que trabalhasse e ganhasse dinheiro. Fui para a universidade. Também tive uma professora por quem tive muito respeito e desenvolvi amizade, e que era um comunista fervorosa. Ela sempre lia textos do Partido Comunista para mim e me dava para ler. Então, também cheguei a conhecer aquela concepção muito materialista. Recordo-me que ela também me deu a declaração dos Comunistas Americanos em defesa dos Rosenbergs, que foram sentenciados à morte. A mulher de quem estou falando foi por fim presa, torturada e morta pela ditadura que então governava a Argentina”.
O senhor foi seduzido pelo comunismo?
“O materialismo dela nunca me convenceu. Mas aprender sobre isso por uma pessoa corajosa e honesta foi útil. Descobri algumas coisas, um aspecto do social, que então encontrei na doutrina social da Igreja”.
A teologia da libertação, que o Papa João Paulo II excomungou, era muito presente na América Latina.
“Sim, muitos de seus membros eram argentinos”.
Acredita ter sido justo que o Papa os combatesse?
“Eles certamente deram um aspecto político à sua teologia, mas muitos deles eram crentes e com um alto conceito de humanidade”
Santidade, posso lhe contar algo sobre minha própria formação cultural? Fui criado por uma mãe muito católica. Aos 12 anos, venci um concurso de catecismo realizado por todas as paróquias em Roma e recebi um prêmio do vicariato. Recebi a comunhão nas primeiras sextas-feiras de cada mês, noutras palavras, fui um católico praticante e um verdadeiro crente. Mas tudo isso mudou quando entrei na universidade. Eu li, entre outros textos filosóficos que estudávamos, o “Discurso sobre o Método” de Descartes, e fui golpeado pela frase, que agora se tornou um ícone, “Penso, logo existo”. O indivíduo, assim, se torna a base da existência humana, a sede autônoma do pensamento.
“Descartes, todavia, nunca negou a fé em um Deus transcendente”.
Isso é verdade, mas ele assentou os alicerces para uma visão muito diferente e acontece que eu sigo esse caminho, que mais tarde, com o apoio de outras coisas que li, me deixaram em um lugar muito diferente.
“Entretanto, você não é crente, mas também não é anticlerical. Essas são duas coisas muito distintas.”
Verdade, não sou anticlerical, mas me torno anticlerical quando encontro clericalistas.
Ele sorri e diz, “também acontece comigo quando encontro um clericalista, de repente, me torno anticlerical. O clericalismo não deveria ter qualquer coisa a ver com o cristianismo. São Paulo, que foi o primeiro a falar aos gentios, os pagãos, crentes em outras religiões, foi o primeiro a nos ensinar isso.”
Posso perguntar a Sua Santidade de que santos o senhor se sente mais próximo em sua alma, aqueles que modelaram a sua experiência religiosa?
“São Paulo é um que colocou as pedras fundamentais de nossa religião e nosso credo. Você não pode ser um cristão consciente sem São Paulo. Ele traduziu os ensinamentos de Cristo em uma estrutura doutrinal que, mesmo com os acréscimos de um grande número de pensadores, teólogos e pastores, resistiu e ainda existe após dois mil anos. Em seguida, há Agostinho, Bento, Tomás e Inácio. Naturalmente, Francisco. Preciso explicar o porquê?”
Francisco  -  Permito-me chamá-lo assim porque é o próprio Papa que dá a entender pela maneira como ele fala, o modo como sorri, com as suas exclamações de surpresa e compreensão – olha para mim como para me encorajar a fazer perguntas que são até mais escandalosas e constrangedoras para aqueles que conduzem a Igreja. Assim eu lhe pergunto: o senhor explicou a importância de Paulo e o papel que ele desempenhou, mas eu quero saber quais desses que o senhor mencionou é mais próximo de sua alma?
“Você está me pedindo para fazer um ranking, mas classificações servem para esportes ou coisas assim. Eu poderia lhe dizer o nome dos melhores jogadores da Argentina. Mas os santos…”
Brinque com os soldados, se quiser, mas deixe tranquilo os santos, o senhor conhece o ditado?
“Exatamente. Mas eu não estou tentando evitar a sua pergunta, porque você não me pediu para classificar a sua importância cultural e religiosa, mas quem é mais próximo da minha alma. Assim eu diria: Agostinho e Francisco.”
Não Inácio, de cuja ordem o senhor procede?
“Inácio, por motivos compreensíveis, é o santo que conheço melhor do que quaisquer outros. Ele fundou a nossa Ordem. Gostaria de recordar-lhe que Carlo Maria Martini também veio dessa ordem, alguém que me é muito caro e também a você. Os jesuítas foram e ainda são o fermento  -  não apenas um, mas talvez o mais eficaz -  do catolicismo: cultura, ensinamento, trabalho missionário, lealdade ao Papa. Mas Inácio que fundou a Companhia, também foi um reformador e um místico. Especialmente um místico.”
E o senhor acha que os místicos têm sido importantes para a Igreja?
“Eles são fundamentais. Uma religião sem místicos é uma filosofia.”
O senhor tem uma vocação mística? “O que o senhor acha?”
Acho que não. “Provavelmente, você está certo. Amo os místicos; Francisco também o foi em muitos aspectos de sua vida, mas não acho que tenho vocação e então precisamos entender o significado profundo dessa palavra. O místico consegue desvencilhar-se de ação, fatos, objetivos e até mesmo missão pastoral e ascende até atingir a comunhão com as Beatitudes. Breves momentos, mas que preenchem toda uma vida.”
Alguma vez isso já aconteceu com o senhor? “Raramente. Por exemplo, quando o conclave me elegeu Papa. Antes de aceitar perguntei se eu poderia passar alguns minutos na sala contígua àquela com um balcão que dá para a praça. Minha cabeça estava completamente vazia e fui tomado de uma grande ansiedade. Para conseguir relaxar fechei meus olhos e fiz todos os pensamentos desaparecerem, mesmo os pensamentos de recusar aceitar o cargo, conforme permitido pelo procedimento litúrgico. Fechei meus olhos e não tive mais ansiedade ou emoção. Em dado momento fiquei repleto de uma grande luz. Isso durou um minuto, mas para mim pareceu muito longo. Então, a luz esmaeceu, levantei-me subitamente e caminhei na sala onde os cardeais estavam aguardando e a mesa onde estava o ato de aceitação. Assinei o documento, o Cardeal Camerlengo contra-assinou e em seguida no balcão deu-se o ‘“Habemus Papam”.
Ficamos em silêncio por um momento, então eu disse: estávamos falando sobre os santos que o senhor sente mais próximos de sua alma e ficamos com Agostinho. O senhor vai me dizer porque o senhor sente muito próximo dele? “Mesmo para o meu predecessor, Agostinho é um ponto de referência. Esse santo passou por muitas vicissitudes em sua vida e mudou sua posição doutrinal várias vezes. Ele também tinha palavras ásperas para os judeus, com as quais nunca partilhei. Ele escreveu muitos livros e creio que o que mais revela a sua intimidade intelectual e espiritual são as “Confissões”, que também contêm algumas manifestações de misticismo, mas ele não é, como muitos argumentariam, uma continuação de Paulo. Sem dúvida, ele vê a Igreja e a fé de muitas maneiras diferentes de Paulo, talvez porque quatro séculos passaram entre um e outro. “Qual é a diferença, Sua Santidade?” Para mim ela reside em dois aspectos substanciais. Agostinho se sente impotente diante da imensidão de Deus e as tarefas que um cristão e bispo tem de cumprir. Na verdade, ele não foi impotente de modo algum, mas sentia que sua alma estava sempre menor do que ele queria e precisava que ela fosse. E então a graça dispensada pelo Senhor como elemento básico da fé. Da vida. Do sentido da vida. Alguém  que não é tocado pela graça pode ser uma pessoa sem mancha e sem medo, como dizem, mas ela nunca será como uma pessoa que tocou a graça. Esse é o insight de Agostinho.”
O senhor se sente tocado pela graça? “Ninguém pode saber isso. A Graça não é parte de nossa consciência, ela é a quantidade de luz em nossas almas, não de conhecimento ou de razão. Mesmo o senhor, sem o saber, poderia ser tocado pela graça.”
Sem fé? Um não crente? “A Graça diz respeito à alma.”
Não acredito na alma. “Você não acredita na alma, mas você tem uma.”
Sua Santidade, o senhor disse que não tem a intenção de tentar me converter e não acho que o senhor conseguiria. “Não podemos saber isso, mas eu não tenho qualquer tal intenção.”
E Francisco? “Ele é grande porque ele é tudo. Ele é um homem que quer fazer as coisas, quer construir, ele fundou uma ordem e as suas regras, ele é um itinerante e um missionário, um poeta e um profeta, ele é um místico. Ele encontrou o mal em si e o extirpou. Ele ama a natureza, os animais, a folha de grama no gramado e os pássaros voando no céu. Mas acima de tudo, ele amava as pessoas, as crianças, os idosos, as mulheres. Ele é o exemplo mais brilhante daquele ágape de que falamos anteriormente.”
Sua Santidade está certa, a descrição é perfeita. Mas porque nenhum de seus predecessores jamais escolheu esse nome? E creio que depois do senhor ninguém mais o escolherá.
“Não sabemos disso, não especulemos sobre o futuro. É verdade, ninguém o escolheu antes de mim. Aqui nos deparamos com o problema dos problemas. O senhor gostaria de beber alguma coisa?”
Obrigado, talvez um copo d’água.
Ele se levanta, abre a porta e pede a alguém na entrada para trazer dois copos d’água. Ele me pergunta se quero um café, digo que não. O garçom chega. Ao final de nossa conversa, meu copo d’água estará vazio, mas o dele permanece cheio. Ele pigarreia e começa.
“Francisco queria uma ordem mendicante e uma itinerante. Os missionários que queriam encontrar, ouvir, conversar, ajudar, espalhar a fé e o amor. Especialmente o amor. E ele sonhava com uma Igreja pobre que cuidaria dos outros, receberia ajuda material e a usaria para apoiar os outros, sem preocupação consigo. Oitocentos anos passaram desde então e os tempos mudaram, mas o ideal de uma Igreja missionária, pobre ainda é mais do que válido. Essa ainda é a Igreja que Jesus e seus discípulos pregaram.”
Vocês cristãos agora são uma minoria. Mesmo na Itália que é conhecida como o quintal do papa. Os católicos praticantes, de acordo com algumas pesquisas, estão em torno de 8 a 15 por cento. Aqueles que se dizem católicos, mas, na verdade, não são muito, estão em torno de 20%. No mundo, há um bilhão de católicos ou mais, e com outras igrejas cristãs há mais de um bilhão e meio, mas a população do planeta é 6 ou 7 bilhões de pessoas. Certamente há muitos de vocês, especialmente na África e América Latina, mas vocês são uma minoria.
“Sempre fomos, mas a questão hoje em dia não é essa. Pessoalmente, creio que ser uma minoria é realmente um ponto forte. Temos que se um fermento de vida e amor, e o fermento é infinitamente menor do que uma massa de frutas, flores e das árvores que nascem delas. Creio já ter dito que a nossa meta não é fazer proselitismo, mas ouvir às necessidades, desejos e desilusões, desespero, esperança. Precisamos restaurar a esperança dos jovens, auxiliar os idosos, estarmos abertos para o futuro, espalharmos o amor. Sermos pobres dentre os pobres. Precisamos incluir os excluídos e pegar a paz. O Vaticano II, inspirado pelo Papa Paulo VI e João, decidiu olhar para o futuro com um espírito moderno e abrir-se para a cultura moderna. O Padres Conciliares sabiam que abrir-se para a cultura moderna significava ecumenismo religioso e diálogo com não crentes. Mas posteriormente muito pouco foi feito nessa direção. Tenho a humildade e ambição de querer fazer alguma coisa.”
Também porque – permito-me acrescentar – a sociedade moderna ao redor do mundo está passando por um período de crise profunda, não somente econômica, mas também social e espiritual. No início de nosso encontro, o senhor descreveu uma geração esmagada sob o peso do presente. Mesmo nós, não crentes, sentimos esse peso quase antropológico. Essa é a razão pela qual queremos dialogar com os crentes e com aqueles que melhor os representam.
“Não sei se sou o melhor daqueles que os representam, mas a providência me colocou à frente da Igreja e da Diocese de Pedro. Farei o que puder para cumprir o mandato que me foi confiado.”
Jesus, conforme o senhor salientou, disse: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. O senhor acha que isso aconteceu?

“Infelizmente, não. O egoísmo aumentou e o amor em direção aos outros diminuiu.”
Assim, esse é o objetivo que temos em comum: Pelo menos para equalizar a intensidade desses dois tipo de amor. A sua Igreja está pronta e equipada para conduzir essa tarefa?
“O que você acha?”
Creio que o amor pelo poder temporal ainda é muito forte dentro dos Muros do  Vaticano e na estrutura institucional de toda a Igreja. Penso que a instituição domina a Igreja pobre e missionária que o senhor gostaria.
“De fato, as coisas são assim, e nessa área você não pode fazer milagres. Deixe-me recordar que mesmo Francisco em sua época teve longas negociações com a hierarquia romana e o Papa para que as regras de sua ordem fossem reconhecidas. Eventualmente ele obteve a aprovação, mas com mudanças e compromissos profundos”
O senhor terá de seguir o mesmo caminho?
“Não sou Francisco de Assis e não tenho a sua força e sua santidade. Mas sou o Bispo de Roma e Papa do mundo católico. A primeira coisa que decidi foi nomear um grupo de oito cardeais para serem meus conselheiros. Não cortesãos, mas pessoas sábias que partilham de meus próprios sentimentos. Esse é o início de uma Igreja com uma organização que não é apenas do alto para baixo, mas também horizontal. Quando o Cardeal Martini falou sobre enfocar nos concílios e sínodos, ele sabia do tempo e da dificuldade que implicaria caminhar nessa direção. Gentilmente, mas de maneira firme e tenaz.”
E a política?
“Por que você faz essa pergunta? Já disse que a Igreja não lidará com política.”
Mas há apenas alguns dias o senhor apelou aos católicos para se engajarem civil e politicamente.
“Não estava tratando apenas dos católicos, mas de todos os homens de boa vontade. Digo que a política é a mais importante das atividades civis e tem o seu próprio campo de ação, que não é o da religião. As instituições políticas são laicas por definição e operam em esferas independentes. Todos os meus predecessores têm dito a mesma coisa, por muitos anos ao menos, embora com acentos diferentes. Creio que os católicos envolvidos em política trazem os valores de sua religião dentro de si, mas têm a consciência madura e a experiência para implementá-las. A Igreja nunca irá além de sua tarefa de expressar e disseminar os seus valores, ao menos, pelo tempo que eu esteja aqui.”
Mas isso nem sempre aconteceu com a Igreja.
“Nem sempre aconteceu assim. Com frequência a Igreja como instituição foi dominada pela temporalidade e muitos membros e líderes católicos maiores ainda pensam assim. Mas agora deixe-me fazer-lhe uma pergunta: Você, um ateu que não acredita em Deus, em que você acredita? Você é um escritor e um homem de pensamento. Você acredita em alguma coisa, você deve ter um valor dominante. Não me responda com palavras como honestidade, busca, a visão do bem comum, todos princípios e valores importantes, não é isso que estou perguntando. Estou perguntando o que você considera ser a essência do mundo, sem dúvida, do universo. Você deve se perguntar, é claro, como todo mundo, quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Mesmo as crianças fazem essas perguntas a si mesmas. E você?”
Agradeço essa pergunta. A resposta é esta: Acredito no Ser, que está no tecido do qual surgem as formas e o corpos.
“E eu creio em Deus, mas não em um Deus Católico, não há Deus Católico, há Deus e creio em Jesus Cristo, sua encarnação. Jesus é o meu mestre e meu pastor, mas Deus, o Pai, Abba, é a luz e o Criador. Esse é o meu Ser. Você acha que estamos muito distantes?”
Estamos distantes em nossa maneira de pensar, mas somos semelhantes como seres humanos, inconscientemente animados por nossos instintos que se transformam em impulsos, sentimentos e vontade, pensamento e razão. Nisso somos iguais.
“Mas você pode definir o que você chama de Ser?”
Ser é uma fábrica de energia. Energia caótica, mas indestrutível e caos eterno. As formas emergem da energia quando ela atinge o ponto de explosão. As formas têm as suas próprias leis, os seus campos de magnetismo, os seus elementos químicos, que combinam aleatoriamente, evoluem e eventualmente são extintos, mas a sua energia não é destruída. O homem é provavelmente o único animal dotado de pensamento, ao menos, no nosso planeta e no sistema solar. Disse que ele é guiado por instintos e desejos, mas eu acrescentaria que ele também contém dentro de si uma ressonância, um eco, uma vocação de caos.
“Está certo. Não quero que você me faça um resumo  de sua filosofia e o que você me disse é o suficiente. Do meu ponto de vista, Deus é a luz que ilumina a escuridão, mesmo se não a dissolve, e uma fagulha de luz divina está dentro de nós. Na carta que lhe escrevi, você irá lembrar que disse que as nossas espécies terminarão, mas a luz de Deus não terminará e nesse ponto ela invadirá todas as almas e estará toda em todos.”
Sim, lembro disso muito bem. O senhor disse: “Toda a luz estará em todas as almas” que – se posso dizer assim – transmite uma imagem mais de imanência do que de transcendência.
“A transcendência permanece porque essa luz, tudo em tudo, transcende o universo e as espécies em que habita nesse estágio. Mas de volta ao presente. Demos um passo à frente em nosso diálogo. Observamos que na sociedade e no mundo em que vivemos o egoísmo tem aumentado mais do que o amor pelos outros, e que os homens de boa vontade precisarão trabalhar, cada qual com os seus pontos fortes e experiência, para garantir que o amor aos outros aumente até que seja igual e possivelmente exceda o amor por si mesmo.”
Novamente, a política é invocada.
“Certamente. Pessoalmente creio que o chamado liberalismo irrestrito somente faz do forte mais forte e do fraco mais fraco e exclui os mais excluídos. Precisamos de grande liberdade, não descriminação, não demagogia e muito amor. Precisamos de regras para conduzir e também, se necessário, intervenção direta do estado para corrigir as desigualdades mais intoleráveis.”
Sua Santidade, certamente o senhor é uma pessoa de grande fé, tocada pela graça, animada pelo desejo de reviver uma igreja pastoral e missionária, que é renovada e não temporal. Mas da maneira que o senhor fala e de como compreendo, o senhor é e será um papa revolucionário. Metade jesuíta, metade franciscano, uma combinação que talvez nunca tenha sido vista antes. E então, o senhor gosta de “The Betrothed” de Manzoni, Holderlin, Leopardi, especialmente, de Dostoevsky, o filme “La Strada” e “Prova d’orchestra” de Fellini, “Open City” de Rossellini e também dos filmes de Aldo Fabrizi .
“Gosto desses porque os assisti com meus pais quando era criança.”
Aqui está. Posso recomendar dois filmes lançados recentemente? “Viva la libertà” e os filmes sobre Fellini de Ettore Scola. Estou certo de que o senhor irá gostar deles. Com relação ao poder, digo, o senhor sabe que quando eu tinha 20 anos passei um mês e meio em um retiro espiritual com os jesuítas? Os nazistas estavam em Roma e eu havia desertado do serviço militar. A deserção era passível de punição por sentença de morte. Os jesuítas nos esconderam sob a condição de que fizéssemos exercícios espirituais o tempo todo que eles nos mantivessem escondidos.
“Mas é impossível ficar um mês e meio de exercícios espirituais?” Ele pergunta, maravilhado e divertido. Eu lhe direi mais da próxima vez.
Nos abraçamos. Subimos o pequeno lance de degraus até a porta. Digo ao Papa que não é preciso me acompanhar, mas ele faz um gesto dizendo que deixe isso pra lá. “Ainda iremos discutir o papel da mulher na Igreja. Lembre-se de que a Igreja (la chiesa) é feminina.”
E se você quiser, também podemos falar sobre Pascal. Gostaria de saber o que você acha dessa grande alma.
“Transmita a todos os seus familiares as minhas bênçãos e peça-lhes para rezarem por mim. Pensem em mim, pensem em mim com frequência.”
Apertamos as mãos e ele fica de pé com dois dedos levantados em sinal de benção. Aceno para ele da janela.
Este é o Papa Francisco. Se a Igreja se tornar como ele e ficar do jeito que ele quer que ela seja, será uma mudança de época.
·                 Tradução literal do título da versão em inglês; a tradução do título original em italiano é “O Papa: assim mudarei a Igreja”. Correções à tradução são bem-vindas.


Entrevista concedida ao La Republica em 01/10/2013