O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

24 de agosto de 2011

O aborto perdoado em Madri


Dois pesos e duas medidas: o aborto perdoado em Madri

Ivone Gebara*

É com muito constrangimento que muitas mulheres católicas leram a notícia publicada em vários jornais nesse último final de semana de que a Arquidiocese de Madri com aprovação papal autorizou a concessão do perdão e indulgência plenária às mulheres que confessarem o aborto por ocasião da visita do papa. A impressão que tivemos é que o papa, o Vaticano e alguns bispos gostam de brincadeiras de mau gosto com as mulheres. Não sabemos em que mundo esses homens vivem, quem pensam que são e quem pensam que somos!
Primeiro, concedem o perdão a quem pode viajar para assistir a missa do papa e passar pelo "confessionódromo” ou pelo conjunto de duzentos confessionários brancos instalados numa grande Praça pública de Madri chamada "Parque do Retiro”. O perdão deste "pecado” tem local, dia e hora marcada. Custa apenas uma viagem a Madri para estar diante do papa! Quem não faria o esforço para tão grande privilégio? Basta ter dinheiro para viajar e pagar a estadia em algum hotel de Madri que o perdão poderá ser alcançado. Por isso, nos perguntamos: que alianças a prática do perdão na Igreja tem com o capitalismo atual? Como se pode viver tal reducionismo teológico e existencial? Quem está tirando benefícios com esse comportamento?
Segundo, têm o desplante de afirmar que o perdão deste "crime hediondo” como eles costumam afirmar, é dado apenas por ocasião da visita do papa para que nessa mesma ocasião as fiéis pecadoras obtenham "os frutos da divina graça”, confessando o seu pecado. Como entender que uma falta é perdoada apenas quando a autoridade máxima está presente? Não estariam reforçando o velho e decadente modelo imperial do papado? Quando o Imperador está presente tudo é possível até mesmo a expressão da contradição em seu sistema penal.
Não quero retomar os argumentos que muitas de nós mulheres sensíveis às nossas próprias dores temos repetido ao longo de muitos anos numa breve reflexão como esta. Mas esse acontecimento papal madrilenho, infelizmente, só mostra mais uma vez, um lado ainda bastante vivo no Vaticano, ou seja, o lado das querelas medievais em que questões absolutamente sem peso na vida humana eram discutidas. E mais, demonstra desconhecer as dores femininas, desconhecer os dramas que situações de violência provocam em nossos corpos e corações. Ao conceder o perdão ao "crime” do aborto na linguagem que sempre usaram, de forma elitista revelam o rosto ambíguo da instituição religiosa capaz de ceder ao aparato triunfalista quando sua credibilidade está em jogo. Podem abençoar tropas para matar inocentes, enviar sacerdotes como capelães militares em guerras sempre sujas, fazer afirmações públicas em defesa da instituição condenando pobres e oprimidas, abrir exceções à regra de seus comportamentos para atrair jovens alienados dos grandes problemas do mundo ao rebanho do Papa. A lista dos usos e costumes transgressores de suas próprias leis é enorme...
Por que reduzir a vida cristã a pão e circo? Por que dar um espetáculo de magnanimidade em meio à corrupção dos costumes? Por que criar ilusões sobre o perdão quando o dia a dia das mulheres é cheio de perseguições e proibições às suas escolhas e competências?
Somos convidadas/os a pensar no aspecto nefasto da posição do papa e dos bispos que se aliaram a ele. O papa não concedeu perdão e indulgência total ou plena "urbe et orbe”, isto é, para todas as mulheres que fizeram aborto, mas apenas àquelas que se confessaram naquele momento preciso e por ocasião da visita do papa à Espanha. Não é mais uma vez a utilização das consciências especialmente das mulheres para fins de expansionismo de seu modelo perverso de bondade? Não é mais uma vez abrir concessões obedecendo a uma lógica autoritária que quer restaurar os antigos privilégios da Igreja em alguns países europeus? Não é uma forma de querer comprar as mulheres confundindo-as diante da pretensa magnanimidade dos hierarcas?
Será que as autoridades constituídas na Igreja Católica e de outras Igrejas são ainda cristãs? São ainda seguidoras dos valores éticos humanistas que norteiam o respeito a todas as vidas e em especial à vida das mulheres?
Creio que mais uma vez somos convocadas/os a expressar publicamente nosso sentimento de repúdio à utilização da vida de tantas mulheres como pretexto de magnanimidade do coração papal. Somos convidadas/os a tornar pública a corrupção dos costumes em todas as nossas instituições inclusive naquelas que representam publicamente nossas crenças religiosas. Somos convidadas/os a ser o corpo visível de nossas crenças e opções.
Fazendo isso, não somos melhores do que ninguém. Somos todas pecadoras e pecadores capazes de ferir uns aos outros, capazes de hipocrisia e mentira, de crueldade e crueldade refinada. Mas, também somos capazes de dividir nosso pão, de acolher a abandonada, de cobrir o nu, de visitar o prisioneiro, de chamar Herodes de raposa. Somos essa mistura, expressão de nosso eu, de nossos deuses, dos espinhos em nossa carne convidando-nos e convocando-nos a viver para além das fachadas atrás das quais gostamos de nos esconder.
21 de agosto de 2011.



* A teóloga Ivone Gebara é doutora em Filosofia pela Universidade Católica de São Paulo e em Ciências Religiosas pela Universidade Católica de Louvaina, na Bélgica.

19 de agosto de 2011

Deus mora lá na nossa rua


 Marcelo Barros



Quando dona Cora Coralina, a nossa grande poetisa da vida cotidiana, sugeriu ao presidente da República, que instituísse "O Dia nacional do Vizinho", em nenhum lugar, havia ainda esta iniciativa. Atualmente, existe o "Dia europeu da Vizinhança", celebrado no final de maio. A Argentina festeja o seu "Dia de los vecinos" no 11 de junho. O Brasil consagra como Dia dos Vizinhos o 20 de agosto, data do aniversário natalício da inesquecível dona Cora. Esta valorização da vizinhança se torna mais importante, em cidades maiores, nas quais edifícios substituem casas. Ali, embora, frequentemente, as pessoas se encontrem no mesmo elevador, muitas vezes, não se conhecem. Não é o mero fato de morar no apartamento ou na casa ao lado, que torna alguém vizinho. A pessoa pode viver durante anos em um lugar, se queixando da agitação, do calor, da poeira ou da insegurança. Outros têm plena consciência destes problemas e lutam para vencê-los, mas, assim mesmo, casam com a rua ou praça onde moram. Quando pessoas da mesma rua ou do mesmo condomínio pressentem em outras, esta relação vital com o lugar em que moram, aí se fortalece uma proximidade de convivência que é a vizinhança. Para ser bem vivida, esta precisa de uma educação para o diálogo e a convivência entre diferentes. Cora Coralina dizia: "Vizinho é mais do que parente, porque é o primeiro a saber das coisas que acontecem na vida da gente".
Em tempos anteriores à televisão e aos shoppings, nas cidades do interior, ou em bairros residenciais, toda noite, as pessoas costumavam sentar à porta de casa, para conversar e conviver. Normalmente, a roda de conversa acabava se abrindo também aos vizinhos e vizinhas. Assim, se formavam verdadeiras rodas de discussão, com assuntos como educação de filhos, relacionamentos conjugais e futebol. Hoje, a televisão e a cultura do shopping substituíram estes ritos de convivência, mas não resolvem o problema da solidão dos mais velhos e da futilidade de quem olha o mundo apenas pela janela do consumo descartável.
Há mais de 50 anos, o educador Paulo Freire propôs um método de alfabetização e educação de adultos que partia da vizinhança. Formava círculos de diálogo e cultura entre vizinhos. Ali, as pessoas aprendiam a expressar sua posição sobre a vida e os problemas que enfrentavam. Mesmo perseguido pela ditadura militar, este método de conscientização se espalhou pelo Brasil, por outros países da América Latina e até em Angola e Cabo Verde, na África. Na mesma linha, na segunda metade dos anos 60, em várias regiões do Brasil, homens e mulheres de fé cristã, começaram a se reunir como vizinhos, para orar, ouvir juntos um texto bíblico, conversar sobre problemas da vida e fortalecer a solidariedade mútua. Foi o começo das comunidades eclesiais de base. Mais tarde, várias Igrejas evangélicas organizaram grupos semelhantes, como "Igreja em células" e "Igreja em quadros", comunidades de convivência e proximidade, instrumentos de comunhão entre as pessoas.
Há mil razões para se valorizar a prática da vizinhança. Quem crê em Deus como Luz e fonte de vida, o contempla, não como alguém exterior a nós e que de fora intervém neste mundo, mas como presença íntima e profunda, no coração de toda pessoa humana, especialmente de quem se abre ao amor, independentemente de sua pertença religiosa. Um teólogo evangélico dizia: "Deus está em mim para você e em você para mim. Eu o encontro em você e, se quiser, você pode encontrá-lo em mim". Por isso, podemos olhar nossos vizinhos e vizinhas, como sinais da presença divina. Eles são humanos e têm seus defeitos e limitações, mas se os olharmos assim, pouco a pouco, se transformarão, principalmente se perceberem que, de fato, cremos: através deles e no mais íntimo de cada um/uma, Deus mora lá na nossa rua.

Marcelo Barros é monge beneditino e escritor.

12 de agosto de 2011

A invenção do papado

Em 1059, foram mudados os critérios de eleição do bispo de Roma. A partir dessa data, esse escolhido também passaria a ser o Pontífice Máximo de toda aCristandade.A análise é de Giacomo Todeschini, professor de história medieval da Universidade de Trieste, na Itália, em artigo publicado no jornal Il Manifesto, 30-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
No dia 13 de abril de 1059, um bispo de Roma, eleito há poucos meses, e que ninguém ainda considerava como "o papa", Nicolau II (imagem), nascido Gerard de Bourgogne, bispo de Florença, convocou em Roma, em São João de Latrão, uma reunião sinodal durante a qual se estabeleceu de uma vez por todas que apenas os cardeais reunidos em conclave podiam eleger o bispo de Roma, e que este seria o Pontífice Máximo de toda a Cristandade. A decisão dessa elite consagrada tomou forma e se difundiu por meio de uma bula de Nicolau II, a In nomine Domini.
Essa solene decisão deu início ao processo de separação definitiva da Igreja do mundo dos poderes soberanos seculares europeus. A partir de 1059, o arquipélago das Igrejas europeias começou a se tornar a "Igreja" e a ter o seu centro indiscutível em Roma, na pessoa do Papa.
Uma figura ambígua
O período histórico durante o qual ocorreu essa mudança, que produziu depois, ao longo do tempo, um efeito avalanche de enormes proporções, também é politicamente problemático. O poder do bispo de Roma havia sido, durante séculos, um poder muito frágil, muito menos significativo do que o dos imperadores romanos estabelecidos emConstantinopla, e também do poder que os imperadores romanos do Ocidente, deCarlos Magno a Oto III, haviam reivindicado e parcialmente obtido.
As Igrejas ocidentais e orientais tinham entendido o papel do sucessor de Pedro emRoma em termos políticos de um primado compartilhado com o que os patriarcas e bispos, da Europa aos territórios bizantinos, exerciam em todos os casos, reconhecendo a supremacia dos imperadores sentados no trono que havia sido deConstantino.
Entre Roma e a área franco-germânica dos imperadores do Ocidente, sobretudo, o equilíbrio havia sido muito delicado, pelo menos desde que, no século IX, os soberanos da dinastia carolíngia haviam começado a exercer sobre o bispo de Roma um poder em partes iguais de proteção, defesa e controle. No século X, quando o título imperial havia sido passado para a dinastia germânica dos Oto, a relação entre a casa imperial e o episcopado romano havia se tornado ainda mais estreita.
A questão era complicada pelo fato de que a eleição do bispo romano, figura ambígua, de um lado ligada a um território bem definido, mas, de outro, simbólico representante do carisma universal de Pedro, era muito ambicionada pelas famílias nobres romanas, que muitas vezes conseguiam assentar sobre o trono episcopal um membro dos seus clãs.
O partido dos reformadores
A eleição de Nicolau II também havia ocorrido nesse clima conflitual. Ela havia sido, substancialmente, o fruto de um confronto explícito entre duas facções: uma, encabeçada pelo conde de Túsculo, poderosa família romana, e por uma parte do clero romano, que tinha eleito seu próprio candidato, João dos Condes de Túsculo, com o nome de Bento X; a outra, apoiada pela imperatriz alemã Agnes, filha do duque da Aquitânia e de Agnes de Borgonha, regente em nome do seu filho, o futuro imperador Henrique IV, do duque de Lorena e do partido eclesiástico "reformador", ou seja, contrário ao controle das famílias romanas sobre o Sólio de Pedro, que, ao contrário, tinha eleito Nicolau II.
A batalha foi travada dentro de poucos meses entre SienaFlorençaRoma e o palácio imperial alemão, onde reinava a imperatriz Agnes, de 34 anos (ela morreria em 1077, como penitente reclusa em um mosteiro romano, depois da submissão do filho imperador ao Papa Gregório VII). A eleição de um conde de Túsculo a bispo de Roma com o nome de Bento X, em 1058, foi velozmente seguida pela contraeleição de Nicolau II, em virtude dos apoios políticos superlativos que o seu partido desfrutava.
O prestígio constituído pelo apoio de uma imperatriz de grande estirpe e do senhor de Lorena teve uma ressonância e uma convalidação totalmente especial pelo fato de eles serem apoiados pelo grupo de intelectuais monges e bispos que, de Pedro Damiani, de Ravena, a Humberto de Moyenmoutier (ou de Silvacandida), de Lorena, formavam o grupo dos "reformadores", ou seja, compunham o partido eclesiástico franco-italiano intencionado, com bases canônicas e teológicas, a distinguir o carisma apostólico do senhoril, na perspectiva de estabelecer o primado do poder sacerdotal sobre o senhoril, régio ou imperial dos poderosos seculares.
Uma elite sacerdotal
A eleição de Nicolau II e a subsequente deposição e excomunhão de Bento X foram, portanto, tanto o efeito de uma vitória da aliança entre soberanos de porte internacional e intelectuais eclesiásticos fortemente comprometidos em sentido teórico e projetual, como também a premissa de uma consolidação do poder carismático dos eclesiásticos reunidos em torno da figura do bispo romano, em si só já potencialmente polêmico com relação ao vínculo que tradicionalmente unia o episcopado romano às famílias dos imperadores e da grande nobreza europeia.
O primeiro e mais vistoso sinal da tensão que os "reformadores" instaurariam entreRoma e os soberanos do Ocidente se manifestou, com efeito, ainda poucos meses depois da eleição e da consagração de Nicolau II, ocorrido no dia 24 de janeiro de 1059. Na bula In nomine Domini, de fato, o papa recém-eleito decretou, com base daquilo no que os teólogos reformadores haviam elaborado, que o bispo de Roma, o papa, poderia agora ser eleito apenas pelos bispos cardeais e com o voto adicional dos cardeais não bispos, de modo que o "povo" e o resto do clero fosse capaz, depois, de aprovar essa escolha, sem, porém, que essa faculdade pudesse significar um direito de se intrometerem na questão.
A eleição do pontífice, portanto, passaria a se referir exclusivamente a uma elite sacerdotal, a cardinalícia, enquanto o resto do clero e o povo teriam nessa liturgia um papel secundário e passivo (“religiosissimi viri praeduces sint in promovenda pontificis electione, reliqui autem sequaces”).
Ao mesmo tempo, o texto da bula de Nicolau II especifica que só é elegível quem pertencer ao âmbito eclesiástico romano ou europeu, e que, portanto, todo eleito que não tenha sido, por sua vez, anteriormente consagrado como sacerdote não poderá, por consequência, ter acesso ao cargo de pontífice.
Esses aspectos do documento estabeleciam, em suma, que os poderes soberanos seculares não tinham mais nenhum direito explícito e formal de participar da eleição dos pontífices e que, ao mesmo tempo, nenhum fiel desses poderes podia se tornar pontífice se não tivesse sido antes consagrado e reconhecido pela hierarquia eclesiástica de obediência romana.
A "reverência" da Igreja com relação ao imperador (o futuro Henrique IV) não implicava mais um direito automático seu de escolher quem devia se tornar bispo deRoma, mas, ao contrário, sublinhava a dependência do seu poder ao sacerdotal: o papa deverá ser eleito "do seio da Igreja de Roma, se for considerado idôneo; senão, que seja tomado de outra Igreja. Salvo a devida honra e a reverência ao nosso dileto filho Henrique, que agora é chamado de Rei e que esperamos que seja, com a ajuda de Deus, futuro imperador, como o concedemos, e aos sucessores dele que pessoalmente pedirão esse privilégio a esta Sé Apostólica".
Do lado de Satanás
Em um parágrafo subsequente, indiretamente, se começava a afirmar o princípio da supremacia da Igreja de Roma sobre outras Igrejas, sublinhando, ao mesmo tempo, que essa supremacia também era a origem da maior autoridade e influência da Igreja romana com relação aos poderes soberanos seculares. Esse duplo conceito, que se afirmará plenamente a partir do pontificado de Gregório VII, menos de 20 anos depois, por volta de 1075, é expresso aqui na forma de uma condenação muito violenta de todos aqueles que não querem se submeter às decisões do sínodo lateranense de 1059.
Estes, resistindo ao decreto de Nicolau II em relação a uma eleição definida como "incorruptível, genuína e livre", por ser reservada aos graus mais altos do clero, virão a se encontrar do lado de Satanás e fora da Cristandade, entendida nesse ponto como um Corpo social, ao qual, para dele pertencer, se torna decisivo se reconhecer nas tomadas de posição da Corte pontifícia romana.
"Mas se alguém, contrariamente a este nosso decreto promulgado no sínodo, for eleito, ou considerado, ou assentado no trono por meio da revolta, da temeridade ou de qualquer outro meio, seja por todos acreditado e considerado não como Papa, mas como Satanás, não apóstolo, mas apóstata, e com perpétua excomunhão por autoridade divina e dos santos apóstolos Pedro e Paulo, junto com os seus instigadores, partidários e seguidores, seja expulso e rejeitado das portas da santaCristandade de Deus como Anticristo, inimigo e destruidor de toda a Cristandade. E não lhe seja dada nenhuma audiência a esse respeito, mas, perpetuamente, seja privado da dignidade eclesiástica de qualquer grau que tenha sido. Com a mesma sentença seja punido qualquer pessoa que esteja do seu lado ou lhe render homenagem como a um Pontífice, ou presumir defendê-lo. E quem temerariamente se opor a este nosso decreto e na sua presunção tentar confundir e perturbar a Igreja Romana contra este estatuto seja condenado a perpétuo anátema e excomunhão, e seja considerado entre os ímpios que não ressurgirão no Juízo. Que sinta contra si a ira do Onipotente, do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e, nesta vida e na futura, experimente o furor dos santos apóstolos Pedro e Paulo, cuja Igreja ele teve a pretensão de abalar. A sua casa seja deserta e ninguém habite nas suas tendas (Salmo 69, 26). Os seus filhos sejam órfãos e sua mulher, viúva. Que seja expulso em terror ele e seus filhos, e mendiguem e sejam rejeitados das suas casas. Que o usurário se aposse da sua substância, e que estrangeiros se aproveitem dos frutos da sua fadiga. Toda a terra combata contra ele, e que os elementos lhe sejam adversos,e os méritos de todos os santos defuntos o confundam e mostrem aberta vingança contra ele nesta vida".
Legitimidade ao reino normando
A reforma, ou melhor, a revolução ocorrida nos critérios da eleição do bispo de Roma, em 1059, abria caminho, portanto, para um conjunto de possíveis desenvolvimentos, ambiguamente interconectados. Enquanto, de fato, de um lado, a eleição de Nicolau II havia sido possível graças ao apoio do mundo imperial, de outro lado, a ascensão ao trono papal de um "reformador" inaugurava uma época de contrastes com os poderes soberanos que a época medieval transmitiria à Europa moderna.
A possibilidade de se aliar, em defesa da verdadeira fé, com quem, pessoa ou grupo, o pontífice romano considerava mais confiavelmente cristão, mas também de desconhecer essa aliança onde ela se revelasse inútil para a solidez da “respublica” católica, uma realidade política que se afirmava como transnacional justamente por causa da afirmação do primado do pontífice romano, inaugurava, além disso, uma longa temporada da política europeia – provavelmente ainda não concluída – cuja complexa conflitualidade teria sido variavelmente orquestrada e arbitrada pelo poder supranacional dos papas.
Exatamente Nicolau II, ainda no crucial 1059, poucos meses depois do sínodo lateranense, dará início a essa lógica no mesmo momento em que reconhecerá a plena legitimidade do recém-nascido reino normando, um potentado de nova e incerta legalidade, conferindo a soberania sobre a CampâniaPugliaCalábria e Sicília aRoberto, o Guiscardo, e aos chefes do clã dos Hauteville.
Do tratado de Melfi em junho de 1059 à concordata, estipulada ainda em Melfi em agosto do mesmo ano, logo depois de um concílio do qual haviam participado alguns dos principais representantes da reforma católica romanocêntrica, de Humberto de Silvacandida a Hildebrando de Soana, a autenticação por parte da  Romana de um poder cristão vassalo de Roma sobre terras até pouco antes islâmicas ou bizantinas começava a significar mais coisas aos olhos do mundo: acima de tudo, que o papa podia legitimar um poder político armado como já havia ocorrido aos tempos deCarlos Magno, mas, ainda melhor, ligando-o consigo um pacto de submissão.
Em segundo lugar, que o papa assentado em Roma podia estabelecer um poder fiel a si sobre terras não só infiéis, mas também, no passado, pertencentes a outros poderes cristãos rivais (o do imperador do Oriente, no caso da Itália meridional).
E, finalmente, que o papa, único entre os poderosos ocidentais, tinha o direito superior de tornar institucional um poder de fato pelas razões indiscutíveis da fé, ou seja, em consequência das escolhas tanto políticas quanto ideológicas operadas por um novo tipo de soberania, a papal, cujo desconhecimento já significava a saída daCristandade.
Um modelo de longa duração
A afirmação, em 1075, por parte de Gregório VII, do primado romano como primado político universal ("… Só ele pode usar as insígnias imperiais; só ao Papa todos os príncipes devem beijar os pés; que só o Seu nome seja pronunciado nas igrejas; o Seu nome seja o mesmo em todo o mundo; a Ele é permitido depor os imperadores; que uma sentença Sua não possa ser reformada por ninguém, enquanto, ao contrário, Ele pode reformar qualquer sentença emanada por outros; Ele não pode ser julgado por ninguém; Ele pode liberar os súditos da obrigação de obediência aos príncipes que impuseram o seu poder pela força..."), além do tom provocativo e paradoxal que a diferencia, levava às suas lógicas conclusões um discurso já implícito nas deliberações e nas políticas de 1059.
Esse discurso impunha, no próprio coração do processo de civilização do Ocidenteque da Idade Média levaria à modernidade, tanto uma possibilidade para o poder de se apresentar como universal, supranacional, carismático e indiscutível, quanto um modelo de autoridade única e eterno, por provir diretamente do Cristo no momento da sua encarnação e, portanto, autorizada em nome de uma Verdade superior a legislar bem além dos limites do seu efetivo domínio territorial.
A força desse modelo, cujas primeiras raízes se encontram no processo de transformação das Igrejas do Ocidente em uma Igreja hierarquicamente ordenada em torno ao Centro constituído pelo pontífice romano, já se torna totalmente visível no sínodo lateranense de 1059, sobre a unicidade exclusiva da entronização do bispo romano. Portanto, ela continuará agindo não apenas nas políticas teocráticas dos "soberanos pontífices", de Inocêncio III em diante, mas também, senão sobretudo, na vontade expansionística de uma Europa cristã cujo objetivo será, explicitamente, na era dos Estados nacionais, a conquista e a submissão do planeta Terra.


fonte:
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=46160

5 de agosto de 2011

IGREJA DOS POBRES: FUNDAMENTO DE UMA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

João Leondenes Facundo de Souza Junior*


INTRODUÇÃO
No meio do século passado, a Igreja Católica se encontrava em uma encruzilhada entre prosseguir com uma dogmática que esteve presente por toda a Idade Média ou refletir as mudanças advindas do mundo moderno. Tínhamos uma atmosfera de tensão que se refletia na Cúria romana, a saber: de um lado estava a realidade centralizadora que sempre caracterizou a estrutura eclesial e do, outro, uma proposta de abertura para o diálogo com a realidade moderna, com suas dúvidas, desconfianças e com seu choque de injustiças.

Neste artigo, pretendemos refletir em que panorama se desenvolveu a Igreja dos pobres na América Latina, sua fundamentação teológica e o que constitui efetivamente esse ser dos pobres como base para uma Teologia da Libertação. A pesquisa tem como foco analítico os seguintes pontos: (1) João XXIII e o Concílio Vaticano II, (2) Medellín e a Igreja da América Latina, (3) Teologia da Libertação e (4) Eclesiologia da Libertação.

1. JOÃO XXIII E O CONCÍLIO VATICANO II

O papel de João XXIII no Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) foi de singular importância. Não somente pelo ato de conclamar o referido concílio, mas por introduzir nele uma perspectiva de atualização para a Igreja mundial (aggiornamento). É inegável que grande foi a surpresa quando o "papa bom”, até então considerado um papa de transição, abriu as portas da Igreja que pareciam seladas para o mundo moderno. O Espírito acordara de um sono duradouro, era, portanto, hora de trabalhar para abri-lhe caminho. (C.f SANTOS, 2OO7, p.19).

João XXIII expressa na bula Humanae Salutis o anseio pelo qual passou ao realizar o primeiro anúncio do Concílio (25 de janeiro de 1959): "foi como a pequena semente que depusemos com ânimo e mãos trêmulas”. Nada mais humano ao realizar ato tão divino. O Papa sentia que a Igreja tinha por obrigação demonstrar vitalidade, jovialidade (renovação) e irradiar novas luzes ao surgimento de uma nova era (C.f João XXIII, 1961, p 254). Esse aggiornamento era mais que necessário, pois a mais de 16 séculos a Igreja esteve presa a uma dogmática intra ecclesia para, enfim, anunciar a sua abertura ad extra.

Vejamos o que diz João XXIII em seu pronunciamento às vésperas do Concílio Vaticano II, datado de 11 de setembro de 1962: "Em face aos países subdesenvolvidos, a Igreja se apresenta como é e como quer ser: a Igreja de todos e particularmente a „Igreja dos pobres” (João XXIII apud Aquino, 2005, p 209). Apesar de não termos tido no concílio o aprofundamento que necessitara a Igreja dos pobres, a fala de João XXIII aponta para um viés que até então era pouco debatido: o de uma Igreja que deve assumir em si a perspectiva dos que estão à margem do mundo.

O Espírito deu sinais de que essa discussão não passaria despercebida, como podemos comprovar através de históricas intervenções. É de especial atenção a manifestação do cardeal Lercaro:

"O mistério de Cristo nos pobres não aparece na doutrina da Igreja sobre si mesma e, no entanto, essa verdade é essencial e primordial na revelação (...). É nosso dever colocar no centro deste Concílio o mistério de Cristo nos pobres e a evangelização dos pobres” (Lercaro, apud Aquino, 2005, p.209).

Essa manifestação resultou posteriormente resultou em uma reflexão contida no capítulo 8 do documento conciliar Lumen Gentium. Corroborando com Lercaro destacamos o pronunciamento do bispo de Tornai, Charles-Marie Himmer, pelo significado que expressa e por seu peso, quando em aula conciliar afirmou: "primus lócus in Ecclesia pauperibus resevandus est” (o primeiro lugar na Igreja é reservado aos pobres). De fato, a causa dos pobres estivera longe de ser ponto central do concílio, a não ser por intervenções pontuais, pois "esta não era a temática que constituía efetivamente o espírito conciliar” (SOBRINO, 1982, p.101).

Havia no concílio um corpo de bispos que representavam os países do "terceiro mundo” e que gozavam de bastante simpatia do papa João XXIII. Nele estava presente nosso saudoso Dom Helder Câmara. Astuto e movido por uma insistência evangélica torna-se uma das referências do grupo da "Igreja dos pobres”. Certa vez, perguntado por um jornalista se esse grupo consistia mais um grupo de pressão, respondeu:

Gosto muito da expressão que nos vem de nossos irmãos franceses: "Igreja servidora e pobre”. O Santo Espírito nos interpelou, nos convocou. Abriu-nos os olhos sobre o dever de cristãos, sobretudo de pastores, a fim de agirmos como o Cristo que, pertencendo a todos, se identificou com os pobres, os oprimidos, com todos aqueles que sofrem. Começamos a procurar como a Igreja toda, especialmente cada um de nós, poderia ser "servidor e pobre” (BEOZZO, 1993, p.95).

Essa "pressão” vira "expressão” de vida quando, ao término do Concílio, celebrando a eucaristia na catacumba de Domitila, o grupo da Igreja dos pobres firma um pacto de propagação de uma Igreja servidora e pobre, para "obterem a graça de serem plenamente fiéis ao Espírito de Jesus „que vos consagrou e vos enviou para evangelizar os pobres‟ (Lc 4,18)” (C.f BEOZZO, 1993, p. 96). Esse compromisso ficou conhecido como o Pacto das Catacumbas[1]. Nele estiveram presentes alguns bispos brasileiros[2], que tinham por objetivo expressar com verdade aos "irmãos no Episcopado” o compromisso de viverem uma vida de pobreza, de rejeitar todos os símbolos ou privilégios do poder e de fazer dos pobres o local por excelência para se exercer os ministérios episcopais. Os bispos encerram o texto com um "ajuda-nos Deus a sermos fiéis”, demonstrando que uma Igreja dos pobres é, de fato, uma fidelidade a Deus (...)

2. MEDELLÍN E A IGREJA DA AMÉRICA LATINA

O Episcopado latino-americano animado em colocar em prática as decisões do Vaticano II, marcou passo na história, quando após três anos do término do Concílio, realizou a segunda Conferência Episcopal latino-americana na cidade de Medellín.

Medellín refaz, num certo sentido, o Vaticano II e, em muitos pontos dá um passo além: aí emerge pela primeira vez a importância das comunidades de base, esboça-se a teologia da libertação, aprofunda-se a noção de justiça e de paz ligadas aos problemas de dependência econômica, coloca-se o pobre no centro da reflexão do continente (BEOZZO, 1993, p. 117-118).

Medellín prossegue na reflexão iniciada no Vaticano II e por seu incentivador João XXIII. O Papa bom, através de suas encíclicas sociais, toca de forma comprometedora a Igreja da América Latina (Cf. BEOZZO, 1995, P.118). No decorrer do Concílio, como vimos antes, surgiu uma corrente que colocava os pobres como centro da ação evangelizadora e por isso comprometia-se com eles. É, pois, nesta linha que se encontravam os bispos que participam de Medellín.

Conscientes da realidade do continente, os bispos reunidos em Medellín reconhecem que a Igreja não poderia ficar indiferente as injustiças sociais existentes na América Latina. O documento que traz as Conclusões de Medellín está carregado de uma profunda solidariedade para com o povo que sofre. Nele os bispos assumem que a Igreja da América Latina esteve letárgica e, por isso, sentem-se obrigados, como pastores, a dar voz aqueles que não a têm:

"Um surto de clamor nasce de milhões de homens, pedindo a seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte. Agora nos estais escutando em silêncio, mas ouvimos o grito que sobe de vosso sofrimento...” (MEDELLÍN, 1979, P.143).

Foi no alvorecer de Medellín que se gestou a Teologia da Libertação (Cf. Oliveros, 1990, p. 30). Isso se deu por uma coesão no episcopado latino-americano e por uma situação histórica popular de opressão e libertação. Na Conferência, a Igreja se compromete a denunciar a carência injusta dos bens necessários para sobrevivência da maioria na América Latina e compromete-se a viver juntos deles (Cf. MEDELLÍN, 1979, p.145). Orienta, portanto, que seus trabalhos pastorais sejam realizados nos setores mais pobres e necessitados.

Percebe-se, todavia, que a Igreja se apropriou da temática dos pobres. Não como meros receptores de um "assistencialismo caridoso”. Em Medellín a Igreja se faz pobre! Isto é, assume a missão deixada por Jesus que sendo rico se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza (2Cor 8,9), e compromete-se a "apresentar ao mundo um sinal claro e inequívoco da pobreza do Senhor”. (MEDELLÍN, 1979, p. 150).

A semente está lançada e começa a germinar no seio das comunidades latino-americanas uma experiência de fé que emerge da vida ameaçada e de uma Igreja profética que ouve o clamor do povo. Nasce nas comunidades de base um novo modo de se fazer teologia, fruto de uma prática pastoral anunciada por Medellín.

3. TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

A teologia da libertação nasce do rejuvenescimento que o Vaticano II causou na Igreja da América Latina. Pela primeira vez na história, surge um modo de se fazer teologia tendo como premissa a situação dos povos e das pessoas que constituem o continente latino-americano[3]. A teologia da libertação traz a realidade dos povos para ser aprofundada a luz da fé, oferecendo uma nova visão da missão da Igreja no nosso continente.

Medellín, como vimos anteriormente, destacou de forma profética a situação de injustiça em que viviam os povos de diversos países latino-americanos e esta constatação virou uma bandeira de muitos em favor dos menos favorecidos, o que impulsionou a vários cristãos a comprometerem-se em desenvolver uma nova teologia: "uma nova consciência eclesial começou a se formular a partir de um novo modo de viver a fé daqueles que estavam comprometidos com os pobres e sua libertação” (OLIVEROS, 1990, p.30). Cria-se uma nova concepção do que é fazer teologia na América Latina, a novidade da teologia da libertação foi descobrir que não somente falar de Cristo configura a sua presença no meio dos pobres. Seu pensamento transformador foi se compromete com as pessoas exploradas, a maioria em nosso continente. O próprio Jesus em oração nos diz: "Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, por teres ocultado isso aos sábios e aos inteligentes e por tê-lo revelado aos pequeninos” (Mt 11, 25-27). De fato, é nos pequeninos desta terra que se configura mais claramente o Mistério de Deus.

Ao contrastar as desigualdades institucionalizadas na América Latina, viu-se que o estado de pobreza que a maioria esmagadora se encontrava não poderia ser a vontade de Deus. A experiência de Moisés com o povo de Israel serviu de base bíblica para se (re)compreender a missão da Igreja. A situação desumana de escravidão e pobreza impulsionaram as reflexões à luz da Palavra de Deus. Viver a Boa Nova implicava necessariamente em uma nova consciência do "ser” e do "como ser” Igreja. A referência do "ser Igreja” está vinculada ao modo de como Igreja a (instituição) se apresenta ao se contrastar com uma realidade desumana e ser tocada por ela, à de se buscar novas práticas pastorais que respondam as necessidades do povo que está preso em cativeiro[4]. Por outro lado, a idéia do "como ser” quer um esforço de reflexão epistemológica da Igreja aos novos desafios e isso é o que faz uma eclesiologia da libertação.

Uma fisionomia nova, um rosto novo de Igreja que tem o Espírito de Medellín foi a base para o desenvolvimento da eclesiologia da libertação. As Comunidades Eclesiais de Base são o exemplo da reunião de cristãos (ecclesia) comprometidos com a fé no Deus de Jesus, e por isso, atuantes no processo de libertação do povo.

A Igreja dos pobres na América Latina não nasce somente de um esforço acadêmico. Ela nasce, primeiramente, da experiência do povo que sofre. Mesmo sem a idéia de teologia o povo latino-americano se recusa a entregar-se a uma estrutura de morte, por isso, emerge dele várias práticas libertadoras[5]. Somente a partir desta prática é que a Igreja se vê impulsionada a fazer uma reflexão eclesiológica. Essa reflexão é caracterizada como o ato segundo, pois o ato primeiro é práxis (GUTIERREZ, 2000, p.18), uma reflexão crítica a luz do Evangelho sobre a vida e a prática cristã eclesial, abre-se neste contexto uma nova forma de anunciar o querigma.

4. ECLESIOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

A teologia da libertação viu na Igreja dos pobres a fidelidade mais singular à pessoa de Jesus Cristo. Nela, se encontra um Deus que ouve o clamor do povo (Ex 3,7b), essa experiência eclesial se tornou a base práxica para sua sustentação teológica.

A Igreja dos pobres despertou várias desconfianças a respeito da sua unidade eclesial, como uma continuação da Igreja de Jesus Cristo: Una, Santa, Católica e Apostólica. Vejamos, portanto, como a Igreja dos pobres não fere essa unidade, pelo contrário, à torna mais explicita, uma vez que tem os pobres como o centro de sua reflexão teológico/pastoral.

Um só Deus, um só Senhor, um só batismo, um só Espírito, como expressa São Paulo.

Na verdade existe um só Senhor, Jesus Cristo, e Jesus histórico, crucificado, servo de Javé e ressuscitado; existe um só Deus, que quer vida aos homens, escuta o clamor dos oprimidos, morre com eles na história e mantém sempre vivos os gemidos de parto de uma nova criação; existe um só Espírito, renovador da história, doador de vida e que fala pelos profetas de outrora e pelos atuais (SOBRINO, 1982, p.111).

Podemos perceber a unidade dos pobres desta Igreja, nela se expressa os pobres como sujeitos ativos desta realização histórica com todos os percalços que a situação de pobreza os coloca. Quando a Igreja se expõe a ouvir as mazelas pelas quais passam os pobres, a enxergar o exemplo de fé que é a vida deles, ela realiza o milagre de socializar que o núcleo da fé é algo que não se divide, anuncia-se. Não se trata de uma predileção de ordem social. Trata-se, sobretudo, de uma unidade com todas as instituições e pessoas de bem, agora de um formato macro, que tem os pobres como fio condutor da ligação com o Ressuscitado.

A. A santidade contida na Igreja dos pobres

A característica de "santa” atribuída a Igreja é uma característica lógica, pois nela se configura um sinal de salvação, e é ela a continuadora do sacramento histórico do amor de Deus, seria uma contradição dizer que ela não é santa (SOBRINO, 1982, p.114). A problemática se estabelece em reconhecer que a Igreja como instituição imersa em uma realidade está em si, configurada em uma estrutura de pecado é, portanto, também, pecadora. Quem concede a característica de santidade a Igreja, é Deus, "e assim não cremos simplesmente na Igreja santa, mas em Deus que santifica a Igreja” (SOBRINO, 1982, p.115).

A Igreja dos pobres reconhece a dimensão pecadora e santa da Igreja. O que a Igreja dos pobres faz é desenvolver características concretas ao amor e ao pecado, nos mostra que para dar visibilidade a santidade contida na Igreja, a práxis do amor tem que ser concreta (perdoem-me a redundância), não como propostas ou discursos "benevolentes”, mas de recriar uma nova realidade do seio de suas comunidades. Para a Igreja dos pobres, a santidade não está contida no estereótipo que vestem seus representantes, mas, aí a pirâmide se inverte, a santidade salvará o mundo na medida em que a Igreja se autoassuma como serva. A santidade nasce a partir de baixo, da solidariedade que brota dos pobres, da comunhão com aqueles que foram perseguidos e martirizados. "Optar pelos pobres é automaticamente optar pela forma de santidade do Servo” (SOBRINO, 1982, p.118). Recupera, portanto, a dimensão de santidade que fora disseminada por Jesus, a quenose. Sem essa santidade a Igreja não encontraria em si a verdade que a constitui.

B. Sua dimensão universal

A catolicidade que constitui a Igreja é a representação da sua universalidade, isto é, a Igreja enquanto católica tem como centro a totalidade do mundo, o que implica:

Visto que nem todos são "homens” da mesma maneira no que se refere a seus meios, direitos e liberdades, aquela comunidade em que todos verão conjuntamente a glória de Deus é criada através da eleição dos humildes, ao passo que os poderosos incorrem no juízo de Deus (SOBRINO, 1982, p. 119-120).

Isso não quer dizer, que se fira a universalidade, pelo contrário, o fato de ser universal, carrega em si uma tradição histórica pelos os que sempre estiveram escondidos da totalidade. O que a Igreja dos pobres faz, é demonstrar que essa parcialidade para com os que sofrem é uma forma práxica para um amor universal. Nesse mesmo sentido, percebe-se que a Igreja dos pobres em nível "local” desenvolve claramente uma originalidade com personagens próprios[6] e a partir de figuras do passado cria uma autoconsciência para reler sua a história.

C. Tradição apostólica

A apostolicidade que constitui a Igreja serve para demonstrar a continuidade de sua ligação direita com os apóstolos, em ordem cronológica e a continuação de uma estrutura eclesial apostólica. A Igreja se constitui em si mesma missionária, "ela existe para evangelizar” (Evangelii Nuntiandi, 1975, n.14). E evangelizar é afirmar que todo o caráter próprio da Igreja (oração, vida religiosa, escuta da Palavra, etc.) não teria sentido pleno senão se converter em testemunho.

A Igreja dos pobres é uma Igreja autenticamente missionária, ela adquire prioritariamente essa característica porque se faz pobre. Isso quer dizer, que essa primazia da essência se configurou mais verdadeira quando os pobres não foram somente os destinatários da missão, mas quando eles foram constituídos missionários. "Não basta dizer que a práxis é o ato primeiro. É necessário considerar o sujeito histórico desta práxis: os que até agora estiveram ausentes da história” (GUTIERREZ, 1977, p.42).

Com o receptor da missão sendo missionário, surge aí uma conotação própria da sua realidade, uma vez que os pobres tornam-se anunciadores da Boa Nova, tornam-se, também, denunciadores das estruturas pecaminosas. Cabe a Igreja perceber que quando ela se converte em Igreja dos pobres esta se encontra mais fielmente ligada a sua tradição, pois, qualquer pessoa que não está inserida na realidade de sofrimento, desesperança, humilhação que passa a grande maioria dos habitantes desta terra, não refletirá com propriedade a tradição apostólica. Os pobres oferecem a direção a ser seguida!

Percebe-se, portanto, que uma Igreja que se constitui em: Una, Santa, Católica, Apostólica e dos pobres, desenvolve em si uma ortodoxia mais propriamente evangélica.

Veremos nos dois pontos seguintes de que forma o ser dos pobres configura em si um critério de identidade singular ao passo que é constitutivo da Igreja de Jesus e como os sujeitos/destinatários privilegiados do anúncio do Reino modificam de forma estrutural a Igreja.

4.1 O SER DOS POBRES COMO NOTA DA IGREJA DE JESUS

No caminho elementar que constitui a Igreja dos pobres está a sua fidelidade a Jesus Cristo, principalmente pela característica essencial em ser dos pobres. Há quem pense que a dimensão dos pobres na Igreja refere-se a um vertente social contida nela, como se Igreja tivesse somente uma função assistencialista com referência aos menos favorecidos.

Uma Igreja dos pobres não é aquela que se coloca fora da realidade de conflito que a cerca, propondo-se somente a oferecer seu auxílio e nem aquela que o faz somente por um conceito ético. Ser dos pobres é algo constitutivo do próprio ser Igreja, é algo que perpassa os conceitos puramente sociológicos ou uma dimensão particularizante de classe social. Afirmar teologicamente sobre a Igreja dos pobres, é dizer que o Espírito de Deus que animou Jesus a anunciar a Boa Nova (Lc, 4, 18-19) é o mesmo que deve orientar a vivência eclesial de sua herdeira, traz portanto, uma questão fundamental de ortopráxis eclesial e de ortodoxia teológica (AQUINO, 2005, p.210), isto é, de uma forma de ser cristão e de seguir Jesus.

No centro da vida da Igreja está a realização do Reino de Deus. Essa centralidade é circunstância sine qua non para a vivência de um cristianismo que tem como princípio a vida e morte de Jesus de Nazaré. Em Mateus 5, quando Jesus proclama as Bem-Aventuranças e inverte o conceito de "felizes”, assumi-se de fato que todos os desgraçados e infelizes: os pobres, aqueles que sofrem, que choram, que são perseguidos, na verdade, que para imensa maioria "não contam”, a eles é reservado o Reino de Deus.

Se como vimos, o Reino está, sobretudo para os pobres e no centro da vida da Igreja se encontra a sua implantação, portanto, uma Igreja que não está constitutivamente para os pobres significa que não está para o Reino, pode-se afirmar que nem Igreja se configura! A felicidade dos bem aventurados não está na pobreza, na fome, na dor ou na perseguição; está na presença de Deus junto deles (VIGIL, p 62). Uma Igreja que se proclama como "Sacramento de Cristo” (LG.1, 1964), isto é, como sinal visível de sua presença entre nós, não pode negligenciar o fato de que a vida de Jesus de Nazaré foi sempre ao lodo dos últimos, assim como também sua morte (Mt 15,27; Lc 22,37). A Igreja que é herdeira desta realidade histórica (SOBRINO, 1982, p. 107) não pode esquecer esse ensinamento eclesiogênico[7].

Assumir a realidade de miséria, dor, sofrimento, martírios é afirmar que todo princípio de organização da Igreja se faz a partir dos pobres, não como "parte” dentro dela, mas como autêntico lugar teológico de compreensão da práxis cristã. Não queremos afirmar aqui que o ser "dos pobres” esgota a identidade da Igreja, mas que é fundamentalmente um dado de fé. A Igreja de Jesus Cristo é a Igreja dos pobres.

4.2 O SER DOS POBRES COMO PRINCÍPIO ESTRUTURADOR DA IGREJA EM SUA TOTALIDADE.

Na medida em que a Igreja percebe, na fidelidade a pessoa de Jesus de Nazaré, os pobres como ponto de partida e de convergência da sua ação pastoral ela se vê impelida a dar demonstrações claras desta vivência. Destarte, os pobres configuram uma forma própria do ser Igreja na medida em que encontram na sua vida comunitária a ligação com Deus.

Percebemos, pois, que a configuração feita pelos pobres na Igreja que junto deles se estrutura torna-se perceptível na maneira em que: celebram os sacramentos, assumindo o sinal como festa da vida, na forma como fazem a leitura da Palavra de Deus, reconhecendo nela a sua realidade de dor e o rosto de um Deus que caminha junto e liberta e nos cânticos que nos entoam mais diversos momentos celebrativos, que revigora a força de estar lutando por um novo céu e uma nova terra (Cf. Ap 21,1).

A fé faz com que os pobres se neguem a entregar-se ao acaso. Converter as estruturas neste conceito de rocha viva (1Pd 2,5a) é saborear a utopia do Reino que "lhes foi preparado deste a criação do mundo” (Mt 25,32).

CONCLUSÃO

Nossa intenção ao escrever o presente artigo foi demonstrar, mesmo que não profundamente, de que forma a Igreja dos pobres é fundamento para a teologia da libertação. Levamos em conta a problemática que decorre da particularização existente neste modelo de Igreja para explicitar que é um requisito estritamente evangélico. Percorremos do Vaticano II à sua influência na Igreja da América Latina, que desenvolveu suas reflexões próprias, para enfim, demonstrar que essa opção pelos pobres não recai em um erro de ortodoxia, pelo contrário demonstra a fidelidade mais singular de uma Igreja que caminha nos passos de Jesus de Nazaré.

Neste artigo realizamos um pequeno ensaio de reflexão com o sentimento de percorrer os caminhos já trilhados por muitos. Acreditamos que a Tradição de uma Igreja sempre viva não se coloca jamais longe dos pobres desta terra. Demonstramos, aqui, a nossa convicção na Igreja Una, Católica, Apostólica e dos Pobres... É com e por eles que somos a Igreja de Cristo, do Ressuscitado!

[...] Mas é importante, Mariama, que a Igreja de teu filho não fique em palavra, não fique em aplauso. Não basta pedir perdão pelos erros de ontem. É preciso acertar o passo de hoje sem ligar ao que disserem. Claro que dirão, Mariama que é política, que é subversão. É Evangelho de Cristo, Mariama [...]. (D. Helder Câmara, 1982).

RESUMO:

Dentre as mais diversas correntes teológicas existentes, surge em um contexto posterior ao Concílio Vaticano II, uma forma nova de se fazer teologia e de se compreender o modo de ser Igreja. A Teologia da Libertação na América Latina, nasce por uma abertura no modo de reflexão intraeclesial do ser Igreja e em um contexto social de opressão e libertação. Surge neste período uma Igreja profética que começa a desenvolver sua prática pastoral e sua reflexão teológica a partir dos últimos de Javé. O objetivo deste trabalho é avaliar o que significa ser de fato uma Igreja dos Pobres e como se deu o desenvolvimento desta vertente teológica a partir de uma hermenêutica latino-americana.

PALAVRAS-CHAVE:Teologia da Libertação; Igreja dos pobres; América Latina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil: de João XXIII a João Paulo II, de Medellín a Santo Domingo. Petrópolis: Vozes, 1993.

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BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja. Record, 2008.

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Constituição Dogmática Lumen Gentium. São Paulo: Paulinas, 2006.

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GUTIERREZ, Gustavo. A verdade vos libertará: confrontos. São Paulo: Loyola, 2000.

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KLOPPEMBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II, Vol. V, Quarta sessão. Vozes, 1966.

OLIVEROS, Roberto. "Historia de la teología de la liberación”, in ELLACURIA, Ignacio – SOBRINO, Jon. Conceptos fundamentales de la Teología de la Liberación. Tomo I. Madrid: UCA, 1990.

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SANTOS, Carlo. C. Teologia da Libertação: obra de Deus ou do diabo? Disponível em http://www.slideshare.net/carlosnaweb/teologia-da-libertao-obra-de-deus-ou-do-diabo-5437697. Acesso em 18 de jun. 2011.

SOBRINO, J. Ressurreição da Verdadeira Igreja. São Paulo: Loyola, 1982.

VIGIL, José Maria [org.]. Descer da Cruz os Pobres: Cristologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2007.

Notas:

(1) Pode-se constatar na obra de: KLOPPEMBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II,Vol V, Quarta sessão. Vozes, 1966.
(2) Para mais informações ver em: BEOZZO, José Oscar. Nota sobre os participantes da Celebração do Pacto das Catacumbas.
(3) Tem-se como marco principal da teologia da libertação, o livro de: Gustavo Gutierrez.Teologia da Libertação.Petrópolis, Vozes, trad. Jorge Soares, 1976.
(4) Pode-se aprofundar nesse sentido no livro de: BOFF, Leonardo. Teologia do Cativeiro e da Libertação. São Paulo: Vozes, 1980.
(5) Surgem sindicatos, movimentos populares, associação de moradores, de mães, etc.
(6) Podemos lembrar de Bartolomeu de las Casas ( o protetor dos índios) e dos mártires da América Latina que conscientes da necessidade de "fazer acontecer” o Reino, doaram suas vidas através dos mais diversos modos.
(7) Para maior aprofundamento vide a reflexão feita em: BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja. Record, 2008.

[Este trabalho foi orientado pelo Prof. Dr. Francisco de Aquino Junior].

*Graduando em Teologia pela Faculdade Católica de Fortaleza. Integrante das Comunidades Eclesiais de Base da Arquidiocese de Fortaleza e do Movimento por uma Formação Cristã Libertadora.
Adital

Lídia, por uma outra economia

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Mais um excelente artigo  do amigo Julio Lázaro Torma de Pelostas/RS, e que vem  nos mostrar o grande abismo que existe entre o verdadeiro cristianismo dos três primeiros séculos e o que se tornou a igreja católica.
O texto salienta muito mais do que o papel da mulher na proposta da construção do Reino, objetivo inicial e principal de Jesus e dos apóstolos,  deixa claro a presença das diaconisas e um tipo de "igreja" que se reunia nas casas como indiscutivelmente S. Lucas deixa registrado no início do livro dos Atos dos Apóstolos..
Quando vejo gente jovem estudando e debatendo essa perspectiva me encho de alegria e esperança de que  o caminho seja retomado e voltemos algum dia à proposta do mestre e que os cristãos voltem a ser distinguidos pelo amor e pela solidariedade. E Não pela tradição, a pompa e a rigidez.
Parabéns Julio!
Zeh


                                       Lídia, por uma outra economia
                                                              Júlio Lázaro Torma
                                                
                                     "Passa a Macedônia,vem em nosso auxilio" ( At 16,9)   
                                                                                                 
   Olhando a história do cristianismo,não podemos deixar de lado o importante papel desempenhado pelas mulheres,principalmente no primeiro século.Onde tiveram papeis importantes como missionárias e organizadoras de comunidades.
  O livro dos Atos dos Apóstolos,nos fala de uma mulher que teve papel significativo para a expansão do movimento de Jesus,além do mundo judaico-palestino,da Ásia e das comunidades judaicas,que viviam em outras localidades do império romano,como em Roma. A comunidade cristã estava inserida no mundo judaico e seguia a linha de Tiago Maior, de um cristianismo judaizante ( At15;Gl2,1-14).
  Na segunda viagem missionária Paulo, Silas e Lucas, saem da Galácia (Turquia),província da Ásia Menor, pelo ano 49-50 d.C, chegam a cidade de Filipos, importante cidade da Macedônia. Ao chegar em Filipos,procuram como de costume a comunidade judaica e depois os gentios (pagãos), na cidade não havia sinagoga e a oração era feita as margens do rio.
   Eles conversam com algumas mulheres entre elas havia uma mulher de Tiatira ( Akissar); " Uma mulher, chamada Lídia, da cidade de Tiatira, vendedora de púrpura"( At 16,11-15).
   Lídia era gentia (grega), que adorava o Deus verdadeiro, pagã que simpatizava com a fé dos judeus. Na cidade de Tiatira, praticavam a arte da tintura roxa, onde exportavam grandes quantidades de gênero escarlate. Lídia tinha uma fábrica em casa.
  No mundo greco-romano,as mulheres podiam desempenhar as funções de chefe de familia, isto é, elas podem comprar ou alugar,parreiras,cassas,pomares,olivais e trabalhar por conta própria ou direto na fábrica artesanal.Isso não discutiu com a proposta do cristianismo-judaismo ou Prov 31;10-31.Essas atividades permitem que as pessoas exercem o seu potencial desenvolvimento de forma sistemática.
   Na Bíblia a cassa era o centro de ensino,a escola era o  centro religioso.Na casa da mulher foi um lugar de vida,onde se prática a solidariedade e a recuperação da memória.
   As comunidades cristãs nascem nas casas em oposição aos templos oficiais de Jerusalém ou dos deuses oficiais do império.Na casa  se prática na mesa, no culto doméstico a solidariedade.
  Lídia era vendedora de púrpura (porphyra),não sabemos se era viúva ou mãe solteira.Alguns estudiosos falam que era rica,empresária,morava em casa grande,porque hospedou Paulo.
  Poderia ser pobre e o seu trabalho sustentava a casa,a familia,como muitos artesãos.Os pobres também gostam de receber e hospedar visitas.A familia de Lídia e a comunidade dos Filipenses é a primeira comunidade cristã da Europa.
  Ela  é a responsavel pela nascente comunidade,exercendo o papel de coordenadora da comunidade que se reúne em seu lar.Em Lídia e a comunidade que se reúne  em seu lar,o movimento de Jesus deixa o mundo semita e se torna universal.
   Ao olhar o protagonismo de Lídia nos remete,as mulheres de nossas comunidades,moradoras de bairros da periferia ou das áreas rurais, que constroem alternativas, ao sistema econômico,que as exclui.Podemos ver de forma individual,através de uma economia doméstica( ambulantes ou comércio familiar),através dos grupos de mulheres em nossas comunidades.
  Os empreendimentos de economia popular solidária, que é sua maioria constituído por mulheres,que administram e trabalham em conjunto.Onde elas decidem o que vão comprar,produzir,vender,repartir os lucros da produção de forma igualitária.
  Participam de cursos de formação profissional e pessoal.Elas são em sua maioria moradoras do mesmo local," chefes de familia"  ou "ajudam os esposos", nos grupos de amigas,elas partilham os sonhos,alegrias,tristezas de cada dia.
  Ao mesmo tempo em que mostram a sua forma de organização, de suprir as suas necessidades.Ganham o respeito de seus familiares e apreendem a viver, a solidariedade,constroem novos valores humanos e ajudam no desenvolvimento econômico das localidades em que vivem,com pouca tecnologia e muita criatividade.
  Vemos assim um projeto de produção doméstica que vai desde o local,o micro, conquista o macro,gerenciada por uma forma alternativa de organização produtiva e de atividade de trabalho,que dá origem a uma surpreendente diversidade de estratégia de sobrevivência.
   Ao resgatar o papel de Lídia nas nossas comunidades,devemos, resgatar e valorizar o protagonismo das mulheres que em meio aos seus afazeres domestico,chefes de familia,constroem,uma nova forma de economia popular solidária,não medem esforços em levar adiante e manter as nossas comunidades e serviços pastorais.
  Elas resistem e gesta uma nova economia, que seja de fato mais humana,igualitária,onde todos posam de fato viver com dignidade.
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                      Referencia bibliografica
 Bíblia Sagrada: ed. Ave Maria, São Paulo, 1993
 Aida Soto B; Lídia, a vendedora de púrpura, uma alternativa doméstica, in Economia: Solidariedad y Cuidad. Rev, RIBLA, Nº 51
Richard, Pablo: O movimento de Jesus depois da ressurreição. Ed Paulinas, São Paulo, 1999


2 de agosto de 2011

"Há um cisma na Igreja entre a cúpula hierárquica e as bases''.

'Há um cisma na Igreja entre a cúpula hierárquica e as bases''. Entrevista com Hans Küng
 
“Diagnóstico: doença terminal. A Igreja ainda tem salvação?” Esta é a pergunta que se coloca em seu último livro, publicado na Alemanha pela Editora Piper Verlag, o teólogo crítico e especialista em ética mundial Hans Küng. “Na situação atual não posso guardar silêncio”, disse Hans Küng. Na sua opinião, a Igreja católica se encontra imersa em uma grave crise. Crise que é necessário descrever com objetividade e sem preconceitos antes de aplicar a terapia adequada. Crise que se plasma, entre outras coisas, em censura, absolutismo e estruturas autoritárias.
A entrevista é de Ralf Caspary e está publicada no sítio espanhol Religión Digital, 30-07-2011. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Senhor Küng, me chamou a atenção que seu livro está impregnado de um certo alarmismo. Não podia mais ficar calado, devia escrever este livro neste momento concreto da história. Metáforas como “doença”, “recaída”, “aumento da febre” são abundantes no seu livro. A que se deve este alarmismo?
Alarma, sim, mas não alarmismo. Se me permite, explico imediatamente. Vou lhe dizer com toda a sinceridade que nestes momentos, apenas alguns meses depois da sua publicação, vejo as coisas inclusive mais pretas que a cor da capa do meu livro. Temos uma iniciativa de diálogo dos bispos que ficou esquecida. Creio que o sociólogo da religião Michael Ebertz (Friburgo) tem razão quando fala de uma segunda crise na Igreja católica, depois da crise dos crimes sexuais. O episcopado se mostra obviamente incapaz de nos comunicar o que realmente aconteceu, para que se possa encaminhar devidamente o diálogo. Seguimos sem saber como proceder para iniciar este diálogo, os bispos não se colocam de acordo e querem excluir determinados temas. Recentemente assistimos a uma série de acontecimentos muito desagradáveis que justificam tanto a minha análise quanto o meu alarma.
Você chegou a dizer que estamos na segunda fase da crise. Falou da falta de disposição para dialogar. Esclareça-nos, por favor, este ponto.
Vamos supor que os bispos tenham aprendido que não podem continuar a agir de uma forma tão autoritária como vinham fazendo até agora, que vão escutar o povo. Mas não é bem assim, nem sequer aprenderam isso. Creio que nós somos o povo! As pessoas dizem: nossa paciência está chegando ao fim, queremos participar das decisões, também em nossas paróquias. Queremos escolher os nossos bispos, queremos ver mulheres nos diferentes cargos, queremos que haja agentes de pastoral, homens e mulheres, que sejam ordenados/as sacerdotes. São slogans e demandas que refletem o descontentamento das pessoas. De fato, se produziu um cisma dentro da Igreja entre os que, lá encima, pensam que podem continuar atuando com o estilo de sempre e o povo e uma boa parte do clero liberal.
Que reações seu livro produziu até agora?
Eu o enviei a todos os bispos alemães e até agora as reações foram, quando menos, cordiais. Também o enviei ao Papa Bento com uma carta cortês na qual exponho como, no fundo, minha intenção é ajudar a Igreja, embora tenha uma ideia diferente de como deveríamos proceder. Ele me fez chegar seu agradecimento, o que me parece um gesto positivo. Tenho sumo cuidado em tentar conduzir o debate com objetividade, sem ultrapassar a barreira da ofensa pessoal e sem que a questão derrape para um assunto pessoal.
Que reações provocou entre os leigos?
Em poucas ocasiões recebi tantas cartas de agradecimento pelo livro, apesar de se tratar, de fato, de uma análise algo “deprê” que pode produzir desânimo. Me agradecem muito pelo fato de que afirme que a recuperação é possível. O livro está repleto de propostas concretas. Não posso me queixar das reações, pelo contrário, me anima muito receber quase diariamente cartas de tantas pessoas, muitas vezes de pessoas simples.
Quais são, para você, os principais sintomas desta crise da Igreja católica que diagnostica no livro?
Basicamente que as paróquias estão secando lentamente, em parte por causa da mensagem dogmática que vem reiteradamente prescrita de cima. Naturalmente, temos também o problema dos cargos eclesiais. No livro o ilustro com o exemplo da minha própria comunidade na Suíça. Durante muito tempo tivemos quatro sacerdotes (os “quatro cavaleiros”); hoje não resta nenhum. Continuamos a ter dois aposentados e um diácono. O diácono faz tudo de maneira fenomenal, um alemão, certamente. Não obstante, não pode presidir a eucaristia por não ter sido ordenado sacerdote. E não pode ser ordenado sacerdote porque é casado. É completamente absurdo. Temos que abordar uma série de pontos muito concretos: 1. O celibato deve ser opcional; 2. As mulheres devem ter acesso aos cargos eclesiais; 3. Deve-se permitir que os divorciados participem da eucaristia; 4. Deverão se estabelecer comunidades eucarísticas entre as diferentes confissões sem esperar outros 400 anos.
Estes são alguns pontos para a terapia. Voltemos ao diagnóstico. Como você denominaria a doença que afeta o núcleo da Igreja católica?
A doença é o sistema romano. Foi introduzido pelos Papas da denominada Reforma Gregoriana, em honra a Gregório VII. Foi assim que se introduziu o papismo, o absolutismo papal, segundo o qual uma só pessoa na Igreja tem a última palavra. Isto produziu a cisão da Igreja oriental que não aceitou estas modificações. Dessa época procede o predomínio do clero sobre os leigos. Padecemos um celibato para todo o clero que se introduziu no século XI. Aqui penso que está a origem da doença. Aí surgiu o germe. Tentou-se erradicá-lo com a Reforma, mas em Roma encontrou resistência. Com o Vaticano II se tentou lutar contra tudo isto. Teve um êxito parcial, embora não se permitiu debater nem sobre o celibato nem discutir sobre o papado. Pode-se considerar que o Concílio teve um sucesso pela metade. Neste momento a situação é calamitosa. Em Roma, em vez de ter aprendido algo, como era de se esperar, e ter empreendido o caminho da liberalização, os dois Papas restauracionistas – Wojtyla e Raztinger – fizeram o contrário. Fizeram todo o possível para que o Concílio e a Igreja retrocedam a uma fase pré-conciliar.
Refere-se ao Concílio Vaticano II que tentou produzir uma certa abertura?
Sim, os frutos do Concílio Vaticano II foram excelentes: integrou o paradigma da Reforma na Igreja, incorporou as línguas vernáculas na liturgia, todo o povo participa hoje ativamente da liturgia, se revalorizou o papel dos leigos e o da Igreja oriental. Inclusive houve uma integração dos paradigmas da Ilustração, da Modernidade. Desde então se reconhece a liberdade de culto e os direitos humanos; e temos uma atitude positiva em relação às religiões do mundo e em relação ao mundo secular. Mas estes são precisamente os pontos em que Roma quer retroceder. Roma está organizada para reter o poder.
Se entendi corretamente, nas últimas décadas, na Igreja católica, se produziu uma recaída, um retrocesso, uma forte concentração no sistema de domínio romano. É isto que você critica?
Sim. Isto fica claro nos seguintes pontos: primeiro, foram sendo publicados continuamente documentos sem perguntar o episcopado e sem consultar ninguém previamente. Trata-se de documentos da cúria que destacam a pretensão de estar em posse da verdade, ter o monopólio sobre a verdade da Igreja católica. Em segundo lugar, temos toda a infeliz diretriz relacionada com a moral sexual que foi sendo publicada. Esta é a linha. Em terceiro lugar, temos a política de escolha de pessoas. De forma sistemática, para os postos de bispo e outros cargos da cúria se elegem pessoais exclusivamente fiéis a essa linha. Escrevi um capítulo inteiro sobre os motivos pelos quais os bispos guardam silêncio: porque já foram selecionados, porque previamente se comprometeram, porque na ordenação prestaram juramento ao Papa, porque não podem falar livremente. Por isso escutamos de todos a mesma opinião. Os bispos se encontram em uma situação de grande pressão, por um lado a que chega de cima, por outro, a da comunidade crente.
Portanto, você dirige suas críticas também contra o monopólio do poder e o monopólio da verdade do Papa?
Sim, exatamente.
Essa seria a principal ferida?
Imagino que se tivéssemos tido outro Papa na linha de João XXIII, a instituição dePedro seria algo magnífico. Poderia ser uma instituição de guia pastoral, que inspira, que une. O papado atual é uma instituição de domínio que divide. O Papa divide a Igreja. Esta é uma tese que não está sendo suficientemente levada a sério. Segundo as últimas pesquisas, 80% dos católicos alemães querem reformas. Os 20% que não as querem são, infelizmente, os que são levados a sério. Alguns bispos sustentam que entre os católicos há dois grupos. Não é correto, não se trata de dois grupos. A maioria quer reformas. É apenas um grupo minoritário, com forte presença na mídia, que é contra as reformas. Eles não representam a Igreja que desejamos ter. Como povo de Deus, queremos uma Igreja na qual nos sentamos na mesma roda, não queremos um pequeno grupo dominante que controle tudo.
Há algo que não entendo bem. Se você critica o Papa atual e o compara com outros Papas mais liberais, então não é um problema da estrutura da Igreja, mas da personalidade do Papa.
Também recai na personalidade do Papa. Joseph Ratzinger procede de um ambiente conservador. Eu também procedo de um ambiente conservador. Isto não é nenhuma vergonha, inclusive se poderia tornar uma vantagem. Mas ele interiorizou este ambiente. Ele viveu principalmente na Alemanha sem conhecer bem o mundo. Depois se mudou para Roma onde viveu em um gueto artificial no qual não se percebe o que acontece no resto do mundo. Ao ler algumas declarações suas, como o decreto que publicou sobre as outras Igrejas sendo ainda cardeal, a gente se pergunta: onde vive este homem realmente, na lua? Agora anunciou uma campanha de evangelização nada convincente. Como se quer evangelizar o mundo com um catecismo que pesa literalmente um quilo? Pretende torturar as pessoas? Além disso, há a questão do Ensino na Igreja. Ele fala expressamente do “ensino do Papa”. Isto, evidentemente, não há pessoa ilustrada que leve a sério. Quem vai admitir a estas alturas que uma pessoa sozinha reclame para si o poder legislativo, executivo e judiciário sobre uma comunidade de mais de um bilhão de pessoas? Em terceiro lugar, está se dando um impulso problemático ao tipo de religiosidade popular tradicional que se quer promover. Assim acontecem essas cenas terríveis na qual um Papa beija o sangue de seu predecessor em seu relicário de prata. Mas, bom, onde estamos? Este é o obscurantismo medieval.
Aprecio o fato de que se indigne quando fala do Papa atual.
Não, não se trata do Papa atual.
Em seu livro o critica com dureza. Fala, por exemplo, de boato e de esbanjamento, de estruturas autoritárias. Se poderia censurar: Küng fala com certo ressentimento?
Não. Creio que continuo tendo a capacidade de poder falar muito bem com o Papa pessoalmente. Continuamos mantendo correspondência e ele sabe que minha preocupação é simplesmente a Igreja; mas que tenho uma concepção diametralmente oposta à dele no que se refere ao caminho a seguir. Interessa-me ressaltar que não chegamos a esta situação pelo Papa Ratzinger, mas em decorrência de uma evolução desde o século XI. Embora Joseph Ratzinger e seu predecessor tenham feito todo o possível para voltar a um paradigma medieval da cristandade.
Sr. Küng, o sistema romano não se fundamenta no Novo Testamento e na História da Igreja?
Não. A própria palavra “hierarquia” não a encontrará no Novo Testamento. Aparece seis vezes a palavra “diaconia” com a famosa frase: “quem quiser ser o primeiro, seja o servo de todos”. Nessa mesma linha temos também a cena do lava-pés. Mas o Papa quer ser senhor entre os senhores. Aparece como um faraó moderno. Se observarmos as cerimônias na Praça São Pedro, uma só pessoa está no centro, ao passo que os bispos se mantêm à distância, como figurantes. Ninguém tem nada a dizer, apenas uma pessoa fala, apenas uma pessoa decide tudo. Esta não é uma Igreja de nosso tempo. E não corresponde absolutamente ao Novo Testamento nem à sua época, onde reinava a fraternidade, onde as mulheres estavam presentes e onde havia uma comunidade carismática, como se vê nas comunidades paulinas.
Todo o contrário do que se pratica hoje. Atualmente, reina uma estrutura medieval que, no princípio, só se encontra nos países árabes. Recorda-nos o comunismo: baseia-se no secretário de um partido único que decide tudo. O resto foi escolhido em função de sua lealdade à linha papal. O mesmo acontece com os bispos. Embora haja cada vez menos crentes que aceitam este sistema autoritário. Nem na Arábia se aceita mais os autocratas. Eu defendo que na Igreja católica os autocratas também não tenham nenhum futuro.
Você disse que a Igreja católica não está à altura da época moderna. Não obstante, se poderia objetar que essa é precisamente sua vantagem. Em que você pensa que deveria se transformar? Em uma empresa moderna em sintonia com os tempos atuais? Nesse caso, não ofereceria nenhuma alternativa.
Não é que eu seja um partidário absoluto da modernização. A Igreja deveria, em primeiro lugar, voltar às suas origens. Trata-se de ver se ainda podemos apelar a Jesus de Nazaré ou não. No meu livro descrevo uma cena: é impensável que se Jesus de Nazaré aparecesse em uma cerimônia do Papa, tivesse lugar. É simplesmente uma manifestação de poder pomposa e imperial, onde todos aplaudem e os senhores deste mundo participam para serem vistos e recolher votos. Essa imagem não tem nada a ver com a Igreja que Jesus queria, ou seja, não tem nada a ver com a comunidade de discípulos de Jesus. Não se trata de modernizar a qualquer preço. Em determinadas circunstâncias, precisamente será preciso oferecer resistência à Modernidade, justamente nos aspectos nos quais é desumana. Escrevi suficientes livros críticos com a Modernidade, por exemplo: “Anständige Wirtchaften” (Uma economia honrada), que trata sobre a falta de moral da economia. O que não pode acontecer é que adotemos como solução a Idade Média, quando deveríamos dar o passo da Modernidade à Pós-modernidade.
Hans Küng apela para Jesus, o Papa apela para Jesus. O que pode fazer um leigo diante destas duas tentativas de legitimação?
Deveria ler a Bíblia, assim se daria conta de onde está Jesus. Quando Ratzinger, na qualidade de teólogo, também como Papa, escreve sobre Jesus – embora realmente não devesse que escrever livros, mas dirigir a Igreja – o que faz sobre o Cristo dogmático que caminha sobre a terra? Não fala de que Jesus contradizia as instituições religiosas de seu tempo, de que no final foi assassinado por aqueles que se consideravam ortodoxos. Pelo contrário, sempre fala do Cristo dos dogmas, da Igreja e da administração.
Voltemos aos bispos. Você mencionou que são todos muito fiéis à linha papal, e que se trata, de fato, de um grupo hermético e estanque. Como se chegou a isto?
É como se o Papa pudesse nomear sozinho todos os bispos. Sobretudo, se comprometem com sua linha. Acontece literalmente como no partido comunista, onde ninguém tem nada a dizer salvo o chefe de Moscou. Por isso, todos dizem a mesma coisa. Se falas individualmente com os bispos, te dizem: “Você tem razão, evidentemente, mas...”.
Se houvesse apenas um bispo na República Federal da Alemanha que, por fim, dissesse como está a situação, que assim não se pode continuar, que é preciso fazer reformas, viriam por cima dele de Roma e do Vaticano, interviriam através do núncio, etc. Também teria contra si o resto dos bispos, em especial a facção de Meisner, que procura exercer o terror psicológico na Conferência Episcopal e, naturalmente, toda a cúria romana. Teria contra si todo esse pequeno grupo de conservadores e suas agências de imprensa, as quais divulgam continuamente notícias. Teria que ser muito forte. Embora pudesse contar, ao menos, com o apoio do povo.
No centro de sua crítica está o sistema romano. Esta questão já foi abordada. Na conversa prévia à entrevista você comentou que preferiria não falar dos casos de abuso sexual. Não obstante, o menciono porque há um ponto que deveríamos esclarecer: estes casos de abusos sexuais fazem, do seu ponto de vista, parte de um problema estrutural? Em sua crítica ao papado você fala justamente de problemas estruturais.
Evidentemente. Sempre houve uma aversão em relação à sexualidade, não apenas na Igreja, mas também na Antiguidade. Mas temos o problema do celibato do clero, cuja origem remonta às normas impostas pelos Papas do século XI. Não quero dizer, em absoluto, que o celibato desemboque necessariamente na homossexualidade ou no abuso sexual. Em absoluto. Mas quando dezenas de milhares de padres reprimem sua sexualidade e, por mais que sejam ótimos párocos, não podem ter esposa nem família, então temos um problema estrutural. Estas condições devem ser mudadas definitivamente. Embora pareça ser um tema sobre o qual não se deve discutir. OBispo de Rottenburg fez uma conferência fabulosa sobre o Espírito Santo, ao qual é preciso se abrir, e se manifesta a favor do diálogo; mas, no dia seguinte, leio na imprensa – para grande decepção de muitos dentro e fora da diocese – que o próprio bispo, que fala tão maravilhosamente, suspendeu uma jornada sobre a sexualidade em sua própria academia. O que nos resta?
Essa jornada estava prevista para o final de junho e o tema era a moral sexual atual.
Sim, e em vez de participar e defender suas ideias nas quais está tão bem formado, se esquiva. Desautoriza a diretora da academia e todos aqueles que querem participar. Dessa forma, deixa claro que o diálogo de que fala não é mais que uma frase vazia.
Como pensa que a Igreja católica está agindo em relação aos casos de abusos sexuais?
Segue sem adotar uma postura clara, por exemplo, sobre se os agressores deverão responder diante de um tribunal civil ou como vai se proceder, como se deduz das últimas notícias que chegam de Roma e dos Estados Unidos. Na Alemanha, dizem que já se desculparam e se dá o caso por encerrado. Ao mesmo tempo, nenhum bispo quer falar de que sejam questões estruturais, nem de que é preciso abordar de uma vez por todas temas como o celibato dos homens ou a ordenação de mulheres. Mas, por que não? O que se esconde por trás disso, na minha opinião, é simples e chama-se covardia, o contrário dessa franqueza apostólica que caberia esperar e da qual se fala na Bíblia, da mesma forma como os apóstolos falavam com liberdade. Os bispos atuais calam. E, se há ocasião para exercer o seu poder, o exercem.
É uma vergonha que se vaie o presidente da Conferência dos Bispos da Alemanha no Dia da Igreja. Por quê? Porque ele, de forma arbitrária, tomou a palavra para criticar o Manifesto dos teólogos. Quando o Manifesto dos teólogos– assinado por 300 – é redigido em termos muito educados. Assim não se pode continuar.
Até aqui o diagnóstico da crise. Neste contexto você recorre continuamente à metáfora da enfermidade; passemos agora às propostas para a terapia. Você tem uma imagem concreta da reforma da Igreja. Da nossa conversa deduzo que a reforma que o Sr. Küng tem em mente passa pela eliminação total da instituição da Igreja.
Não, pelo contrário. Gostaria que reconstruíssemos a instituição da Igreja a partir de baixo, evidentemente, com base no Novo Testamento e no humanitarismo.
Então, é preciso se desfazer totalmente das estruturas atuais ou não?
É preciso abolir, evidentemente, o absolutismo do Papa. Embora se possa manter e apoiar perfeitamente uma instituição que dirija a pastoral, presidida por um bispo em Roma, sempre que for na direção do Evangelho. Poderia ter incluído uma função ecumênica. O que critico é que uma só pessoa queira dizer tudo e, por exemplo, que destitua um bispo, como voltou a fazer o Papa Ratzinger, pela primeira vez desde o Concílio.
Temos o caso do bispo Morris da Austrália. Foi destituído porque disse que não tinha mais padres e pedia a abolição do celibato e que se admitisse mulheres ao sacerdócio. Quando se cessa uma pessoa de seu cargo desta forma só cabe concluir: esta não é a Igreja de Jesus Cristo, isto é um sistema que exige uma total identificação e nem sequer aos seus bispos é permitido a menor divergência.
Não obstante, a instituição do papado lhe pareceria aceitável se o Papa fosse mais liberal, mais aberto? Ou diria que esta função do papado já não está em consonância com os tempos atuais?
Não. Sempre fui a favor do equilíbrio, do check and balance. É bom que haja uma comunidade, também é bom que haja algumas autoridades. Um homem como João XXIII teve um efeito maravilhoso na Igreja. Fez mais em cinco anos que Wojtyla com suas dezenas de viagens. Mudou toda a situação. Foi uma grande oportunidade. Não obstante, Sr. Caspary, devo lhe confessar que hoje tenho mais confiança nas paróquias e não o quero privar de uma boa notícia que recebi. Duas paróquias de Bruchsal, as comunidades romano-católicas de St. Peter e a comunidade paroquial de Paul Gerhardt, evangélica, escrevem: “Damos por terminada a divisão que durante quase 500 anos a cristandade viveu em nossa zona”. E acrescentam – espero que isso se publique logo: “Reconhecemos que em todas as paróquias que assinam este comunicado se vive igualmente como seguidores de Cristo e como comunidades de Jesus Cristo. Reconhecemos que em nossas paróquias Jesus Cristo nos convida à mesa do Pai e sabemos que Ele não exclui ninguém que queira segui-lo. Pela presente, manifestamos expressamente a nossa recíproca hospitalidade”.
Espero que haja muitas paróquias na Alemanha que façam o mesmo. Caso os de cima não queiram, em nível paroquial podemos dar por superada e finalizada essa cisão.
Como você imagina essa Igreja construída de baixo para cima? Quais seriam seus fundamentos institucionais? Não haveria um risco de caos, de que a Igreja se dividisse ainda mais em múltiplas direções?
O que acabo de ouvir de Bruchsal é justamente o contrário de uma cisão. Aproxima as paróquias. E na época do Concílio desfrutamos de grande unidade na Igreja. A divisão atual vem de cima porque se tentou invalidar o Concílio, porque alguns estão convencidos de que é preciso reintroduzir a missa em latim. Diante destes fatos é preciso protestar. É possível oferecer resistência como no caso das coroinhas. Os crentes disseram simplesmente: queremos que haja coroinhas e pronto. Agora, os de cima procuram estabelecer que, ao menos nas missas em latim, não haja mulheres. Necessitamos que haja uma resistência ativa, do contrário a Igreja vai a pique. Estamos em uma situação desesperada, perdemos praticamente toda a geração jovem. Esta é a diferença com relação aos países árabes onde centenas de milhares de pessoas saem às ruas. Há hoje 100.000 que saem às ruas para pedir reformas na Igreja católica? Continuamente me encontro com pais que dizem: “Você sabe, me dá tanta pena que, sendo católicos convencidos, depois de ter tido sempre um bom ambiente familiar em casa, não consigamos que nossos filhos participem da Igreja”.
Falou de desobediência civil. Pode concretizar isso? O que fazem os padres nas paróquias?
Os párocos, em sua maioria, praticam uma desobediência discreta. Se um pai evangélico se aproxima para receber a comunhão, não lhe perguntam se é evangélico, assim como se chegou a fazer nas jornadas de jovens de Colônia. Também não anunciam, assim como se volta a exigir que, em conformidade com o Papa, só determinadas pessoas possam participar da eucaristia. Os párocos, os bons párocos, prescindem dessas normas e se viram bastante bem. Embora eu seja a favor de que houvesse mais párocos como os de Bruchsal que trouxeram à luz sua resistência, de forma que as pessoas se deem conta de que avançamos.
A Igreja católica é capaz de iniciar ela mesma a reforma a partir de dentro?
Bom, conheço o sistema a partir de dentro e luto para que as reformas sejam feitas. Sei que tenho milhões de pessoas do meu lado. Neste sentido é questão de tempo. Simplesmente não podemos avançar baseando-nos em um senhor absoluto que prescreve o que deve ser feito na cama (palavra chave: a pílula...) e que estabelece todas as normas desde seu limitado campo de visão. Creio que a política papal demonstrou já ser um fiasco e não nos deveria corromper mais. A única pergunta que também se fez no partido da União Soviética, o partido comunista, é esta: há algumGorbachov que possa nos tirar desta choça?
Quer isto dizer que seria favorável a algo como uma Perestroika na Igreja? Isso requer uma personalidade muito carismática.
Reclamo uma Glasnost e uma Perestroika, especialmente para as finanças da Igreja. Gostaria de saber como realmente se pagam as coisas em Roma, quem parte o bacalhau.
Esse seria outro assunto. A Perestroika seria para você...
... a independência.
Veremos se suas ideias e sua visão da Perestroika caem em solo fértil e o que vai acontecer nos próximos 20 anos dentro da Igreja católica. Uma vez lido o seu livro, me inclinaria por um certo ceticismo e pessimismo. Não obstante, se encontra entre as coisas boas, penso.
Só posso apelar e esperar que haja suficiente gente que se ponha em pé e, por fim, se rebele.