O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

3 de abril de 2014

A doença de ser normal

revista Superinteressante Julho 2013

A humanidade pode estar sendo acometida por uma epidemia global: a normose, uma obsessão doentia por ser normal

por Carolina BergierJá foi normal duas pessoas se digladiarem até a morte para entreter a multidão. Também já foi normal queimar mulheres na fogueira por bruxaria e fazer pessoas trabalharem sem remuneração com direito a castigos físicos só pela cor da pele. Era normal também humanos se alimentarem de sua própria espécie e casarem sem amor. Já foi normal passar 40 horas da semana fazendo algo que se detesta, mentir para ganhar dinheiro e devastar florestas inteiras em busca de um suposto desenvolvimento. Peraí, este último ainda é normal. Afinal, será que ser normal - e achar normais coisas que não deveriam ser - pode ser uma doença?

Segundo alguns psicólogos, sim. A doença de ser normal chama-se, segundo eles, normose: um conjunto de hábitos considerados normais pelo consenso social que, na realidade, são patogênicos em graus distintos e nos levam à infelicidade, à doença e à perda de sentido na vida.

O conceito foi cunhado quase que simultaneamente pelo psicólogo e antropólogo brasileiro Roberto Crema e pelo filósofo, psicólogo e teólogo francês Jean-Ives Leloup, na década de 1980. Eles vinham trabalhando o tema separadamente até que um terceiro psicólogo, o francês Pierre Weil, se deu conta da coincidência. Perplexo, Weil conectou os dois, e os três juntos organizaram um simpósio sobre o tema em Brasília, uma década atrás. Do encontro, nasceu uma parceria e o livro Normose: A patologia da normalidade.

No fim dos anos 70, Crema estava encucado com o fato de muitos autores apontarem uma "patologia da pequenez": o medo de se deixar ser em sua totalidade. Ele deparou-se com muitos pensadores, entre eles o alemão Erich Fromm (1900-1980), que falava do medo da liberdade, e o suíço Carl Jung (1875-1961), que afirmava que só os medíocres aspiram à normalidade. Crema misturou ao caldo a célebre declaração do escritor britânico G.K. Chesterton (1874-1936), que disse que "louco é quem perdeu tudo, exceto a razão", e acrescentou os anos de observação e prática em sua clínica pedagógica.

Assim nasceu o conceito de normose, que, segundo ele, "ocorre quando o contexto social que nos envolve caracteriza-se por um desequilíbrio crônico e predominante". A normose torna-se epidêmica em períodos históricos de grandes transições culturais - quando o que era normal subitamente passa a parecer absurdo, ou até desumano. Foi o que aconteceu no final do período romano, em relação à perseguição de cristãos, ou no início da Idade Moderna, com o fim da legitimidade da Santa Inquisição, ou no século 19, com a perda de sustentação moral da escravidão. E, segundo Crema, Leloup e Weil, é o que está acontecendo de novo, com a crise dos nossos sistemas de produção, trabalho e valores.

"O novo modelo é ainda embrionário, e os visionários dessa possibilidade de sociedade não-normótica ainda são minoria", diz Crema. Enquanto a maioria de nós se adapta a um ambiente social doente, quem resiste à normose acaba considerado desajustado, por não obedecer ao estado "normal" das coisas.

Como aquele cara que, mesmo ganhando o suficiente para fornecer educação, moradia e alimentação para si e seus filhos, é considerado vagabundo e louco por, em plena quarta-feira ensolarada, liberar as crianças da aula e levá-las à praia. Mas como? Em dia de semana? As crianças vão faltar aula? Pois é. De repente, ele acha que um dia na natureza vai fazer mais bem a seus filhos do que horas sentados em sala de aula. Será que ele não é saudável, e doentes estão os outros?

Desnormotização


Para a filósofa Dulce Magalhães, que escreve sobre mudanças de paradigmas, o normótico acredita que geração de renda e falta de tempo para si ou para a família são indissociáveis. "As pessoas consideram que trabalhar muitas horas, colocar em risco sua saúde e suas relações é normal", diz ela. "Mas isso tem um custo pessoal e social alto demais, que acabam levando a problemas de saúde pública e violência, por exemplo."

Dulce acha que a cura para a normose está em mudarmos de modo mental, abandonando o modelo da escassez, que hoje rege o mundo, e abraçando o da abundância. Ela explica: "Desde a infância, aprendemos que o que vem fácil vai fácil e que, se a vida não for difícil, não é digna. Precisamos mudar isso e entender que esforço não é tarefa." Quantos de nós chegamos em casa reclamando para mostrarmos (a nós mesmos e aos outros) que trabalhamos muito e tivemos um dia duro, como se isso trouxesse algum tipo de mérito?

Segundo Crema, cada um de nós tem talentos diversos, mas "o normótico padece de falta de empenho em fazer florescer seus dons e enterra seus talentos com medo da própria grandeza, fugindo da sua missão individual e intransferível". "Quando temos necessidade de, a todo custo, ser como os outros, não escutamos nossa própria vocação", acredita.

O carioca Eduardo Marinho, hoje com 50 anos, percebeu cedo que não queria ser como os outros. Filho de militar, abriu mão de sua condição financeira e de sua faculdade ao se dar conta, aos 18 anos, que não queria olhar para sua vida quando velho e pensar que não tinha feito nada relevante. "Não queria ser bem-sucedido e me sentir fracassado". Eduardo saiu pelo País pedindo abrigo e comida em troca de favores e buscando algo que o preenchesse. Depois de passar por poucas e não tão boas pelo Brasil, deu voz a sua vocação. Hoje é artista plástico.

Ele acredita que a desnormotização se inicia dentro de cada um: "Que tal olhar para dentro de si mesmo? É aí que começa a revolução", sugere. Claro que, para isso, não é mandatório dormir nas ruas. Fazer o trajeto que Eduardo escolheu para si pode ser perigoso e não há nenhuma garantia de sucesso.

Bug cerebral


A cura da normose é trabalho individual, mas alguns esforços sociais podem ajudar. Para começar, seria um adianto se tivéssemos um novo modelo educacional. A escola poderia ser o lugar onde as crianças descobrem suas verdadeiras vocações - em vez de tentar padronizar os alunos e convencê-los a serem normais.

Mundo afora, estão surgindo escolas com uma nova lógica, como a Escola da Ponte, em Portugal. A instituição não segue um sistema baseado em séries, e os professores não são responsáveis por uma disciplina ou por turmas específicas. As crianças e os adolescentes que lá estudam definem quais são suas áreas de interesse e desenvolvem seus próprios projetos de pesquisa, tanto em grupo como individuais.

Algo similar parece estar acontecendo no mundo empresarial, onde mais e mais empreendimentos estão dando voz à liberdade individual. O caso clássico, sempre citado, é o do Google, cuja sede, em Mountain View, na Califórnia, conta com salas de jogos, videogames, espaços ao ar livre e tempo reservado para que cada funcionário desenvolva seus próprios projetos para a empresa, com total autonomia.

Claro que não há vagas para todos nós no Google nem para todos os nossos filhos na Escola da Ponte. A cura da normose não vai ser resultado de uma ou outra iniciativa isolada - ela só vai ser possível quando houver no mundo gente suficiente disposta a questionar tudo o que achamos normal.

E talvez isso demore anos para acontecer. A explicação para isso pode estar num bug que todos carregamos no cérebro, que tem uma tendência de recusar sempre novos jeitos de olhar o mundo. É o que explica o psicólogo israelense Daniel Kahneman, ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 2002, em seu livro Rápido e Devagar: Duas formas de pensar. Segundo ele, nosso cérebro confunde o que é familiar com o que é correto: ao ver ou sentir algo que desperta alguma memória, o cérebro define aquele "familiar" como "correto", da mesma maneira que o novo é decodificado como passível de desconfiança.

Esse sistema foi muito útil para nossos antepassados homens das cavernas, que não podiam mesmo sair comendo qualquer frutinha nova que aparecesse à sua frente. Mas, nos dias de hoje, que exigem novas ideias para lidar com um mundo em mudança constante, esse mecanismo cerebral virou um entrave à inovação. Segundo essa tese, a normose não é uma doença: é uma característica humana, moldada pela evolução. Ou seja, talvez ser normótico seja normal.

Você tem normose?


Normose é um conjunto de hábitos considerados normais pelo consenso social que, na realidade, são patogênicos e nos levam à infelicidade, à doença e à perda de sentido na vida.

"Que tal olhar para dentro de si mesmo?

É aí que começa a revolução". Importante notar que, para olhar para dentro e descobrir sua vocação, não é mandatório dormir pelas ruas do país.

Para saber mais

Normose: A patologia da normalidade
Jean-Yves Leloup, Pierre Weil e Roberto Crema, Verus, 2003

Nosso querido São João

Quando João XXIII escapava do Vaticano


O ajudante de câmara do papa Roncalli, Guido Gusso, conta algumas peripécias do Papa Buono
Cidade do Vaticano, 02 de Abril de 2014 
O desejo de "dar algumas escapadas" do Vaticano parece que fez parte da vida de mais do que um papa! É o que nos conta Guido Gusso, que foi ajudante de câmara de João XXIII e conhecia muito bem o papa Roncalli. Gusso participou da coletiva de apresentação do projeto de digitalização dos arquivos da Rádio Vaticano. Ele trabalhou durante cinco anos com Roncalli no patriarcado de Veneza e continuou como auxiliar dele depois que o patriarca foi eleito papa e assumiu o nome de João XXIII.
Certa vez, passeando pelos jardins do Vaticano, o papa Roncalli disse a Gusso: "O passeio é sempre este aqui! Leve-me à fonte do Janículo ou à Villa Borghese". E Gusso respondia: "Santidade, não podemos!". E o papa rebatia: "Mas como é que não? Pegue o carro e vamos". E a cena se repetia quando o papa estava em Castel Gandolfo.
Gusso contou um caso em que eles “escaparam” da vigilância dos gendarmes e guardas suíços, já que o papa não se sentia à vontade com tanto protocolo ao seu redor onde quer que fosse: “Eu contei ao papa que tinha estado em Patroni del Vivaro, perto de Roma, um lugar parecido com Sappada, na nossa região. Ele tinha curiosidade, queria ver. E falou assim: ‘Vamos fazer uma coisa. Tem uma porta perto do cemitério de Albano. Consiga as chaves. Abra e vamos deixar aberto uns dez dias, assim ninguém vai saber o que está acontecendo’. Depois, um dia que estávamos nos jardins, ele me disse: ‘Vamos pegar o carro, damos alguma volta a mais para despistar os gendarmes, você abre a porta e nós vamos lá’. E foi assim que os dois visitaram Vivaro. Quando chegaram ao trevo entre Artena e Frascati, Gusso perguntou ao papa aonde ele queria ir e o papa respondeu: ‘Vamos voltar para casa, porque se não...’. Quando chegaram, os gendarmes já estavam em crise, assim como a polícia italiana. "Vocês tinham que ver a cara dos guardas suíços...", recordou Gusso, divertido.
O antigo ajudante de câmara do “Papa Buono” citou mais duas situações em que João XXIII "escapou" do Vaticano. Em uma delas, ele foi visitar o embaixador inglês que estava hospitalizado. Em outra, visitou um jornalista. Já da residência de Castel Gandolfo, eles “escaparam” para ver os trabalhos das Olimpíadas de Roma, em 1960.
Mas nem tudo eram sustos para os gendarmes. Naquela época, os gendarmes não podiam se casar antes dos 28 anos, explicou Gusso. "Havia um que tinha 24 anos. Ele veio falar comigo e se lamentou porque não tinha dinheiro para se casar. Eu contei ao papa e ele deu um donativo para que o gendarme pudesse comprar os móveis da sala", relatou Guido aos jornalistas.
Outra das lembranças girou em torno do conclave em que Roncalli foi eleito papa. "Ele me pediu para ir à Domus Mariae pegar alguns objetos pessoais. Eu pedi permissão ao cardeal Tisserant (então decano do colégio cardinalício) e o cardeal me respondeu: ‘Ainda estamos em conclave, não podemos sair. Se você sair, eu o excomungo'". Gusso contou o caso a Roncalli, que replicou: “Vá e diga ao cardeal que, se ele excomungar você, eu desexcomungo”.
Depois que a fumaça branca indicou a eleição do sucessor de Pedro, chegaram ao Vaticano, vindas de Bérgamo, algumas caixas com os livros e quadros de Roncalli. O Vaticano se encarregou de colocar os quadros, mas o resultado ficou ruim. O papa João XXIII pediu então que Gusso conseguisse pregos, martelo e escada. E eles mesmos recolocaram os quadros.
Outra história engraçada aconteceu com Cesidio Lolli, então vice-diretor de L'Osservatore Romano. Ele foi ao encontro de João XXIII para corrigir alguns textos e se ajoelhou diante da sua escrivaninha. "Mas o que é que você está fazendo? Sente-se na cadeira!", disse logo Roncalli, espantado.
Antes das audiências das quartas-feiras, João XXIII lia o evangelho do dia. O papa levava o discurso preparado por escrito e o lia para o público, na Sala das Bênçãos. A Sala Paulo VI não existia ainda. Depois, ele fechava a pasta e dizia para as pessoas: "Terminamos. Agora vamos dizer umas palavras entre nós!". E o ajudante completa que "quando ele falava sem os papéis, suas palavras eram maravilhosas".
Quando trabalhava com Roncalli em Veneza, Gusso pediu certa vez que o patriarca o ajudasse a encontrar outro trabalho, porque queria se casar e estava ganhando pouco. Roncalli respondeu: "Não se preocupe. O seu futuro está seguro, ninguém vai tocar em você". E pediu que ele lesse o evangelho de Mateus. Depois de um ano, Roncalli virou papa e sua vida mudou de um dia para o outro. O papa quis que o ajudante continuasse sempre próximo, em especial quando adoeceu. Naquela época, Gusso lia o Osservatore Romano à noite para o papa enfermo.
O ex-ajudante se lembra também da primeira impressão de Roncalli como papa: "Olhamos para fora e vimos a Praça de São Pedro vazia e escura". Para ele foi uma "decepção", porque estava acostumado com Veneza, onde a Praça de São Marcos estava sempre cheia de música e luzes.
Gusso contou que João XXIII só "lhe puxou as orelhas" uma vez, dois dias antes de morrer. Naqueles dias, seus irmãos e sua irmã foram visitá-lo. Depois, ele conversou com Gusso, que recorda: "Ele me deu um pequeno sermão. O que não tinha me dito em dez anos, ele me disse antes de morrer: pediu que eu recorresse mais aos sacramentos. E falou também: ‘Não se apegue ao dinheiro, porque com o dinheiro você não vai fazer nada na vida’. E disse: ‘Se você precisar, em qualquer momento, me chame, que eu vou responder’. E ele cumpriu, porque em vários problemas da vida eu fui pedir socorro e ele sempre me respondeu".

Ao terminar seu testemunho, Gusso declarou que o papa Francisco se parece muito com João XXIII: "Ele tem a mesma bondade, se preocupa muito com os pobres e com os humildes". E contou que, depois de participar de uma missa com Francisco, foi saudá-lo e lhe disse: "O senhor é quase igual ao papa João". O papa argentino respondeu dando a sua simpática e característica risada.