O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

28 de setembro de 2010

Padre Zezinho - A BOMBA NO SACRÁRIO

Pe. José Fernandes de Oliveira (Pe. Zezinho)

Estive, a convite, na abertura dos 50 anos da martirizada e marcante diocese de Nova Iguaçu. Fiz questão de ir. Cantei cantos de cruz, de dor e de esperança. Não será possível escrever a História da Igreja do Brasil das últimas décadas sem falar das igrejas da Baixada Fluminense: entre elas Volta Redonda e Nova Iguaçu, com destaque para Dom Adriano Hipólito e Dom Waldir Calheiros. Não esquecemos os outros bispos, que também os reverenciam. Mas o destaque é para falar de um momento de martírios.
É uma pena que jovens de agora não saibam do que ali aconteceu. Talvez nem mesmo seus catequistas o sabiam. Mas ali se viveu um dos pedaços cruciais da História do Catolicismo no Brasil. O bispo seqüestrado, deixado nu e amarrado à beira da estrada, o corpo pintado de vermelho, pichações nos muros, o carro do bispo explodido à frente da sede da CNBB, uma bomba que explodiu o altar e o sacrário revelaram o grau de ódio e desprezo que aqueles militantes da ditadura nutriam pela Igreja e pela fé católica. Fizeram o mesmo contra Dom Helder Câmara, Dom Paulo Arns e Dom Pedro Casaldáliga. Foram tempos de ir à rua, marchar em silêncio e em lágrimas numa diocese que nascia e já pagava um alto preço por ter escolhido por a ênfase no social e no resgate dos pobres, em região que hoje cresce e promete, mas que, então era dormitório do Rio de Janeiro e onde os pobres eram cada dia mais encurralados num processo de guetização.
Uma Igreja inteira organizou-se. Concordem ou não com sua pastoral, era uma igreja que seguia os documentos do Vaticano II, do Celam e da CNBB. Nada foi inventado ali. O que houve foi a coragem de por em prática o que estava no papel.
O filme dos 50 anos é uma lição de eclesialidade e de humildade. Não se citam nomes, não se pede vingança, não se busca revanche, apenas se lembra o que houve, as dores, o medo, a coragem e a resistência daqueles dias. Há perdão em cada relato, mas há verdade em cada frase. Bispos e padres, irmãs e leigos pagaram alto preço por quererem uma Igreja que ia ao povo lembrar que democracia é melhor do que ditadura. Estavam tão ocupados em ser igreja que não tinham tempo de ser nem de direita nem de esquerda, mas levaram a pecha de uma guerrilha e um terrorismo que nunca fizeram. Havia, sim, uma igreja de comunidades, uma das experiências pioneiras da nossa Igreja; certamente não a única, mas experiência altamente revelante. Em Nova Iguaçu, como de resto em muitas outras dioceses a pastoral saiu do papel e aconteceu.
E foi lá que explodiram Jesus...literalmente. Foi o jeito ateu de mostrar desprezo por uma Igreja que prezava os mais pobres e queria mais democracia. Cinqüenta anos depois, cheia de perdão ela floresce. Quem fez aquelas barbaridades caiu no esquecimento. De heróis não tinham nada. Oura vez venceu a Igreja que perdoa!


Fonte:http://www.padrezezinhoscj.com/index.php

21 de setembro de 2010

OS MEDOS DE JONAS E OS NOSSOS MEDOS

Jean Yves Leloup

Maslow e a psicologia humanista fazem de Jonas o arquétipo do homem que tem medo da realização. O homem que foge da sua vocação , da sua palavra exterior ou dos acontecimentos numinosos. Alguns de nós encontramos esta outra dimensão em determinadas circunstâncias, não somente por uma palavra, mas na natureza, durante duma doença, apos um acidente, através de uma experiência amorosa ou admirando uma obra de arte. Cada um sabe em que momento numinoso o tocou, o questionou, o inquietou, para convida-lo a se tornar um ser mais autêntico.

Antes de falar deste medo do numinoso e desta recusa provocada pelo convite à profundidade, a esta realização do Self por meio da superação do Eu, é preciso observar os diferentes medos que precedem este medo da transcendência.

O medo do sucesso

Em 1915, Freud observou, tratando as neuroses, um fenômeno inesperado em alguns de seus pacientes: o sucesso profissional provocava neles uma grande ansiedade. Freud explicou este fato através de um postulado: “Para algumas pessoas, o sucesso equivale a uma morte simbólica do genitor do mesmo sexo”. Quando conseguimos alguma coisa, temos medo de humilhar nossos pais.

Uma tal idéia vai criar, junto à ansiedade, um sentimento de culpa, produzindo um estado de melancolia que pode durar vários anos. Freud descrevia essas pessoas como aquelas a quem o sucesso destrói. Pelo medo de fazer melhor que os seus pais, de vencer onde eles não conseguiram, seja a nível profissional, seja a nível afetivo.

Este medo existe em crianças, mas frequentemente o encontramos em adultos também. Adultos que não se permitem ser felizes como casais porque na união de seus pais havia muito sofrimento ou adultos que se sentem culpados por ganhar dinheiro se em sua família não se ganha dinheiro.

Isso pode parecer curioso, porque nós sempre desejamos que nossos filhos sejam melhores do que nós fomos. É o que os pais geralmente dizem. Eles dizem... mas nem sempre dizem de todo o coração, pois se um filho torna-se mais rico ou mais feliz, ele lhes escapa, sai da família e inconscientemente (nós estamos na esfera do inconsciente, é claro) eles seguem seus filhos no mesmo estado social em que eles pararam e no mesmo estado de dificuldade afetiva em que eles pararam.

Enquanto o sucesso fica ao nível do sonho, do desejo, a neurose do sucesso não necessariamente se manifesta, mas desde que este sucesso se torna uma realidade, por exemplo, após uma promoção, pode ser que aquele que foi beneficiado não o suporte. Talvez vocês conheçam pessoas com este tipo de problema – que obtiveram uma promoção e, curiosamente, em vez de se alegrarem, adoeceram.

Freud dirá que as pessoas adoecem, porque um de seus sonhos, o mais profundo e duradouro, se realiza. Não é raro que o Ego tolere um sonho como inofensivo, enquanto sua existência for apenas uma projeção e que pareça nunca se realizar. É como quando sonhamos ter um homem ou uma mulher e, quando ele ou ela estão lá, nós achamos nosso sonho improvável e o ignoramos.

O Self pode, entretanto, defender-se arduamente desta situação, desde que a realização se aproxime e a concretização seja uma ameaça. Eu creio que este estudo é muito interessante porque existem entre nós muitas pessoas que sonham, que idealizam o sucesso, a plenitude. No entanto, por que estes sonhos jamais se realizam? Eu conheço homens e mulheres muito inteligentes que se organizam sempre e de tal maneira que fracassam em seus exames quando têm capacidade de vence-los. Por que? É o que nós chamamos de neurose do fracasso. No momento em que vamos vencer, no momento em que nosso sonho vai se realizar, inconscientemente nos arranjamos para falharmos. Podemos observar este mecanismo em algumas pessoas como um processo muito doloroso e incompreensível.

Neste contexto, poderíamos dizer que Jonas recusa a voz interior do Ser que o chama, que o chama para que se supere, porque desta maneira ele superará seu pai. Esta é uma explicação edipiana da neurose do fracasso. Tememos o sucesso e suas repercussões, pelo medo de ultrapassarmos nossos pais, seja em felicidade, em educação, em fortuna ou em status. Podemos, assim, nos tornarmos uma ameaça para nossos pais e sermos rejeitados por eles. Vocês percebem que é sempre a presença desta criança em nós que tem medo de não ser amada, que tem medo de não ser reconhecida.

Freud dá, igualmente, o exemplo de um professor universitário que durante muitos anos aspirara à cátedra do seu mestre. Quando seu sonho se realizou, pela aposentadoria do seu mestre, ele foi invadido por uma depressão da qual só saiu depois de longos anos.

Um psicólogo como Fenichel verá, como uma causa profunda do medo de vencer, o sentimento de indignidade. Temos, pois, de observar em nós a nossa relação com o sucesso. Nosso desejo do sucesso e nosso medo do sucesso. E neste medo do sucesso talvez esteja incluído um sentimento de indignidade – esta depreciação de si mesmo que talvez seja a herança de um certo número de julgamentos que nos foram dirigidos. Quando se repete a uma criança que ela nunca será nada, que ela não é inteligente ou que não sabe cantar, ela integrará esta programação. E se um dia ela chegar ao sucesso, inconscientemente, ela pensa que este sucesso não é justo.

Citando Finchel: “O sucesso pode significar a realização de alguma coisa imerecida, que acentua a inferioridade e a culpa. Um sucesso pode implicar não somente em castigo imediato, mas também em aumento de ambição, levando ao medo de futuros fracassos e de sua punição.”

Para Karen Horner, o medo do sucesso resulta do medo de suscitar inveja nos outros, com perda conseqüente do seu afeto. Alguns têm medo de vencer porque não querem que os outros sintam ciúmes dele, o que é muito arcaico. Os gregos expressavam isso da seguinte maneira: “Os deuses têm inveja do sucesso dos homens.” Porque eles consideravam que o sucesso dos homens retirava as suas prerrogativas.

A maioria dos primitivos pensa que muito sucesso atrai para o homem um perigo sobrenatural. Heródoto, em particular, vê em todos os lugares da história a obra da inveja divina. Quando os homens e mulheres são muito ambiciosos, atraem toda sorte de infelicidades. Só está seguro o homem que é obscuro. “Para viver feliz, viva escondido”, para viver feliz, viva deitado.

O medo da diferença

Neste momento reencontramos o arquétipo de Jonas. Talvez ele esteja buscando, através da sua fuga do chamado de Deus, o anonimato mais do que a afirmação da sua própria personalidade. É interessante observar nesta passagem, que alguns podem utilizar a mística, os ensinamentos espirituais para fugir da sua personalidade e regredir ao impessoal ao invés de supera-la. Neste aspecto, a espiritualidade pode servir de pretexto para fugir à afirmação do seu Eu.

Afirmar-se é afirmar-se como diferente. Afirmar-se diferente não quer dizer afirmar-se contra, mas afirmar-se no que temos de próprio, na missão particular que nos foi dada para servir a todos.

O que é pedido a Jonas é que ele não seja apenas um sábio que vive no anonimato de uma cabana no fundo do bosque, mas que seja também um profeta. O silêncio que está nele não é uma ausência de palavras, é a mãe da palavra. Antes de se calar, antes de saborear a beleza do silêncio, ele deverá dizer sua própria palavra.

Antes de chegar a este estado de não-desejo e não-medo, no cume do nosso “vir-a-ser”, do nosso tornar-se, neste estado de Paz integrada, devemos viver esse desejo. Só poderemos supera-lo após tê-lo realizado.

É preciso falar para ir além da palavra. É preciso desejar para ir além do desejo. Algumas vezes nós nos servimos da espiritualidade, nos refugiamos em um falso silêncio e em um não-desejo, que é uma ausência de vida, uma falta de vitalidade que está mais próxima da depressão do que do estar desperto, alerta, mais próximo da despersonalização do que da transpersonalização.

Jonas teme o ciúme e a incompreensão dos seus irmãos. Ele teme ser rejeitado e morto pelo ostracismo de seu povo. Ele teme ser um “colaborador”, um inimigo do seu povo.

O complexo de Jonas não é, apenas, um medo do sucesso, um sentimento de culpa diante do sucesso, um medo de suscitar inveja nos outros. O complexo de Jonas é, também, o medo de ser diferente, de ser rejeitado por aqueles que são diferentes.

Rollo May dizia: “Muitos fatores provam que a maior ameaça, a causa mais nítida da angústia do homem ocidental contemporâneo, não é a castração, mas o ostracismo.” Ou seja, a situação considerada como terrível e aterrorizante é a situação de ser rejeitado pelo grupo ao qual pertencemos.

Muitos de nossos contemporâneos passam por uma castração voluntária, isto é, renunciam ao seu poder, à sua originalidade, à sua independência, pelo medo da rejeição, do exílio. Eles adotam a impotência e o conformismo (para Rollo May o conformismo será a doença mais grave do nosso século) devido à ameaça eficaz e terrível do ostracismo.

O conformismo sempre foi considerado necessário à sobrevida de um grupo e à sua harmonia interna, mas este conformismo pode se tornar opressivo e provocar doenças. Estes fenômenos são observados, algumas vezes, em certos grupos espirituais. Tomam-se as mesmas atitudes, a mesma maneira de olhar mais ou menos inspirada, repetem-se as mesmas frases, sem verdadeiramente pensar em integra-las. Entra-se, assim, em uma atitude mais ou menos esquizóide.

Há aqueles que representam o papel que lhes é pedido, mas o Ser verdadeiro não está neles. Neste caso, ocorre uma espécie de mal-estar, que pode gerar uma doença. Um discípulo de São Tomas de Aquino um dia lhe perguntou: “Se minha consciência me pede para fazer alguma coisa e o Papa me pede para fazer outra, a quem eu devo obedecer?”

Esta questão é muito atual. No lugar do Papa você pode colocar o seu guru, o sol ou a lua, uma pessoa ou autoridade suprema, a referência que você busca quando coloca uma questão profunda. O que acontece se esta autoridade lhe diz para fazer alguma coisa e o seu desejo interior lhe manda fazer outra? A quem obedecer? A qual voz escutar?

Santo Tomas de Aquino dá uma resposta a seu discípulo que talvez surpreenda alguns. Ele não diz: “Obedeça ao Papa”, mas: “Obedeça à sua própria consciência, obedeça à sua consciência procurando esclarecê-la.” Não separe as duas partes da frase: “Obedeça à sua própria consciência” e, ao mesmo tempo, “procure esclarecê-la”.

Essa frase de São Tomas de Aquino é uma boa frase terapêutica. Se ele tivesse dito: “É preciso obedecer ao Papa”, ele teria feito dessa pessoa um hipócrita ou um esquizofrênico. Esta atitude pode ser observada em alguns católicos ou em pessoas que pertencem a outros grupos humanos. Obedecem à autoridade, mas uma personalidade interior se dissocia, pouco a pouco, dos seus atos. Neste divisão entre o que fazemos e o que pensamos vai se introduzir um mal-estar, ou um “estar mal” que gera a doença.

Podemos nos enganar, mas não podemos mais nos mentir. É preciso aceitar que podemos nos enganar, mas ao mesmo tempo devemos buscar esclarecer o nosso caminho, mantendo ambos unidos. Por vezes,ter a coragem de nos diferenciarmos do nosso meio e daqueles que, para nós, constituem uma autoridade. Caso contrário, descobriremos que estamos nos destruindo naquilo que temos de mais autêntico.

O medo de Jonas é o medo de ser diferente, de ser rejeitado por aqueles dos quais ele se diferenciou. O conformismo pode provocar um certo número de patologias. Quantos pássaros tiveram suas asas cortadas ou aparadas para que ficassem felizes e confortáveis em suas gaiolas douradas?

Na lenda do Grande Inquisidor de Dostoievski, esse diz ao Cristo, que retorna à terra: “Vai ser preciso suprimi-lo novamente, porque você vai tornar as pessoas muito infelizes, tornando-as muito livres. Nós queremos tornar os homens felizes. Nós dizemos: faça isto ou aquilo e tudo correrá bem. Ao invés, você quer que os homens sejam livres. Você não diz: façam isso, façam aquilo. O homem é infeliz na sua liberdade. Nós queremos libertar o homem do peso da sua liberdade.”

Este texto continua sendo atual. Estamos, incessantemente, à procura de alguém, de um ensinamento ou de uma instituição que nos diga o que é bom e o que é ruim e que nos isente do exercício da nossa liberdade. Um mestre verdadeiro não nos isenta da nossa liberdade. Ele nos dá elementos de reflexão, um certo número de exercícios ou de práticas a viver a fim de que nos tornemos livres por nós mesmos. Suas palavras não substituem as nossas palavras, elas nutrem nossas palavras. Seu desejo não substitui o nosso desejo. Não somos suas marionetes, seus soldadinhos ou discípulos fanáticos dos seus ensinamentos, mas nos tornamos pessoas livres, nutridas pelas luzes e pela riqueza que ele pode nos comunicar.

A vontade de ser como todo mundo traz um sentimento de impotência excepcional. Os psicólogos humanistas vão nos mostrar que a pressão social é tal e tão forte que a maior parte das pessoas tenta resolver os seus problemas pessoais adaptando-se cegamente, às normas e aos valores do grupo. Cortados da sua atenção primaria, empregam o critério de adaptação como o único ponto de referência para julgar se uma atitude, individual ou coletiva, é aceitável.
Como dizia Harlow: “Parece que a pressão de se conformar (de se adaptar) às normas do grupo é irresistível, mesmo quando esta adaptação está claramente em conflito com as percepções, com as atitudes e convicções do indivíduo.” Este é um bom critério de discernimento.

Um grupo são, saudável, é capaz de conter pessoas muito diferentes, que pensam de maneira diferente e que se enriquecem com suas diferenças. Porque se todos pensarem a mesma coisa, se todos entrarem na mesma concha, não pensaremos mais... Nossa relação deixará de ser uma relação de aliança e se tornará uma relação de submissão a uma doutrina comum. É como a água da chuva que, ao cair em um campo, gerasse flores de uma única cor.

É interessante notarmos que, quando um ensinamento pode florescer sob diferentes formas, ele encontra aplicações em ambientes e mundos diferentes. É o sinal de que estamos num espaço que colabora para nossa evolução em vez de nos destruir, de nos bloquear.

O medo de mudanças

Muitos têm medo de mudanças, mesmo que esta mudança as abra a uma existência melhor e mais feliz. O abandono dos antigos hábitos, a perda do conhecido, cria em algumas pessoas um clima intolerável de insegurança. Não há realmente segurança senão no previsível, mesmo que isto signifique infelicidade e sofrimento.

O desejo de segurança é muito pronunciado nos psicóticos. Em sua infância lhes foi ensinado que toda mudança é uma ameaça. A separação da mãe ou do ambiente familiar foi-lhes apresentado como o equivalente da morte e do caos. Esta noção vai criar, nestas pessoas, um medo de toda e qualquer mudança.

Muita segurança impede a evolução da pessoa, mas muita liberdade vai causar também muita angústia. A criança não sabe mais quais são seus limites. Portanto, o medo de não ser como os outros vai gerar um outro medo: o medo de conhecer-se a si mesmo.

15 de setembro de 2010

“Invoquem a paz sobre Jerusalém”

Jean Yves leoup

Escritos e Parábolas para a Paz
Editora Diálogos do Ser: 2009

“Invoquem a paz sobre Jerusalém
que sejam pacíficos aqueles que te amam
que a paz venha para os teus muros
que sejam pacíficas tuas casas
pelo amor dos meus irmãos, dos meus amigos
deixe-me dizer, paz sobre ti
por amor da casa de YHWH
“Aquele que era, que é e que vem”,
oro pela tua felicidade!” (Salmo 122)
Qual é esta paz que “aqueles que amam” invocam sobre Jerusalém e sobre o mundo?
Que eles próprios sejam pacíficos, essa é sem dúvida a primeira condição para que se realize, já no seu próprio corpo e no seu próprio espírito, a paz que eles desejam a todos.
A palavra hebraica “Shalom” deriva de uma raiz que designa o fato de estar intacto, inteiro; estar em paz é estar “inteiro”, nós não estamos em paz porque não estamos inteiramente aqui... Qual é a parte de nós mesmos que nos falta, que está esquecida ou reprimida – o que nos impede de estarmos em paz?
Perceberemos que quando somos amorosos, somos mais “inteiros”, o amor nos une, nada mais nos falta em nós mesmos, tudo está “voltado para” o Outro.
O mandamento ou o exercício (mitzvot) proposto pela Escritura é um exercício terapêutico, cujo fruto é o de nos fazer “Um”, corpo, coração e espírito, portanto, estarmos felizes e em paz:
“Tu amarás “Aquele que era, que É e que será” de todas as tuas forças, de todo teu coração, de todo teu espírito e tu amarás teu próximo, aquele que era, que é e que será como a ti mesmo, tal qual tu eras, tu és e tu te tornarás...”
A paz abrange todos os tempos. Será que podemos estar em paz com o nosso presente, se não o estivermos com o nosso passado? Será que podemos estar em paz com “aquilo que será”, com “aquilo que virá” se não estivermos em paz com o nosso presente?
A paz designa “o bem-estar do ser” e particularmente do ser humano que vive em harmonia com ele mesmo, com Deus, com os outros, com a natureza, suas sombras e sua luz... Na Bíblia, “estar em boa saúde” e “estar em paz” são duas expressões paralelas; para perguntar como vai alguém; se ele está bem, dizemos: “ele está em paz?”.
Dizemos que Abraão morreu numa idade avançada, feliz e saciado de dias, que “ele se foi em paz”. Também dizemos do nosso namorado que ele é “o homem da minha paz”. A paz é, então, uma confiança mútua, que torna possível a vida em comum e a fraternidade; sem esta paz e esta confiança entre nós, não há comunidade humana ou futuro possível.
Todos os bens materiais, afetivos, intelectuais e espirituais que nós podemos nos desejar uns aos outros estão resumidos nesta simples palavra: Shalom, Salam (em árabe), Bom dia – a paz esteja contigo, em ti e entre nós...
Quando Jesus diz a alguém no Evangelho “Shalom”, é realmente uma “saudação”, uma “salvação”[1], uma cura. Quando ele diz à mulher hemorroíssa: “Vá em paz”, ele lhe devolve a saúde. Da mesma maneira àqueles que se afastaram de diversas maneiras, quando ele lhes diz: “Vá em paz”, eles têm o coração, o corpo e o espírito lavados da sua culpa, eles podem realmente se recolocar a caminho e ver “todas as coisas novas”.
Mas Jesus precisa que a “Sua paz, Ele não a dá como o mundo a dá”. Ela não é um tranqüilizante, um sedativo, que livraria os humanos das provações e das contradições do Real.
Jesus inscreve-se assim na linhagem dos antigos profetas que denunciam “as falsas pazes” e as falsas seguranças que são buscadas em outro lugar e não n’ “Aquele que era, que é e que será”, seu fundamento – aí estão as pazes ilusórias e mentirosas e ele vem nos libertar das nossas ilusões e das nossas mentiras.
Estar em paz é não ser parvo e acreditar-se invulnerável. O Dom da paz supõe uma metanóia, uma transformação da sua vida e da sua maneira de ser e de pensar; Miquéias, Jeremias denunciava assim os falsos profetas que têm apenas a palavra “paz” na sua boca e a ambição e outras vontades de poder no coração: “Eles curam superficialmente a chaga do meu povo dizendo “Paz, Paz” e, no entanto, não existe paz”. (Jr 6, 14)
Jesus será ainda mais radical quando ele dirá: “Penseis que vim trazer a paz sobre a terra? Não, mas o conflito.(polémos, em grego)” Isso quer dizer que se não reconhecermos nossas alteridades, e esse reconhecimento passa às vezes pelo conflito, não há paz verdadeira (particularmente no seio de uma mesma família onde a diferenciação, do pai e do filho, da mãe e da filha é por vezes difícil). A paz não nos deixa tranqüilos, pois se quisermos “permanecer inteiros” e verdadeiros, face ao outro e respeitá-lo na sua inteireza e na sua verdade, isso nem sempre acontece sem que haja um enfrentamento, é preciso amar o outro o suficiente para não ter medo de desagradá-lo e nos amar o suficiente para nos fazer respeitar na nossa identidade. Se o verdadeiro amor é sem complacência, a paz verdadeira é sem compromisso.
Ezequiel também não deixará de gritar: “Chega de remendos! O muro deve tombar” (Ez 13), mas quando os muros do medo, da vaidade, da ilusão e das mentiras desabarem, uma verdadeira paz será edificada.
“Eu sei, eu, “Aquele que era, que é e que será”, que tenho sobre vós um desígnio de paz e não de infelicidade” (Jo 29, 11). Isaías e Zacarias sonham com o “príncipe da paz” (Is 9, 5 /Za 9, 95) que dará uma “paz sem fim”, “é ele que estará em paz” (Mi 5, 4), as duas terras separadas se reconciliarão, as nações viverão em paz (Is 2, 2).
“Farei correr sobre Jerusalém como um rio...” Enquanto aguardamos, “Bem-aventurados os “artesãos” da paz”. A paz é um “artesanato” e não uma indústria. A diferença entre o artesão e o operário é que o artesão realiza um objeto, uma obra na sua “inteireza”, ele trabalha nela do início ao fim. Aquilo que se rouba do operário que trabalha na produção em cadeia é o acesso ao objeto na sua inteireza.
Assim, ser “artesão” da paz é tentar viver, nem que seja apenas uma única relação na sua inteireza, da maneira mais verdadeira e pacífica que possa existir.
Jesus pede que façamos a paz, que amemos o próximo, o mais próximo e não que façamos a paz e amemos “a humanidade”, “o mundo”. A palavra “paz”, os discursos sobre a paz não fazem de nós “artesãos da paz”, mas ideólogos, discursistas, pretensiosos pretendentes à paz, “mas a paz não existe...”
A questão, então, para aquele que, em Jerusalém ou em qualquer outro lugar, queira conhecer a felicidade dos artesãos da paz, não é mais: “O que é a paz?”,mas: “Quem é o meu próximo?”. Basta, então, termos olhos e “vermos” qual relação muito concreta devemos “apaziguar”, compreender e “reconciliar”... Isso começa, sem dúvida, em nós mesmos. Enquanto não tivermos feito a paz entre nossos diferentes quarteirões (cabeça – coração – ventre), não haverá paz entre os diferentes quarteirões de Jerusalém.
“Encontre a paz interior” dizia São Serafim de Sarov, “e uma multidão será salva ao teu lado.”
É sempre pelo mais próximo que devemos começar, é o primeiro passo de todos os caminhos que conduzem à paz.


Nunca vou muito longe
Para encontrar a paz
Basta uma flor no meu jardim
Ela não me coloca questões
Ela não me pergunta por quê
Todos os homens que têm uma flor no seu jardim
Não olham a flor
E não estão em paz

* * *

A calma das árvores queimadas pelo sol
ou arrancadas pelo homem é sempre calma
a calma das árvores sacudidas pela tempestade surpreende:
uma floresta de calma

Essa calma é também a do homem
é até mesmo o segredo da sua vida
mas só vemos as tempestades
o sol e o vento
só ouvimos o barulho que ele faz
jamais o silêncio que ele é
ninguém consegue imaginar o que seria uma cidade
se ela fosse habitada por homens que são o que eles são:
uma floresta de calma



________________________________________
[1] No original em francês : « Quand Jésus dans l’Évangile dit à quelqu’un « shalom », c’est vraiment un « salut », une guérison » ; a palavra “salut” em francês indica tanto “saudação” quanto “salvação”. (N.T.)

8 de setembro de 2010

CADA UM TEM SEU DESERTO A ATRAVESSAR

Jean Yves lelopup

O que evoca para nós a palavra deserto? Silêncio, imensidão, vento abrasador? Não apenas. Evoca também sede, miragens, escorpiões... e o encontro do mais simples de si mesmo no olhar assombrado e surpreso do homem ou da criança que brota não se sabe de onde – entre as dunas?
Existem os desertos de pedras e de areias, o deserto do Hoggar, de Assekrem, de Ténéré e do Sinai e de outros lugares ainda... o deserto é sempre o alhures, o outro lugar, um alhures que nos conduz para o mais próximo de nós mesmos.
Existem os desertos na moda, onde a multidão se vai encontrar como um pode tagarela, em espaços escolhidos, onde nos serão poupadas as queimaduras do vento e as sedes radicais; deles se volta bronzeado como de uma temporada na praia, mas ainda por cima, com pretensões à “grande experiência”, que nos transformaria para sempre em “grandes nômades”...
Existem, enfim, os desertos interiores. Temos que falar deles, saber reconhecer o que apresentam de doloroso e tórrido, mas tentando também descobrir, aí, a fonte escondida, o oásis, a presença inesperada que nos recebe, debaixo de uma palmeira sorridente, em redor de uma fogueira onde a dança dos “passantes” se junta à das estrelas. Pois o deserto não constitui uma meta; é, antes, um lugar de passagem, uma travessia. Cada um, então, tem a sua própria terra prometida, sua expectativa que deverá ser frustrada, sua esperança a esclarecer.
Algumas pessoas vivem esta experiência do deserto no próprio corpo; quer isto se chame envelhecer, adoecer ou sofrer as conseqüências de um acidente. Esse deserto às vezes demora muito a ser atravessado.
Outras pessoas vivem o deserto no coração das suas relações, deserto do desejo ou do amor, das secas ou dos aborrecimentos que não aprendemos a compartilhar.
Há também os desertos da inteligência, onde o mais sábio vai esbarrar no incompreensível e o mas consciente no impensável. Só conseguimos conhecer o mundo e as suas matérias, a nós mesmos e às nossas memórias quando atravessamos os desertos.
Temos, finalmente, o deserto da fé, o crepúsculo das idéias e dos ídolos, que havíamos transformado em deuses ou em um Deus, para dar segurança às nossas impotências e abafar as nossas mais vivas perguntas.
Cada pessoa tem seu próprio deserto a atravessar. E a cada vez será necessário desmascarar as miragens e também contemplar os milagres: o instante, a aliança, a douta ignorância e a fecunda vacuidade.

6 de setembro de 2010

Polêmica: As 95 Teses de Matthew Fox


Matthew Fox, quase septuagenário, é atualmente o mestre espiritual mais criativo e abrangente da América. Conta com um doutorado em História e Teologia da Espiritualidade e possui, além disso, imaginação, coragem e a arte de um escritor. É autor de 26 livros. Criou o Instituto de Cultura e Espiritualidade da Criação que funcionou, durante sete anos, em Chicago e, durante doze, em Oakland.
O então cardeal Ratzinger tentou fechá-lo. E, em 1988, impôs silêncio a Fox por um ano. Três anos depois, fez com que o excluíssem da Ordem dominicana, pondo com isso fim ao Instituto. Fox fundou então uma universidade própria em Oakland, a que deu o nome de Universidade da Espiritualidade da Criação; hoje é denominada Universidade da Sabedoria.
Convidado a falar na Alemanha, em Bad Herrenalb, no Pentecostes de 2005, a recente eleição de Bento XVI inspirou-lhe a realização de um ato simbólico: afixar as suas 95 teses para uma nova reforma da Igreja na porta da Schlosskirche de Wittenberg, onde Lutero afixou as suas, em 31 de outubro de 1517. E assim aconteceu, em 18 de maio, pelas 16 horas, em presença da imprensa e da televisão.
Em vez de teses, Fox prefere chamá-las declarações de fé para uma cristandade do Terceiro Milênio. E, em vez de reforma, ele prefere falar da transformação do cristianismo (“A New Reformation: Creation Spirituality and the Transformation of Christianity “, 2006, Inner Traditions).
São estas as suas propostas:
1. Deus é ambas as coisas: Mãe e Pai.
2. No nosso tempo, Deus é mais Mãe do que Pai, porque o feminino está, a maioria das vezes, ausente e é essencial restabelecer o equilíbrio dos sexos.
3. Deus é sempre novo, sempre jovem, está sempre no começo.
4. Deus, concebido como Deus punitivo, não é digno de ser honrado; é um deus falso e um ídolo útil aos imperialistas. O conceito de um Deus punitivo, viril, contradiz a plena natureza da divindade, tão feminina e maternal quanto varonil e paternal.
5. “Todos os nomes que atribuímos a Deus, provêm da compreensão que temos de nós mesmos”(Eckart). Por isso, quem o cultua como um Deus punitivo, é ele próprio vingativo.
6. O teísmo (a idéia de que Deus se acha “fora daqui” ou acima e além do universo) é falso. Tudo está em Deus e Deus está em tudo (panenteísmo).
7. Cada um de nós nasceu místico e amoroso, capaz de experienciar a unidade das coisas e chamado a conservar viva esta mística ou o amor à vida.
8. Todos são chamados a ser profetas, isto é, a opor-se à injustiça.
9. Sabedoria é amor à vida (veja-se o Livro da Sabedora: “Sabedoria significa amar a vida”; e Cristo diz no Evangelho de João: “Eu vim para que tenhais vida, vida em abundância”).
10. Deus ama tudo o que criou e a ciência pode ajudar a penetrar mais profundamente e a admirar os mistérios e a sabedoria de Deus na criação. A ciência não se opõe à verdadeira religião.
11. A religião não é necessária, a espiritualidade, sim.
12. “Jesus não nos chamou a uma nova religião, mas a viver” (Bonhoeffer). Espiritualidade é viver a vida com profundidade, novidade e gratidão, coragem e criatividade, confiança e serenidade, piedade e justiça.
13. Espiritualidade e religião não são a mesma coisa, tanto quanto educação e saber, lei e justiça, comércio e gestão.
14. Os cristãos devem distinguir entre Deus (masculino e história, libertação e salvação) e Divindade (feminina e mistério, ser e não-ação).
15. Os cristãos têm de distinguir entre Jesus (personagem histórico) e Cristo (a experiência de Deus em-todas-as-coisas).
16. Os cristãos devem distinguir entre Jesus e Paulo.
17. Não diferindo de outros mestres espirituais, Jesus ensinou que somos filhos e filhas de Deus e que, em virtude disso, havemos de nos comportar como instrumentos da misericórdia divina.
18. A justiça ecológica é fundamental para a sobrevivência do planeta e para uma ética humana. Sem isso, estaremos a crucifixar de novo Cristo, ao destruir as florestas, a água, as espécies, o ar e o solo.
19. A sustentabilidade é outro nome da justiça, pois o que é justo, também é sustentável, o que é injusto, não.
20. Uma opção preferencial pelos pobres, como a do movimento das Comunidades de Base, está muito mais perto dos ensinamentos e espírito de Jesus do que a opção preferencial pelos ricos como é, por exemplo, a do Opus Dei.
21. A justiça econômica requer uma ação criativa que gere um sistema de economia global, respeitoso pela saúde e riqueza do planeta Terra e que funcione para todos.
22. A celebração e o culto são base da comunidade humana e da sua sobrevivência. Essas comemorações jubilosas são merecedoras de novas formas que usem uma linguagem do século XXI.
23. A sexualidade é algo sagrado, uma experiência espiritual, teofania (revelação do divino) e experiência mística. É algo santo que deve ser dignificado como tal.
24. A criatividade é, não apenas o maior dom da humanidade, como também a sua arma mais poderosa para o mal. Por isso, não só deve ser estimulada como também orientada à ação que, de acordo com todas as religiões, é a mais divina da humanidade: a compaixão.
25. Existe um sacerdócio próprio de quem trabalha (quem realiza boas obras é parteiro da graça e, por isso, sacerdote). Este sacerdócio tem de ser reverenciado como sagrado e quem trabalha há de ser instruído na espiritualidade, para poder exercer eficazmente o seu ministério.
26. O imperialismo é incompatível com a vida e ensinamentos de Jesus, com a vida e ensinamentos de Paulo e com os ensinamentos das sagradas religiões.
27. Ideologia não é teologia e põe em risco a fé, porque substitui o pensar pela obediência e desvia da responsabilidade própria da teologia, que é a de ajustar a sabedoria do passado às necessidades do presente. Em lugar de teologia, a ideologia exige juramento de lealdade ao passado.
28. A lealdade não é critério bastante para o ministério eclesial; é-o a inteligência e uma consciência provada.
29. Por muito que a mídia televisiva corteje o Papa e o seu Pontificado, porque isso lhe proporciona bons espetáculos, o Papa não é a Igreja mas apenas um ministro dela. O endeusamento do Papa é uma forma contemporânea de idolatria que deve ser combatida por todos os fiéis.
30. Criar uma Igreja de subservientes não é coisa santa. Gente servil não é gente espiritual, porque a sua única virtude é a obediência. Uma sociedade constituída por subservientes – um clero servil, seminaristas servis, bispos servis, cardeais servis, ordens religiosas servis como o Opus Dei, Legionários de Cristo, Comunhão e Libertação, e uma imprensa servil – não representa, de forma alguma, a doutrina e a pessoa do Jesus histórico, que se insurgiu contra o poder em vez de o acumular.
31. Os juramentos de sigilo papal constituem, na Igreja, uma via tão segura de corrupção e total encobrimento como em qualquer outra organização humana.
32. O pecado original é a extrema expressão de um Deus Pai punitivo e não um ensinamento bíblico. Bíblica é a bênção original (bondade e graça).
33. O termo “ferida original” descreve melhor que “pecado original” a separação experimentada pelos humanos ao deixarem o ventre materno para entrarem num mundo tantas vezes injusto e repulsivo.
34. O fascismo e a tendência compulsiva ao controle autoritário não são caminhos de paz ou compaixão e quem adota o fascismo não é um digno modelo de santidade. O mau uso do aparato de canonizações para glorificar fascistas é uma nódoa para a Igreja.
35. O espírito de Jesus e de outros profetas chama as pessoas a um estilo de vida simples, a fim de viverem.
36. O dançar, que, em muitas culturas primitivas, tem a mesma raiz etimológica que respiração ou espírito, é uma forma muito antiga e apropriada de orar.
37. Honrar os ancestrais e celebrar a comunhão dos santos não significa colocar heróis num pedestal, mas honrá-los, vivendo no nosso tempo, na nossa cultura e no nosso momento histórico, com o mesmo idealismo, coragem e humanidade com que eles viveram na sua época.
38. Tal como nos primeiros tempos da Igreja, também hoje é de esperar, e desejável, a diversidade de interpretações dos acontecimentos da vida de Jesus e da experiência de Cristo.
39. Por conseguinte, unidade da Igreja não quer dizer conformidade. Existe uma unidade na diversidade. Uma unidade forçada não é unidade.
40. O Espírito Santo é perfeitamente capaz de operar em estruturas eclesiais democraticamente participativas; e os modelos hierárquicos podem impedir a ação do Espírito.
41. O corpo é templo sagrado de Deus, mas isso não significa que seja intocável; quer dizer que todas as suas dimensões – adequadamente denominadas sete chacras – são igualmente santas.
42. Por isso, é santa a nossa ligação com a terra (primeiro chacra); santa, a nossa sexualidade (segundo chacra); santa, a nossa indignação moral (terceiro chacra); santo, o nosso amor que se ergue contra o medo (quarto chacra); santa, a nossa voz, expressando-se profeticamente (quinto chacra); santas, nossa intuição e inteligência (sexto chacra); santos, os nossos dons, pelos quais somos partícipes da comunidade dos seres luminosos e dos ancestrais (sétimo chacra).
43. O preconceito do racionalismo e da localização da metade esquerda do cérebro apenas na cabeça deve encontrar contrapeso na consideração dos chacras inferiores, que corporificam, de igual modo, a sabedoria, a verdade e a ação do Espírito.
44. O chacra central, a compaixão, é a pedra-de-toque da saúde de todos os demais, que lhe hão de estar subordinados, pois “pelos seus frutos os conhecereis” (Jesus).
45. “O alegrar-se é o mais nobre dos atos humanos” (Tomás de Aquino). Serão nossas culturas, suas profissões, educação e religião promotoras da alegria?
46. A psique humana é feita para o cosmos e não estará satisfeita, enquanto essas duas realidades não se acharem unidas e o deslumbramento, princípio da sabedoria, não derive de tal união.
47. As quatro vias designadas na tradição espiritual da criação representam melhor o itinerário espiritual místico-profético de Jesus e da tradição judaica do que as três vias da purificação, iluminação e união, não provenientes da tradição judaica e bíblica.
48. Por isso, se pode afirmar que Deus se faz sentir numa experiência de êxtase, de alegria, de assombro e deleite (via positiva).
49. Deus faz-se sentir na escuridão, no caos, no nada, no sofrimento, no silêncio e no aprender a deixar ser e acontecer (via negativa)
50. Deus deixa-se experimentar nos atos de criatividade e de concriação (via criativa)
51. Todas as pessoas nasceram criativas. É função da espiritualidade excitar a santa imaginação, pois todos nasceram “à imagem” do Criador e “a força impetuosa da fantasia é um dom de Deus” (Cabala).
52. Se tu podes falar, também podes cantar; se tu podes andar, também podes dançar; se tu podes falar, tu és um artista (provérbio africano e indiano).
53. Deus deixa-se sentir na nossa luta pela justiça, pela cura, pela compaixão e pela celebração (via transformativa).
54. O Espírito Santo atua por meio de todas as culturas e tradições espirituais, “sopra onde quer” e não é nem nunca foi propriedade exclusiva de nenhuma tradição.
55. Hoje, como no passado, Deus fala por meio de todas as religiões, culturas e tradições de fé, nenhuma das quais representa o perfeito e único caminho da verdade, podendo todas elas aprender umas das outras.
56. Por isso, nos nossos dias, uma fé partilhada ou um profundo ecumenismo fazem necessariamente parte da práxis espiritual e da consciência.
57. Já que o “obstáculo número um para o encontro dos que creem é um mau relacionamento com a própria fé” (Dalai Lama), é importante para os cristãos conhecerem a sua própria tradição mística e profética, muito mais ampla que uma religião imperial e que a sua imagem punitiva de Deus Pai .
58. O cosmos é o templo santo de Deus e o nosso santo lar.
59. Catorze bilhões de anos de evolução e de expansão do universo apontam para a íntima sacralidade de tudo quanto é.
60. Tudo o que existe é santo e está relacionado entre si, pois tudo o que existe no nosso universo começou como um único ser, antes da explosão inicial.
61. A interconexidade não é só uma lei física e natural; constitui também a base da comunidade e da compaixão. Compaixão é pôr em prática a nossa interconexidade compartilhada, tanto nas alegrias como no sofrimento e na luta pela justiça.
62. O universo não sofre de carência de graça e nenhuma instituição religiosa pode pôr sua tarefa em racioná-la. No universo de Deus, a graça é abundante.
63. A criação, a Encarnação e a Ressurreição são acontecimentos constantes, tanto na escala cósmica como na escala pessoal. Isto é também válido para a Vida, para a Morte e para a Ressurreição (Regeneração e Reincarnação).
64. Biofilia ou amor à vida é o nosso dever de cada dia.
65. Necrofilia, ou amor à morte, há de ser combatida, por todos os meios, tanto em nós próprios como na sociedade.
66. O mal pode surgir de qualquer povo, de qualquer nação, de qualquer raça, de qualquer indivíduo. Por isso, faz-se necessária, a todo o instante, a vigilância, a autocrítica e a crítica institucional.
67. Nem todo o que se rotula “cristão”, é merecedor de tal nome, bem como nem todo “o que diz: ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino dos Céus” (Jesus).
68. A pedofilia é um crime terrível, mas o seu encobrimento pela hierarquia é ainda mais abominável.
69. A lealdade e a obediência jamais serão virtudes comparáveis com a consciência e a retidão.
70. Jesus nunca disse nada sobre preservativos, controle de natalidade ou homossexualidade.
71. Uma Igreja que se preocupa mais com os males sexuais do que com os da injustiça, está ela própria doente.
72. Dado que a homossexualidade se encontra em 464 espécies e em 8% da população humana, trata-se, em quem assim nasceu, de algo absolutamente natural, de uma dádiva de Deus e da natureza feita à comunidade mais ampla.
73. Em qualquer das suas formas, a homofobia é um sério pecado contra o amor ao próximo, um pecado de ignorância da riqueza e diversidade da criação divina e, ao mesmo tempo, um pecado de exclusão.
74. O racismo, o sexismo e o militarismo são também graves pecados.
75. A pobreza da maioria e o luxo de uns poucos não são justos nem suportáveis.
76. O consumismo é a versão hodierna da glutonaria e deve ser defrontado pela criação de um sistema econômico que opere em benefício de todos os povos e de todas as criaturas da terra.
77. Os seminários, tais como os conhecemos hoje, com sua excessiva ênfase na metade esquerda do cérebro, matam e corrompem muitas vezes a alma mística dos jovens, em vez de estimular a consciência mística e profética que neles existe. Os seminários deviam ser substituídos por escolas de sabedoria.
78. Se exige de todos nós um trabalho interior. Por isso, todos deviam ter acesso a práticas espirituais de meditação que ajudassem a serenar o cérebro do réptil. Crianças e adultos podem e devem ser exercitados no silêncio, na contemplação e em ficar calados.
79. O nosso trabalho exterior há de fluir do trabalho interior, tal como o ato flui do não-ato e o verdadeiro ato flui do ser.
80. Um sábio teste para avaliar a lisura de uma ação é este: qual será o efeito desta ação sobre as pessoas da sétima geração depois de nós?
81. O outro teste da retitude de uma ação é este: esta minha ação, esta nossa ação é uma bela ação ou não?
82. O eros, que é paixão pela vida, é uma virtude que combate a acédia ou falta de energia para empreender algo novo. Esta acédia também se revela como depressão, cinismo e indolência.
83. A Noite Escura da alma nos invade a todos; e a resposta adequada não é entregar-se ao afã de comprar, ao álcool, à droga, à tevê, ao sexo ou à religião, mas caminhar com a escuridão e aprender dela.
84. A Noite Escura da alma é lugar de um aprendizado profundo. Mas requer silêncio.
85. Não existe só a Noite Escura da alma, mas tammbém a da sociedade e a da nossa espécie, a humanidade.
86. O caos é um amigo e um mestre, bem como parte necessária ou prelúdio de um novo nascimento. Por isso, não há que temê-lo ou controlá-lo compulsivamente.
87. A ciência autêntica pode e deve ser uma das fontes da sabedoria da humanidade, visto que é a fonte do santo temor, do deslumbramento infantil e da verdade.
88. Se a ciência ensina que a matéria é “luz congelada” (físico David Bohm), então, com isso, ela livra a humanidade de fazer da carne o bode expiatório do mal e lhe garante, ao invés, que todas as coisas são luz. Igual doutrina se encontra nos Evangelhos (Cristo é a luz em todas as coisas) e nos ensinamentos budistas (a natureza Buda está em todas as coisas). Por conseguinte, a carne não é pecaminosa; pecaminosas são as nossas decisões que, por vezes, não buscam o que é certo.
89. Os objetivos próprios do coração humano são a verdade e a justiça (Tomás de Aquino) e todas as pessoas têm o direito de os alcançar por meio de uma sã educação e de um governo saudável.
90. “Deus” é só um nome do divino. Há incontáveis nomes para Deus e para a Divindade; contudo, “Deus não possui nenhum nome e jamais será nomeado” (Mestre Eckhart).
91. São três as estradas para o coração: o silêncio, o amor e o sofrimento.
92. A dor do coração humano há de ser tratada com rituais e exercícios que, quando praticados, diminuirão a irritação, permitindo que a criatividade flua de novo.
93. Duas estradas partem do coração: a criatividade e os atos de justiça e compaixão.
94. Já que os anjos aprendem exclusivamente por intuição, se nós desenvolvermos o nosso poder intuitivo, podemos ter a esperança de encontrar anjos ao longo do caminho.
95. A verdadeira inteligência inclui sentimentos, sensibilidade, beleza, o dom de doação e o humor, que é uma dádiva do Espírito, sendo o paradoxo seu irmão.
(Texto recebido da Alemanha por e-mail, na versão inglesa e alemã. Traduziu e apresentou Irene e Luís Cacais)

2 de setembro de 2010

Jesus teve discípulas mulheres?

Ariel Álvarez Valdés


Que Jesus teve discípulos homens é algo que nenhum estudioso jamais negou. Sabemos que durante sua vida pública sempre esteve rodeado por um grupo de homens que o seguiam por toda parte. Mas será que haviam discípulas mulheres? Se fosse assim, teria sido um fenômeno surpreendente e escandaloso, já que entre os judeus do século I era mal visto que um mestre ensinasse a Bíblia para as mulheres e que, além disso, elas o acompanhassem.

Se lemos o primeiro evangelho escrito, o de Marcos, veremos que Jesus só aparece rodeado de homens, nunca de mulheres. Mas o final do evangelho nos depara uma surpresa. Quando Jesus está na cruz, depois de morrer, Marcos diz que “ali havia umas mulheres, olhando de longe: Maria Madalena, Maria, a mãe de Santiago o menor e de José, e Salomé. Elas seguiam Jesus e o serviam quando estava na Galileia. E também havia muitas outras, que o acompanharam a Jerusalém” (Mc 15, 40-41).

Quem são estas mulheres? Marcos dá o nome de algumas delas, as mais conhecidas em seu ambiente, e destaca três características.

A primeira é que “seguiam” Jesus. O verbo “seguir” é um verbo especial, que os evangelhos costumam reservar para os discípulos de Jesus. Por exemplo, quando Jesus chamou Pedro e André, que estavam pescando, eles deixaram as redes e “ seguiram-no ” (Mc 1, 18). Quando chamou Santiago e João, também deixaram seu pai e “ o seguiram ” (Mt 4, 22). Quando convidou Levi, somente lhe disse “siga-me” e ele “ seguiu-o” (Mc 2, 14). E chamou o homem rico, dizendo: “Siga-me” (Mc 10, 21)

Segundo Marcos, uma das condições que Jesus estabelecera a seus discípulos era que “o seguissem” (Mc 8, 34). Tratava-se de algo tão fundamental e a idéia estava tão arraigada nos Doze, que dizem que uma vez o apóstolo João encontrou pelo caminho um homem muito bom, crente, que até realizava milagres, mas não fora considerado discípulo porque “não seguia” Jesus (Mc 9, 38). E quando aqueles Doze discípulos quiseram que Jesus recordasse que eles eram verdadeiros seguidores, disseram-lhe: “Nós deixamos tudo e seguimos o senhor ” (Mc 10, 28).

COM A ESCOLA ÀS COSTAS

Mas não era um seguimento simbólico, como quando dizemos “eu sigo tal autor” para dizer simplesmente que somos adeptos de suas idéias. Não. Jesus pedia o seguimento físico, literal, pelos lugares e povoados que ele percorria pregando e curando doentes. Essa era a principal diferença com os outros mestres e rabinos de sua época. Estes reuniam seus discípulos num lugar ou centro de estudo, onde eles aprendiam a Lei, e depois voltavam para suas casas. Além disso, o plano de estudos que lhes ofereciam durava uma quantidade fixa de anos. Em compensação, Jesus inventara algo inovador. Não os convocava para nenhuma escola nem lhes oferecia um curso fixo: convidava-os a experimentar em sua própria vida a Boa Nova que ele pregava. E para isso os levava a todas partes para que vissem como aparecia o Reino de Deus entre as pessoas.

Bem, se Marcos nos diz que aquelas mulheres que estavam ao pé da cruz “seguiam Jesus”, é porque faziam parte do grupo itinerante de seus discípulos.

NÃO É SÓ LAVAR OS PRATOS

O evangelista diz também que elas é que “serviam” Jesus quando estava na Galileia. Mas que tipo de serviço prestavam no grupo? Normalmente, pensa-se que faziam trabalhos “de mulheres”, isto é, cozinhar, servir a mesa, lavar os pratos, costurar a roupa. Um grupo itinerante, como o de Jesus, precisaria de alguém que se ocupasse destas atividades.

E bem podiam ter sido essas as tarefas delas. Mas vemos que muitas destas funções eram feitas pelos homens . Assim, os discípulos aparecem servindo a comida (Mc 6, 41), recolhendo as sobras (Jn 6, 12), comprando alimentos (Jn 4, 8). No evangelho de Marcos, a palavra “servir” não significa fazer tarefas domésticas, senão anunciar o Evangelho. Ao falar de sua missão neste mundo, Jesus disse que não veio “para ser servido, senão servir e dar sua vida” (Mc 10, 48). Ou seja, servir, na linguagem evangélica, significa dar a vida pelos irmãos, mas cumprindo uma missão evangelizadora. Essa, diz Jesus, é a missão de todo discípulo (Lc 12, 35-48; 17, 7-10). Inclusive a perfeição cristã é obtida com o serviço (Mt 25, 44).

Em outras palavras, se estas mulheres “serviam” Jesus é porque de alguma maneira pregavam o Evangelho, curavam doentes, expulsavam demônios e realizavam as mesmas funções dos demais discípulos, não porque cumprissem tarefas de cozinha e de limpeza.

Por último, Marcos diz que elas “ subiram a Jerusalém com Jesus”. Isto é, não eram mulheres locais, que ao inteirar-se de sua morte se reuniram espontaneamente para contemplar o macabro espetáculo, senão mulheres da Galileia que haviam viajado com Jesus e seus discípulos a Jerusalém para celebrar a Páscoa. Fizeram, pois, a longa viagem relatada em Mc 10, 1 - 11, 11.

OUTROS NOMES PARA A MESMA FUNÇÃO

Se Jesus teve durante sua vida pública, além dos Doze, um grupo de mulheres que o acompanhavam em suas viagens e em sua missão, por que Marcos não falou sobre elas em seu evangelho, mencionando-as somente no final? Talvez, porque sua presença no grupo de Jesus era um dado escandaloso para os leitores. Por isso preferiu não falar sobre elas. Mas o fato de que elas estivessem presentes durante sua morte, e inclusive durante sua ressurreição, era tão conhecido que Marcos já não pôde ficar calado.

Mas Marcos não é o único evangelista que as menciona. Elas são mencionadas em Mateus também, quando relata a morte de Jesus, acrescenta: “ Ali havia muitas mulheres, olhando de longe, aquelas que seguiram Jesus desde a Galileia para servi-lo. Entre elas estavam Maria Madalena, María a mãe de Santiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu” (Mt 27, 55-56).

Mateus, assim como Marcos, dá o nome de três delas. Somente muda o da terceira mulher. Enquanto Marcos cita Salomé, Mateus fala da mãe dos filhos de Zebedeu (isto é, a mãe de Santiago e João). Talvez, Mateus tenha feito isso porque não sabia quem era Salomé. Em compensação, sabía que a mãe dos Zebedeus esteve seguindo Jesus durante sua vida; de fato, ela é mencionada em uma cena (Mt 20, 20). De qualquer maneira, ele fala a mesma coisa que Marcos: seguiam o Senhor e o serviam.

EMBORA PREJUDICASSE SEU MARIDO

Lucas também menciona as mulheres discípulas no final da vida de Jesus (Lc 23, 49; 23, 55). Mas este autor nos depara uma surpresa, pois fez algo que nenhum outro evangelista fez: menciona-as como acompanhantes de Jesus “durante” sua vida pública.

Segundo Lucas, em certa ocasião, Jesus ia para a Galileia: “Percorria as cidades e povoados, proclamando e anunciando o Reino de Deus; acompanhavam-no os Doze discípulos e algumas mulheres que foram curadas de espíritos malignos e doenças: Maria, chamada Madalena, da qual sairam sete demônios; Joana, mulher de Cusa, um alto funcionário de Herodes; Susana, e muitas outras que o serviam com seus bens” (Lc 8, 1-3).

Observemos como o evangelista coloca tanto os Doze como as mulheres num mesmo nível, já que une os dois grupos com a conjunção “e”, que serve para igualá-los. Também nos diz que eram mulheres de boa posição econômica, já que ajudavam economicamente o movimento de Jesus com seu próprio dinheiro.

Mas sobretudo resulta interessante ver os nomes que aparecem na lista, especialmente o de uma tal Joana. Dizem que estava casada com Cusa. Ele era nada menos que um funcionário de Herodes Antipas, governador da Galileia, com quem Jesus se levava tão mal. A tensão entre ambos se devia a que Antipas mandara degolar João, o Batista, por considerá-lo seu inimigo.

Que terá dito Antipas, ao inteirar-se de que a esposa de um de seus homens mais importantes andava deambulando atrás de Jesus, um Mestre revolucionário radical e ex- discípulo de João, o Batista? Para piorar as coisas, em certa ocasião o próprio Jesus criticou publicamente Antipas, chamando-o de “raposa”, por seu temperamento pérfido e cobiçoso (Lc 13, 31-32). Tudo isto, deve ter feito perigar o posto de Cusa? Será que o governador ficou bravo e o expulsou do seu trabalho? Não sabemos. O que sim sabemos é que Joana, apesar de ter colocado em risco a carreira de seu marido, nunca abandonou o Mestre e o seguiu até o final (Lc 24, 10).

AS LIÇÕES FEMININAS

O fato de que os evangelhos mencionem nada menos que em cinco oportunidades um grupo de mulheres que seguiam Jesus é, sem dúvida, um indício de que estamos diante de um valioso depoimento histórico. Mas falta responder umas perguntas: estas mulheres também escutavam os ensinamentos privados de Jesus, ou não? Estavam, também nesse sentido, no mesmo nível que os discípulos homens?

A questão é importante porque na época de Jesus, os judeus não permitiam que as mulheres estudassem a Palavra de Deus. Pensava-se que elas estavam em condições intelectuais inferiores e que era perigoso ensinar-lhes algo tão sagrado pelos erros que podiam extrair das Escrituras. Sabemos, por exemplo, que os rabinos diziam: “É preferível queimar o Livro da Lei, antes que mostrá-lo para uma mulher”. Outro mestre judeu, Rabí Eliezer, no século I d.C. comentava: “Quem ensina a Lei para sua filha, ensina-lhe obscenidades”. Também diziam os rabinos: “Todos os males que existem no mundo entram, durante o tempo que os homens perdem falando com as mulheres”. Diante deste clima adverso à educação das mulheres, como é que Jesus agiu?

Os evangelhos não nos dizem nada. No entanto, quando elas vão a sua tumba, na manhã de Páscoa e a encontram vazia, São Lucas conta que apareceram dois anjos e lhes dizem: “Por que procuram entre os mortos aquele que está vivo? Não está aqui, ressuscitou. Lembrem-se como lhes falou quando ainda estava na Galileia, dizendo: ‘É necessário que o Filho do Homem seja entregue nas mãos dos pecadores e seja crucificado, e no terceiro dia ressuscite’”. E Lucas continua: “Elas, então, recordaram suas palavras” (Lc 24, 5-8). Nesta passagem se repete duas vezes a palavra “recordar”. Ou seja que, segundo Lucas, as mulheres escutaram os ensinos privados que Jesus dera na Galileia sobre os últimos acontecimentos de sua vida e que nos evangelhos aparecem como transmitidas somente par aos homens (Lc 9, 18-27). Marcos (16, 6-7) também dá a entender que elas participaram desses ensinamentos.

UMA OUSADIA ESCANDALOSA

Durante sua vida, Jesus configurou um novo tipo de discipulado itinerante. Mas sua atitude mais inovadora e audaz foi a de ter admitido mulheres nesse grupo, que viajavam com ele, compartilhando essas instruções.

Em sua época, as mulheres não gozavam de tais liberdades. Não era bem visto que tivessem tratamento direto com homens que não fossem seus próprios familiares (Jn 4, 27). E, quando iam ao templo , com motivo de uma festa religiosa, não podiam ingressar no pátio onde estavam os homens, devendo permanecer num claustro exclusivo. Também quando iam rezar nas sinagogas, permaneciam separadas dos homens.

Afastadas dos problemas sociais, excluídas da vida pública, separadas dos debates religiosos, sem concorrência em questões políticas, eram as grandes perdedoras na sociedade judia dos tempos de Jesus. Sua função se reduzia ao cuidado da casa e dos filhos. Por isso não deixa de surpreender a ousadia do Mestre de Nazaré.

A ATITUDE DO CORAÇÃO

Se normalmente as pessoas criticavam Jesus, dizendo que era um comilão e um bêbado, amigo de pecadores (Mt 11, 19) e de prostitutas (Lc 7, 39); denominavam-no de louco (Mc 3, 20-21) e endemoninhado (Jn 8, 48). Mas vê-lo, além disso, acompanhado por um séquito de mulheres sem maridos, algumas das quais eram antigas endemoninhadas, que o sustentavam economicamente e que viajavam com ele pelas zonas rurais da Galileia, escutando e aprendendo seus ensinamentos, deve ter sido algo escandaloso e, sem dúvida, deve ter aumentado a desconfiança de sua pessoa. As pessoas certamente deveriam perguntar como era possível que um mestre afamado como ele admitisse pessoas que a tradição judia considerava não capacitadas para o estudo e para o serviço religioso. Mas a resposta de Jesus, ao aceitá-las em seu grupo, foi que toda pessoa é apta para o serviço de Deus.

Nas mãos de Jesus, no grupo de Jesus, na escola de Jesus, todos somos valiosos e importantes. Mais ainda, todos somos necessários. Daquelas mulheres, que a sociedade da época não considerava, Jesus soube extrair enormes riquezas e descobrir um potencial impressionante. Porque nosso valor como pessoas não depende da aceitação dos demais, nem de que os outros nos reconheçam ou aprovem. Depende do chamado de Jesus para cada um. Isso é o que torna alguém extraordinariamente importante. E ele ainda continua, chamando-nos a fazer coisas grandiosas. Todos. Basta escutá-lo e perguntar-lhe: aonde nos quer levar?
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Ariel Álvarez Valdés. Doutor em Teologia Bíblica, Santiago del Estero, Argentina. Artigo publicado na revista Mensaje

Fonte: Mirada Global