Quando João XXIII escapava do Vaticano
O ajudante de câmara do papa Roncalli, Guido Gusso, conta
algumas peripécias do Papa Buono
Cidade do Vaticano, 02 de Abril de 2014
O desejo de "dar algumas escapadas" do Vaticano
parece que fez parte da vida de mais do que um papa! É o que nos conta Guido
Gusso, que foi ajudante de câmara de João XXIII e conhecia muito bem o papa
Roncalli. Gusso participou da coletiva de apresentação do projeto de
digitalização dos arquivos da Rádio Vaticano. Ele trabalhou durante cinco anos
com Roncalli no patriarcado de Veneza e continuou como auxiliar dele depois que
o patriarca foi eleito papa e assumiu o nome de João XXIII.
Certa vez, passeando pelos jardins do Vaticano, o papa
Roncalli disse a Gusso: "O passeio é sempre este aqui! Leve-me à fonte do
Janículo ou à Villa Borghese". E Gusso respondia: "Santidade, não
podemos!". E o papa rebatia: "Mas como é que não? Pegue o carro e
vamos". E a cena se repetia quando o papa estava em Castel Gandolfo.
Gusso contou um caso em que eles “escaparam” da vigilância
dos gendarmes e guardas suíços, já que o papa não se sentia à vontade com tanto
protocolo ao seu redor onde quer que fosse: “Eu contei ao papa que tinha estado
em Patroni del Vivaro, perto de Roma, um lugar parecido com Sappada, na nossa
região. Ele tinha curiosidade, queria ver. E falou assim: ‘Vamos fazer uma
coisa. Tem uma porta perto do cemitério de Albano. Consiga as chaves. Abra e
vamos deixar aberto uns dez dias, assim ninguém vai saber o que está
acontecendo’. Depois, um dia que estávamos nos jardins, ele me disse: ‘Vamos
pegar o carro, damos alguma volta a mais para despistar os gendarmes, você abre
a porta e nós vamos lá’. E foi assim que os dois visitaram Vivaro. Quando
chegaram ao trevo entre Artena e Frascati, Gusso perguntou ao papa aonde ele
queria ir e o papa respondeu: ‘Vamos voltar para casa, porque se não...’.
Quando chegaram, os gendarmes já estavam em crise, assim como a polícia
italiana. "Vocês tinham que ver a cara dos guardas suíços...",
recordou Gusso, divertido.
O antigo ajudante de câmara do “Papa Buono” citou mais duas
situações em que João XXIII "escapou" do Vaticano. Em uma delas, ele
foi visitar o embaixador inglês que estava hospitalizado. Em outra, visitou um
jornalista. Já da residência de Castel Gandolfo, eles “escaparam” para ver os
trabalhos das Olimpíadas de Roma, em 1960.
Mas nem tudo eram sustos para os gendarmes. Naquela época,
os gendarmes não podiam se casar antes dos 28 anos, explicou Gusso. "Havia
um que tinha 24 anos. Ele veio falar comigo e se lamentou porque não tinha
dinheiro para se casar. Eu contei ao papa e ele deu um donativo para que o
gendarme pudesse comprar os móveis da sala", relatou Guido aos
jornalistas.
Outra das lembranças girou em torno do conclave em que
Roncalli foi eleito papa. "Ele me pediu para ir à Domus Mariae pegar
alguns objetos pessoais. Eu pedi permissão ao cardeal Tisserant (então decano
do colégio cardinalício) e o cardeal me respondeu: ‘Ainda estamos em conclave,
não podemos sair. Se você sair, eu o excomungo'". Gusso contou o caso a
Roncalli, que replicou: “Vá e diga ao cardeal que, se ele excomungar você, eu
desexcomungo”.
Depois que a fumaça branca indicou a eleição do sucessor de
Pedro, chegaram ao Vaticano, vindas de Bérgamo, algumas caixas com os livros e
quadros de Roncalli. O Vaticano se encarregou de colocar os quadros, mas o
resultado ficou ruim. O papa João XXIII pediu então que Gusso conseguisse
pregos, martelo e escada. E eles mesmos recolocaram os quadros.
Outra história engraçada aconteceu com Cesidio Lolli, então
vice-diretor de L'Osservatore Romano. Ele foi ao encontro de João XXIII para
corrigir alguns textos e se ajoelhou diante da sua escrivaninha. "Mas o
que é que você está fazendo? Sente-se na cadeira!", disse logo Roncalli,
espantado.
Antes das audiências das quartas-feiras, João XXIII lia o
evangelho do dia. O papa levava o discurso preparado por escrito e o lia para o
público, na Sala das Bênçãos. A Sala Paulo VI não existia ainda. Depois, ele
fechava a pasta e dizia para as pessoas: "Terminamos. Agora vamos dizer
umas palavras entre nós!". E o ajudante completa que "quando ele
falava sem os papéis, suas palavras eram maravilhosas".
Quando trabalhava com Roncalli em Veneza, Gusso pediu certa
vez que o patriarca o ajudasse a encontrar outro trabalho, porque queria se
casar e estava ganhando pouco. Roncalli respondeu: "Não se preocupe. O seu
futuro está seguro, ninguém vai tocar em você". E pediu que ele lesse o
evangelho de Mateus. Depois de um ano, Roncalli virou papa e sua vida mudou de
um dia para o outro. O papa quis que o ajudante continuasse sempre próximo, em
especial quando adoeceu. Naquela época, Gusso lia o Osservatore Romano à noite
para o papa enfermo.
O ex-ajudante se lembra também da primeira impressão de
Roncalli como papa: "Olhamos para fora e vimos a Praça de São Pedro vazia
e escura". Para ele foi uma "decepção", porque estava acostumado
com Veneza, onde a Praça de São Marcos estava sempre cheia de música e luzes.
Gusso contou que João XXIII só "lhe puxou as
orelhas" uma vez, dois dias antes de morrer. Naqueles dias, seus irmãos e
sua irmã foram visitá-lo. Depois, ele conversou com Gusso, que recorda:
"Ele me deu um pequeno sermão. O que não tinha me dito em dez anos, ele me
disse antes de morrer: pediu que eu recorresse mais aos sacramentos. E falou
também: ‘Não se apegue ao dinheiro, porque com o dinheiro você não vai fazer
nada na vida’. E disse: ‘Se você precisar, em qualquer momento, me chame, que
eu vou responder’. E ele cumpriu, porque em vários problemas da vida eu fui
pedir socorro e ele sempre me respondeu".
Ao terminar seu testemunho, Gusso declarou que o papa
Francisco se parece muito com João XXIII: "Ele tem a mesma bondade, se
preocupa muito com os pobres e com os humildes". E contou que, depois de
participar de uma missa com Francisco, foi saudá-lo e lhe disse: "O senhor
é quase igual ao papa João". O papa argentino respondeu dando a sua
simpática e característica risada.
Nenhum comentário:
Postar um comentário