O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

30 de maio de 2012

''O verdadeiro problema é a clericalização. Voltemos ao Concílio e à colegialidade''

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/509992-o-verdadeiro-problema-e-a-clericalizacao-voltemos-ao-concilio-e-a-colegialidade

Não parece tão surpreso o vaticanista e escritor Gian Franco Svidercoschi com osescândalos vaticanos. Mas certamente decepcionado. O ex-vice-diretor doL'Osservatore Romano é o autor de um livro – Mal di Chiesa. Dubbi e speranze di un cristiano in crisi – que tem provocado muita discussão.

A reportagem é de Roberto Monteforte, publicada no jornal L'Unità, 28-05-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.




Eis a entrevista.

A dor e a degradação que o senhor denunciou têm a ver com os fatos de hoje?


Diante do que está acontecendo, o meu livro parece ter sido escrito por uma noviça. A crise que a Igreja atravessa é muito mais grave até mesmo do que aquela imaginada pelo próprio pontífice, que convocou para setembro próximo o Ano da Fé. É verdade que estamos diante de uma crise da fé. Mas esse é o resultado final de muitas coisas. Não só de crises individuais. Na Igreja, certamente há também uma crise de estruturas, uma crise de projetos e principalmente de liderança. Muitas coisas têm acontecido nos últimos anos para não pensar que aqueles que tinham que suprir um papa idoso, que preferia se dedicar à pregação e à escrita, tivessem que fazer funcionar a máquina da Cúria. Não foi assim. Nos últimos tempos, a Secretaria de Estado parece ter assumido uma autonomia e uma predominância excessiva...

Explique mais...

Olhemos para os dois últimos consistórios, ambos realizados com o cardeal Bertone, secretário de Estado. O seu parecer indubitavelmente pesou na escolha dos cardeais. Mais de 40% dos nomeados são italianos, e 50% são daCúria Romana. Foi a subversão do rosto do colégio cardinalício que elegeu a papa o cardeal Joseph Ratzinger, em que os europeus não tinham a maioria. Agora, ao invés, voltaram a tê-la. Na última rodada de nomeações, não houve nenhum novo cardeal africano. E depois as lutas pelos grupos...

A que se refere?

Eu não acredito que o mordomo do papa assumiu sozinho a responsabilidade de trazer à tona os documentos. Até porque não podia chegar sozinho a todos os documentos vazados. Depois, porque me parece excessivo pensar quePaolo tivesse um amor infinito pelo papa e, com esses vazamentos de documentos, pensasse em atacar os supostos inimigos do papa. Deve haver alguém por trás disso. Essa é a demonstração da queda da liderança da Igreja, antigamente conhecida como o centro de uma grande diplomacia e de governo. Agora, são esses os homens que chegaram ao poder. E não é à toa que os dois últimos pontífices condenaram explicitamente, mais de uma vez, o carreirismo. É o sinal de que, entre a hierarquia, o carreirismo exagerado está presente, com um subgoverno que, talvez para agraciar um "chefe" ou outro, chega à guerra de grupos da qual estamos vendo os resultados.

Com quais objetivos estariam agindo? Os efeitos são devastadores para a credibilidade da Igreja.

Há a pobreza de visão dessas pessoas. As gafes em que, para sua infelicidade, Bento XVI incorreu põem em causa a Secretaria de Estado. Na Cúria, há quem pensa em criar "territórios privados" reservados aos italianos. Foi assim com as últimas nomeações. É evidente a influência do secretário de Estado sobre as escolhas específicas. Isso pode ter causado uma reação por parte daqueles que tendem a resistir àquela que podem considerar como uma prepotência, uma arrogância da Secretaria de Estado. Há cardeais que já pediram ao Papa Ratzinger a renúncia deBertone. Na cabeça da Cúria, seria necessário um político de nível internacional: dessa forma, no entanto, o próprio papa, no fim, ficou achatado em uma dimensão italiana.

Isso justifica os corvos?

Na nota vaticana de condenação da publicação das cartas roubadas no Vaticano publicadas no livro de Nuzzi – e eu digo isto como fiel –, faltava um mínimo de explicações sobre os conteúdos críticos presentes nessas cartas. São cartas verdadeiras. Há acusações específicas. Alguém as desmentiu? Não. Penso em Viganò ou no que está escrito na carta de Boffo. É incrível o que está acontecendo. É preciso mais transparência. E depois se ataca aqueles que trazem às notícias à tona sem explicá-las?

A responsabilidade é só da gestão da Cúria Romana?

Nos últimos anos, houve um empobrecimento da cúpula vaticana, com uma infusão de pessoas muito próximas ao secretário de Estado. São amigos do cardeal Bertone os três cardeais colocados nos postos-chave da organização do Vaticano. Do outro lado do Tibre, entrou a fragilidade humana. Tanto Wojtyla quanto Ratzinger, com suas sensibilidades, perceberam a impossibilidade de mudar a Cúria Romana.

O que o senhor propõe?

Uma premissa. O verdadeiro problema é a clericalização da Igreja. É o retorno de um mal antigo: o domínio dos clérigos. Há um retorno de individualismo e de clericalismo também entre os jovens padres. É a Igreja hierárquica que se sente dona da verdade e não ao serviço dos outros. O que na Igreja devia ser serviço se fez poder. O uso do poder sagrado por parte dos clérigos: esse é o caruncho. Determinando assim uma reação igual e contrária por parte de quem detinha o poder e agora se sente marginalizado. A Secretaria de Estado não está ao serviço do papa; tornou-se um poder. A resposta é voltar verdadeiramente ao Concílio Vaticano II e à colegialidade.

A Igreja Católica está se reduzindo a uma seita?

Jamie L. Manson, teóloga católica e mestre em teologia pela Yale Divinity School




Se a hierarquia continuar nesse caminho de privação de direitos em massa, o resultado não será uma Igreja menor e mais fiel, mas sim uma seita isolada e contracultural.

A análise é de Jamie L. Manson, teóloga católica e mestre em teologia pela Yale Divinity School. Suas colunas no jornal National Catholic Reporter - NCR - renderam-lhe um prêmio da Catholic Press Association por melhor coluna/comentário regular em 2010. O artigo foi publicado no sítio do jornal NCR, 24-05-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.


Muito tem se falado nos últimos meses sobre um anúncio publicado no The New York Times (imagem abaixo)encorajando católicos liberais e nominais a "sair da Igreja", porque ela nunca poderá ser mudada a partir de dentro e porque participar dela é colaborar com o seu sistema opressivo.
O anúncio foi pago por uma organização chamada Freedom from Religion Foundation. Mas, quanto mais eu reflito sobre o anúncio e sobre o comportamento da nossa hierarquia ultimamente, há uma parte de mim que não ficaria surpresa se ficássemos sabendo que o próprio Vaticano secretamente pagou pelo anúncio.
Com os seus ataques contra o casamento homossexual, a batalha contra a prestação de cuidados de saúde adequados às mulheres, o golpe hostil contra a LCWR [Leadership Conference of Women Religious] e a inquisição contra as meninas escoteiras, a hierarquia continua se apresentando como um embaraçoso espetáculo midiático em uma sociedade que há muito tempo se recusa a aceitar o ensino sobre o controle de natalidade, que acredita na igualdade das mulheres e que, cada vez mais, apoia o casamento homossexual.

Mesmo aqueles que não são afetados diretamente por essas batalhas ideológicas acham odioso o fato de que a hierarquia prefere gastar uma quantidade preciosa de dinheiro e de recursos em ações judiciais contra o governoObama e em bizarras novas campanhas como a Fortnight for Freedom [período de oração e reflexão sobre a liberdade religiosa proposto pela Conferência dos Bispos dos EUA para os dias 21 de junho a 4 de julho].

Os líderes da Igreja parecem obcecados por privar de seus direitos o maior número de leigos possível.

A pergunta é: por quê? Por que a hierarquia está agindo como a nova chefe que, para se livrar da equipe que herdou, torna tudo o mais desconfortável possível para que não permaneçam na organização? As lideranças da Igreja tomaram uma decisão por reduzir seu tamanho? Será que ele perceberam que os 2,2 bilhões de dólares em acordos em torno dos abusos sexuais e o número rapidamente decrescente de padres nos Estados Unidos tornou a Igreja incapaz de prover as necessidades dos 72 milhões de católicos?

Talvez, todas essas batalhas ideológicas – que, dizem, estão fundamentadas no desejo do Papa Bento XVI de umaIgreja menor e mais fiel – tenham realmente tudo a ver com dinheiro, ou com a falta dele. Mais de um comentarista sugeriu que o fim da repressão contra a LCWR poderia estar na recaptura de propriedades, bens e reservas de pensão das comunidades religiosas.

Infelizmente, se a hierarquia continuar nesse caminho de privação de direitos em massa, o resultado não será uma Igreja menor e mais fiel, mas sim uma seita isolada e contracultural.

Em seu livro The Sacred Quest, os estudiosos Lawrence Cunningham John Kelsay descrevem as características de uma Igreja e de uma seita. Eles contam com o trabalho pioneiro do estudioso alemão Ernst Troeltsch - o primeiro a fazer essa distinção com base em suas observações na Europa -, do início do século XX, quando comunidades religiosas como a Igreja da Inglaterra estavam em contraste com grupos dissidentes, como os quakers, cujas crenças religiosas os excluíram da cultura dominante de seu país.

Cunningham Kelsay definem uma igreja como "uma comunidade religiosa de alguma posição social que convida todos os membros de uma sociedade a participar de suas atividades, tem uma participação no bem-estar da comunidade social, e afirma ser o guardião da verdade religiosa".

Uma seita, por outro lado, "tende a exigir mais da conformidade em seus membros, é exclusiva, distancia-se das preocupações da sociedade em geral e também afirma ser a portadora da verdade religiosa." Seitas são "exclusivistas, introspectivas e têm algumas tensões com a cultura dominante". Exemplos atuais de seitas seriam os Amish ou os judeus hassídicos.

Enquanto a hierarquia e seus devotos gastam todo o seu tempo e energia exilando os "dissidentes" na Igreja, são eles que estão se tornando dissidentes na sociedade. O chamado de Bento XVI para a obediência radical e a recusa de questionamentos soa mais como a demanda absoluta de uma seita para o conformismo do que o chamado para uma igreja universal.

A recusa da hierarquia em reconhecer a necessidade crucial de contracepção global, bem como um sacerdócio que inclua mulheres e pessoas casadas, é um sinal claro de seu isolamento contínuo com relação às preocupações da sociedade.

Alguns na hierarquia e muitos dos que estão no movimento neoconservador até já se voltaram para a noção pré-Vaticano II de que a salvação só pode vir através da Igreja Católica Romana.

Até mesmo os trajes a Igreja Católica estão se tornando sectaristas. Jovens seminaristas e recém-ordenados tornaram-se notórios por arrastar para fora dos armários da Igreja túnicas amarradas como saias, pluviais e manípulos repletos de traças. E qual leitor do NCR pode se esquecer do galero do cardeal Raymond Burke (foto à esquerda), ou da exibição da capa magna de 20 metros de comprimento do bispo Edward Slattery James na Basílica do Santuário Nacional da Imaculada Conceição (foto à direita)?

Quem pode ficar feliz e em paz na Igreja institucional, exceto aqueles que possuem pontos de vista extremistas e contraculturais? Claro, alguém pode argumentar que o próprio Jesus foi considerado extremista e contracultural em seu tempo. Mas aqui está a diferença: Jesus não tinha medo do mundo.

Jesus nunca permitiu obediência absoluta à lei para trunfar as necessidades pastorais da das pessoas diante dele. Ele desafiou o ritual religioso em prol da cura do sofrimento. Ele chamou todos - coletores de impostos, homens ricos, mulheres, bêbados, prostitutas - para a sua mesa, sem exigir nenhum teste de fidelidade ou confissões.

Igreja Católica Romana está se tornando rapidamente um refúgio para aqueles que têm medo do mundo. A Igreja que, há 50 anos, chamou a si mesma para imergir no mundo moderno está, em vez de encolhendo, recusando-se a se envolver de uma forma significativa e pastoral com as lutas e necessidades humanas de hoje.

A hierarquia está tão arraigada em ideologias que esqueceu que existem complexas histórias humanas por trás de questões como a contracepção, a ordenação de mulheres e o casamento homossexual. Não é à toa que eles têm tanto medo de mulheres religiosas - que construíram uma Igreja de integridade e credibilidade moral por imersão na realidade da vida humana e pela coragem de se comprometer com um mundo cheio de sofrimento, fissura, imprevisibilidade e paradoxo.

Ao invés de permitir que o ministério da Igreja cresça e evolua com a comunidade humana, a hierarquia parece estar escolhendo o caminho de um grupo religioso dissidente. Ao fazer isso, eles estão abandonando, de bom grado, aqueles que esforçaram-se por décadas para permanecer fiéis à Igreja, mesmo através da desgraça dos abusos sexuais e da rescisão gradual das promessas do Concílio Vaticano II.

E quando essa geração de fiéis morrer, quem entre as novas gerações irá achar vida e sentido nesta Igreja-seita? Aqueles que querem fugir de um mundo em fluxo, com sofrimento, incerteza e luta pela igualdade? Aqueles que querem se recolher em um enclave fundamentalista onde homens europeus e patriarcais afirmam ter a verdade absoluta e inquestionável sobre Deus e sobre o nosso mundo?

Talvez seja uma Igreja mais fraca do que a hierarquia e seus devotos acham que querem. Talvez isso é tudo o que as lideranças sê veem realisticamente capazes de pagar. Quaisquer que sejam as motivações, se eles continuarem nesse caminho, terão que aceitar que deixarão de ser uma Igreja no mundo moderno e, ao contrário, se transformarão em uma seita exclusivista e isolada.

29 de maio de 2012

De Pacelli a Ratzinger: a grande crise da Igreja

De Pacelli Ratzinger, todos os pontificados foram atravessados pelo fio dourado do confronto entre a Igreja e a modernidade. Por isso, merecem uma atenção especial para se entender qual é a essência da crise sistêmica que ocorre debaixo dos nossos olhos.

Publicamos aqui o editorial de Eugenio Scalfari, fundador do jornal La Repubblica,  publicada no jornal La Repubblica, 27-05-2012. A tradução é deMoisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A velha Itália afundou durante um dia repleto de tempestade e de presságios, no outono de 1958: oPapa Pio XII morria em meio a uma corte desfeita de cardeais decrépitos, de alcoviteiros de negócios, de freiras fanáticas, de parasitas. No palácio papal deCastel Gandolfo, enquanto o temporal enchia as águas do lago e o vento sul escancarava as persianas e se engolfava entre as tendas e nos corredores, dignitários leigos e eclesiásticos se preparavam para ir embora.

Cada um tentava levar embora, até mesmo fisicamente, o máximo que podia. Mas, acima de tudo, cada um brigava para conservar algum benefício, um cargo lucrativo, uma fatia, por menor que fosse, daquele poder que, até aquele momento, há mais de dez anos, havia sido administrado sem escrúpulos e sem concorrência.

O afã era visível em toda parte, nas salas de recepção, nas antessalas e até mesmo ao redor do leito do moribundo que, já em agonia, era impudicamente fotografado pelo seu médico assistente e pela sua irmã assistente, com o tubo de oxigênio na boca, e os traços do rosto devastados pelas sombras da morte. Não era o afã da piedade. Era o afã da ganância e do medo, porque todos sabiam, dentro do palácio, que não morria um papa, mas acabava um reino.

Na sala privada do papa, circundado pelos purpurados mais idosos e poderosos, pelos chefes do Santo Ofício, dasMissões, do Tesouro, dos Seminários, o Camerlengo da Igreja representava o último elo de uma continuidade que estava prestes a se despedaçar definitivamente. Ele tinha, como sempre, um rosto absolutamente inexpressivo; não era um homem, mas sim um cargo, uma função, uma pausa do cerimonial. Mas, em torno desse cargo e do homem que estava dentro dele, ia se tecendo, precisamente nessas horas e naquele lugar, a trama do conclave.

Aloisi Masella, o Camerlengo, foi o primeiro e talvez decisivo mediador, juntamente com Agagianian, o prefeito doPropaganda Fide, entre o grupo dos cardeais estrangeiros e os curiais. Começou ali a busca que se concluiria algumas semanas depois sob as abóbadas da Capela Sistina, com um resultado que abalaria todos os programas, de um terceiro homem, um papa que teria que ser, ao mesmo tempo, bastante pastoral para absorver as inquietações da catolicidade, bastante diplomático para não esquecer as leis do poder, bastante humilde para restituir ao Colégio e aos Episcopados as prerrogativas que Pacelli havia confiscado. E bastante velho para não durar por muito tempo.

Naquela aurora de trovões e de ventos, quando o médico do papa, Galeazzi Lisi, declarou a sua morte clínica, dignitários, curiais, camareiros secretos, banqueiros, políticos, fugiram para Roma em grandes automóveis pretos para preparar o futuro incerto. Um bando de corvos abandonava as estruturas corroídas de um lugar do qual uma monarquia absoluta havia governado um país.
* * *
O trecho que vocês leram foi retirado de um livro meu intitulado L'autunno della Repubblica, de 1969, no auge do movimento estudantil. O capítulo aqui citado intitula-se "O fim de um reino" e relata justamente a morte do Papa PacelliPio XII, que personificou por longos anos a Igreja triunfante e combatente que continha, porém, desde então, aquela crise sistêmica da qual fala o católico Alberto Melloni, um dos historiadores da Igreja mais credenciados nessa matéria.

Os acontecimentos em andamento marcam o momento culminante dessa crise: a destituição de Gotti Tedeschi da liderança do IOR, a prisão do mordomo do papa, Paolo Gabriele, a surda luta em curso entre as diversas facções curiais e anticuriais, a posição cada vez mais vacilante do secretário de Estado, Tarcisio Bertone. Por fim, o desespero do Papa Ratzinger, fechado em seus aposentos e manifestamente incapaz de segurar firme o leme em um mundo invadido por ganâncias, ambições, complôs e visões conflitantes da Igreja futura.

Não vou me ocupar, todavia, das investigações em curso, que o nosso jornal já abordou amplamente nestes dias e também hoje, com todas as atualizações noticiosas. Interessa-me, ao invés – e espero que interesse aos nossos leitores –, dar uma olhada de conjunto sobre os pontificados que se sucederam de Pacelli Ratzinger. Todos foram atravessados pelo fio dourado do confronto entre a Igreja e a modernidade. Por isso, esses pontificados merecem uma atenção especial para se entender qual é a essência dessa crise sistêmica que ocorre debaixo dos nossos olhos.
* * *
O conclave que elegeu João XXIII ocorreu depois da monarquia absoluta, mas muito astuta, de Pio XII, um diplomata por excelência, que governou a Igreja em tempos duríssimos, com a guerra em curso e, depois, a guerra que encerrou com a reconstrução da democracia e o governo daDemocracia Cristã de De Gasperi.

Pacelli teve todos os defeitos e todas as qualidades dos grandes pontífices. Dissemos que se destacou nas capacidades diplomáticas, e ele demonstrou isso amplamente, sobretudo no atormentadíssimo período da ocupação nazista de Roma. Mas não lhe faltava pastoralidade e nem grandes capacidades cênicas. Ainda está nos olhos de todos os seus contemporâneos a sua visita ao bairro de San Lorenzo, em Roma, destruído pelo bombardeio norte-americano, onde a sua veste branca ficou manchada de sangue, quando avançou por entre as ruínas para abençoar os mortos e socorrer os feridos ainda estendidos pelas ruas devastadas.

Partido Conservador também estava, naquela época, barricado na Cúria. O papa teve o cuidado de não dispersá-lo. Ao contrário, o reforçou para que se submetesse. Era ele quem decidia quando era o de fazê-lo emergir ou de fazê-lo calar. Além disso, quem falava por ele era o padre jesuítaLombardi, chamado de "o microfone de Deus", que combatia os social-comunistas com espada desembainhada. Uma outra espada estava nas mãos de Gedda e dos comitês cívicos que renegavam até mesmo a política de De Gasperi, que nunca foi recebido em audiência privada no Vaticano.

Mas Pacelli também era nepotista no sentido clássico e familista do termo. Era um príncipe e, como tal, se comportou e, como todos os príncipes, se entregou também ao populismo: recebia todos os tipos de categorias da sociedade civil: médicos, advogados, jornalistas católicos, ciclistas e jogadores de futebol, donas de casa, policiais e militares, atores e operários, empresários e barbeiros. O populismo de Berlusconi faz rir em comparação ao de Pio XII, que agora está em predicado de santidade.
* * *
Papa João foi o extremo oposto, embora com alguns condicionamentos. Ele foi eleito com uma condição: que restituísse à Cúria a sua independência funcional. Ele se manteve fiel a esse mandato, mas os curiais não contaram que o papa também era capaz de proceder novas nomeações quando a morte abrisse espaços vazios na hierarquia.Havia a necessidade de um papa sobretudo pastoral, e o tiveram no sentido mais pleno da palavra. João foi muito mais pastor do que Romano Pontífice. O físico o ajudava, e o discurso também, mas foi sobretudo a sua alma que o ajudou ou, se se quiser, o Espírito Santo. Ele amava as crianças, as mães, as famílias, os pobres, os excluídos.

Ele chamou Montini novamente para a Secretaria de Estado e convocou o Concílio Vaticano II, para onde afluíram os bispos de todo o mundo católico. Havia passado um século desde oVaticano I, que se reuniu a pouca distância de tempo desde o fim do poder temporal dos papas. Ali, foi proclamado o Papa-Rei, infalível quando fala ex cathedra, e foi elevada a dogma a virgindade de Maria.

Vaticano II, ao contrário, proclamou a necessidade de que a Igreja se confrontasse com a modernidade. Foi uma revolução, iniciada, mas obviamente completada. Foi a escolha de um tema que devia ser levado adiante, começando pela modernização da Igreja, pelo abalo da liturgia, a missa recitada nas línguas correntes e não mais em latim, com o sacerdote voltado para os fiéis e não mais de costas, a abertura do debate sobre o papel dos leigos e das mulheres. Por fim, o desinteresse do Vaticano com relação à política italiana e, portanto, a autonomia dos católicos comprometidos.

Mas em um ponto os curiais estavam certos: no seu quarto ano de pontificado, o papa adoeceu e, no quinto ano, morreu.

Ainda me lembro do funeral: uma multidão imensa que, da praça, chegava ao Tibre e além, todas as ruas apinhadas, desde a Piazza Cavour e a Villa Pamphili, todo o Borgo Pio. Não se via um papa como ele há muito tempo e não se viu desde então.
* * *
Depois, veio Montini. Dizer que ele teve qualidades pastorais seria pouco. Diplomático, certamente. Nenhuma sombra de populismo. Foi um político, talvez até demais. Mas não conservador.

Ele não levou adiante o confronto com a modernidade, mas impediu que houvesse novos retrocessos. Foi um pontificado com fases dramáticas naqueles anos de chumbo que culminaram com o assassinato de Aldo Moro, do qual que ele oficiou a missa fúnebre em Latrão.

Foi um papa de interregno.

Talvez, o Papa Luciani tinha alguma semelhança distante com o Papa João, mas morreu depois de apenas um mês. Depois dele, subiu à cátedra um cavalo de raça, uma grande, grandíssimo ator. Não sei se a Igreja precisava de um ator, mas ele o foi da cabeça aos pés, no momento da eleição, no momento do atentado, no momento da revolução na Polônia, no momento da queda do Muro, nas suas viagens contínuas ao redor do globo, no Jubileu do ano 2000 e na longa fase da doença e depois da morte.

Quando o Camerlengo pronunciou o seu nome depois da fumaça branca da chaminé da Capela Sistina, toda a praça pensou que haviam eleito um papa africano. Só quando ele se assomou, entendeu-se que era um branco, mas não italiano. "Se eu me equivocar, corrijam-me": recebeu uma ovação de estádio e assim começou.

Até o Solidarnosc e depois da queda do Muro de Berlim,Wojtyla foi o papa da liberdade religiosa contra o totalitarismo comunista. No Ocidente, ele teve o apoio dos conservadores, dos liberais, dos democratas. Derrubado o comunismo, ele acentuou a sua crítica contra o capitalismo, mas, ao mesmo tempo, reprimiu a "nova teologia" e a experiência dos padres operários. A indiferença com relação aoassassinato do bispo Romero enquanto rezava a missa em El Salvador foi uma das páginas desagradáveis do seu pontificado, compensada, contudo, pela sua peregrinação ininterrupta a todos os cantos do mundo onde lhe foi possível chegar.

Ele tentou iniciar a reunificação das Igrejas cristãs, mas sem dar passos significativos. Ele reconheceu a culpa histórica da Igreja, começando pela acusação de deicídio contra os judeus e pela condenação de Galileu e de Giordano Bruno.

A agonia foi muito longa e cenicamente grandiosa. Certamente não por cálculo, mas por autêntica vocação. "Santo subito" foi a invocação da multidão imensa que, também para ele, ocupou meia cidade.

Um balanço? Os problemas da Igreja na sua morte eram os mesmos: poder da hierarquia, marginalização do povo de Deus, crise das vocações, crise da fé em todo o Ocidente, nenhuma modernização dentro da Igreja. Mas uma modificação, sim, havia sido verificada nesse meio tempo: a mensagem do Vaticano II não só não dera passos à frente, mas havia dado passos para trás. Não por acaso, no Conclave, os martinianos foram marginalizados desde a primeira votação, e, a partir da segunda, emergiu Ratzinger, enquanto Ruini estava pronto para intervir se Ratzingerfosse derrotado.
* * *
Bento XVI não é um grande papa, embora o talento e a doutrina não lhe faltem. Não é um ator, ao invés, é o seu contrário. Wojtyla tinha um guarda-roupa grandioso, porque tudo era grandioso nnele. O guarda-roupa de Ratzinger, ao contrário, é lânguido, porque o próprio papa é lânguido, como se veste, como fala, como caminha. Escreve bem, isso sim. Os seus livros sobre Cristo são bons de ler, as suas encíclicas possuem aberturas, assim como alguns de seus discursos. A sua reavaliação de Lutero causou surpresa e alguma esperança de progresso em direção à modernidade, contrariadas, no entanto, pelas suas escolhas operativas, da confirmação de Sodano na Secretaria e, depois, à substituição por Bertone: do medíocre ao pior. Bertone: um Ruini sem a inteligência e a flexibilidade do ex-vigário e ex-presidente daCEI [Conferência dos Bispos da Itália]. A hierarquia se tornou novamente todo-poderosa, mas dividida em muitos pedaços. O ecumenismo já é uma flor murcha antes do tempo.

Bento XVI re-exumou plenamente a tomística de Tomás de Aquino com tantas saudações a OrígenesAnselmo de AostaBernardoAgostinho parecia ser um dos inspiradores deRatzinger, mas qual Agostinho? O maniqueísta, o coadjutor deAmbrósio ou o autor das Confissões? Agostinho foi muitas coisas ao mesmo tempo, chegando até Calvino, a Jansen e aPascal. Se quisesse dizer algo verdadeiramente atual, o Papa Ratzinger deveria dar início à beatificação de Pascal, mas me dou conta de que, no mundo dos Bertone, da Cúria Romana e das atuais Congregações, isso sim seria um gesto radical rumo à modernidade. Nunca o farão.

O pontificado lânguido seguirá adiante enquanto puder, depois não haverá o dilúvio, mas sim uma chuva de pântano cheio de rãs, mosquitos e alguns patos selvagens. O que há de pior para todos.

''O Vaticano continua sendo uma corte medieval''. Entrevista com Hans Küng

Hans Küng



"É uma situação muito grave e dolorosa e, como dizemos em alemão, faltam cinco minutos para a meia-noite: o tempo máximo ainda não terminou para salvar a Igreja e a Fé do sistema da Cúria Romana". O professor Hans Küng, talvez o teólogo mais rebelde do nosso tempo, foi, em sua juventude, amigo e companheiro de estudos de Bento XVI. Aqui, ele analisa o escândalo do Vaticano.

A reportagem é de Andrea Tarquini, publicada no jornal La Repubblica, 28-05-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis a entrevista.

Professor Küng, o quão grave é, segundo o senhor, a situação criada no Vaticano com o escândalo do vazamento de notícias?


É triste quando, justamente coincidindo com a festa do Espírito Santo, ficamos sabendo, no Vaticano, de tantos eventos e comportamentos ocorridos lá, que na verdade não são exatamente algo santo nem sagrado. Os escândalos relacionados ao vazamento de notícias confidenciais por obra do ajudante de quarto, as questões que atingiram o banco IOR e também, ao mesmo tempo, a intenção aparente do Papa Bento XVI de ir rumo à reconciliação com a Fraternidade de São Pio X [os seguidores ultraconservadores de Dom Lefebvre], em minha opinião, tudo isso, infelizmente, é um conjunto de eventos, escolhas, tendências que fazem parte de um todo. Não são casos isolados uns dos outros.

E que opinião o senhor amadureceu dessa situação, que o senhor descreve justamente como uma coincidência de eventos relacionados uns aos outros?

Todos esses eventos parecem ser sintomas da crise de um sistema inteiro em seu conjunto. Eu falo do sistema daCúria Romana, do sistema romano, de cujas características negativas toda a Igreja Católica sofre, no mundo inteiro. E, naturalmente, esses eventos contemporâneos dão a impressão de uma incapacidade papal. De um pontífice incapaz. A respeito disso, recém escrevi um livro, Salviamo la Chiesa, que está para ser lançado na Itália. O que me preocupa é aprofundar a problemática da indispensável reforma da Igreja.

O senhor também entrevê, como pano de fundo, um problema pessoal para Bento XVI?

Seguramente sim. Há também isso. Ele dedica horas e horas, todos os dias, à escrita de livros, em vez de governar a Igreja. E, nas fileiras da Cúria, está difundida a opinião de que ele não governa. Se queria escrever livros, o melhor era ter permanecido como um grande professor e teórico.

Por que o senhor fala ao mesmo tempo de crise estrutural, de sistema?

Porque a estrutura e a organização da Cúria Romana busca facilmente, mas em vão, nos enganar, esconder o fato-chave: que o Vaticano, em seu núcleo, continua sendo, ainda hoje, uma Corte. Uma Corte em cuja cúpula ainda se senta um reinante absoluto, com trajes e ritos medievais, barrocos e às vezes modernos e tradições cristalizadas, costumes. No seu coração, o Vaticano continua sendo uma sociedade de Corte, dominada e marcada pelo celibato masculino, que se governa com um código próprio de etiquetas e atmosferas. E, quanto mais você se aproxima do príncipe reinante subindo na carreira eclesiástica, menos valem ou contam, na primeira linha, a sua competência, a sua força de caráter, as suas capacidades e talentos, mas conta, ao contrário, que você tem um caráter maleável, com uma capacidade de se adaptar sobretudo aos desejos do reinante. É só ele, o reinante, estabelece se você é persona grata ou, ao invés, persona non grata.

E, mais especificamente, os problemas do Banco Vaticano?

O Vaticano vive em grande parte de doações dos fiéis, das receitas das dioceses. E ele administra bilhões de euros de economias de instituições eclesiásticas, de ordens e de dioceses de todo o mundo, e coloca os lucros à disposição do papa. O que foi pedido ao Kremlin pode ser pedido também ao Vaticano: primeiro, a glasnost, isto é, transparência. O Vaticano deveria se preocupar, em primeiro lugar, com a transparência dos negócios financeiros perante a opinião pública. E, segundo, a perestroika, reconstrução, reestruturação. O Vaticano deveria reestruturar as suas finanças e reorientar os fins da sua política financeira. E, por fim mas não por último, a reconciliação com a ordem de Pio X. O papa acolheria definitivamente na Igreja bispos e sacerdotes cuja consagração não é válida. Com base na Constituição Apostólica de Paulo VI Pontificalis romani recognitio, do dia 18 de julho de 1968, as ordenações sacerdotais e episcopais realizadas por Lefebvre são não só ilícitas, mas também nulas. Em vez de se reconciliar com essa irmandade ultraconservadora, antidemocrática e antissemita, o papa deveria se preocupar com a maioria dos católicos que está pronta para as reformas e com a reconciliação com todas as Igrejas reformadas e com todo o âmbito ecumênico. Assim, ele uniria ao invés de dividir.

De acordo com uma análise tão pessimista, não é tarde para salvar esse pontificado e a credibilidade do Vaticano?

Faltam apenas cinco minutos para a meia-noite, mas ainda não bateu a meia-noite. Um único ato construtivo de reformas lançado por esse papa ajudaria a restabelecer a confiança. Eu espero que o meu ex-colega Joseph Ratzinger não fique na História da Igreja como um papa que não fez nada pela reformar a Igreja.

26 de maio de 2012

A força do Espírito rompe barreiras e renova o mundo! PENTECOSTES

 Frei Jacir de Freitas Faria, OFM (*)



I. INTRODUÇÃO GERAL

Na era da internet, uma notícia chega aos quatro cantos do mundo em frações de segundos. Através das teclas do computador, vemos o mundo e nos comunicamos com ele, nos mobilizamos para coisas boas e ruins. Tudo se parece a um espírito que corre veloz nas ondas invisíveis e nas fibras óticas de um mundo globalizado, que, apesar dos avanços tecnológicos, persiste ainda em mostrar o incômodo da miséria, do racismo, da exploração sexual e das injustiças sociais que assolam grande parte do nosso planeta. A globalização ainda não acontece satisfatoriamente na promoção da solidariedade, da cultura da paz, do acesso aos bens necessários à vida, da promoção da justiça.
É nesse contexto de século XXI que continuamos celebrando Pentecostes como acontecimento profundamente aglutinador, pois nele todos os povos são reunidos por Deus para desfrutar da páscoa de seu Filho, fonte de paz, salvação e vida plena para todos. Pentecostes não é o oposto de Babel (Gn 11,1-9), pois ali não se trata de multiplicação de línguas, mas é a plenitude da comunicação entre o divino e o humano e  evento basilar do cristianismo primitivo, ao reler a manifestação de Deus no monte Sinai. É o que veremos nas leituras de hoje.
II. COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS
1.    I leitura (At 2,1-11): Pentecostes é a releitura simbólica do Sinai
Haviam se passado os cinquenta dias entre as festas da Páscoa e Pentecostes. Era o quinquagésimo dia da festa das semanas, daí o nome hebraico da festa: pentecostes. Era o dia 06 do mês de Sivan – 22 de maio no nosso calendário. Jerusalém estava repleta de peregrinos. Todos teriam trazido as primeiras colheitas para serem ofertadas no templo. A peregrinação até Jerusalém teria sido linda. Imagine grupos de pessoas caminhando juntos com cestos de uva, trigo, azeitonas, tâmaras, mel… Imagine o povo sendo acolhido em Jerusalém ao som de harpa, flauta e recitação de Salmos. Todos carregavam dentro de si o desejo de agradecer a Deus pelas primeiras colheitas e de comemorar o “dom da Torá”, da Lei dada ao povo no monte Sinai tantos séculos atrás. Nisso consistia a festa judaica de Pentecostes: comemorar o recebimento da Torá no monte Sinai e afirmar, com isso, que no dia de sua revelação “Eu também estava lá” (Dt 5, 24). O ontem se torna hoje (Lc 4).
Em Jerusalém estavam todos. E todos presenciaram a vinda do Espírito Santo. Como podemos interpretar esse episódio narrado por Lucas em Atos? Não estaria aí uma releitura do evento Sinai? Lucas descreve o acontecido em Pentecostes tendo na memória a narrativa do Sinai. Era preciso demonstrar que um novo Sinai estava acontecendo para legitimar a ação da comunidade de Jerusalém. Jesus teria dito para voltar a Jerusalém e lá eles receberiam o Espírito Santo. Pentecostes passa a ser o batismo da comunidade cristã, o qual a confirma na missão de ir para o mundo e evangelizar. Mais do que um dado histórico, estamos diante de uma profissão de fé. Sem Pentecostes, a Páscoa (passagem) em Jesus para uma nova vida não estaria completa. É belíssima a simbologia usada por Lucas para falar de uma experiência tão importante que marca o início da missão das comunidades cristãs.
Em At 2,1-13 temos dois relatos unidos: um mais antigo (vv. 1-4 + 12-13) e um mais desenvolvido redacionalmente (vv.5-11). O objetivo do primeiro é chamar a atenção para o fato carismático e apocalíptico de Pentecostes, e o segundo, demonstrar o caráter profético e missionário do evento. Vamos considerar o texto como um todo e interpretá-lo simbolicamente e como releitura do Sinai (cf. Faria, Jacir de Freitas, In.: O Espírito de Jesus rompe as barreiras, São Leopoldo: CEBI, 2001 p.13-16).
Eis os símbolos:
a)  Casa em Jerusalém: a vinda do Espírito Santo ocorre, segundo a tradição, em uma casa de dois andares na cidade de Jerusalém, que está situada sobre o monte Sião. Esses dois detalhes evocam claramente o monte Sinai, local onde Moisés recebeu as Dez Palavras de Deus. No Primeiro Testamento, os montes eram considerados lugares privilegiados da manifestação de Deus.
a)  Língua/linguagem: Lucas substitui o termo voz, que aparece na narrativa do Sinai, para língua. Esses termos são semelhantes e ambos se referem à Palavra. E cada um entende na sua própria língua. A Palavra é a presença de Deus. Língua (idioma) e linguagem (modo de se comunicar) têm o mesmo sentido no texto. O milagre de Pentecostes consiste no fato de os presentes poderem entender os apóstolos a  partir de sua própria cultura. É o mesmo que dizer: a evangelização está sendo realizada com sucesso. Por isso, esse fenômeno de “falar em línguas” – também encontrado em At 10,46; 19,6; 1Cor 12,10.28.30; 14,2.4-6.9 -, aparece nessa leitura com o acréscimo de “outras línguas”, com a intenção de demonstrar que a evangelização era para “todos no mundo todo”. Evangelizar não é falar em língua que ninguém entende, mas justamente o contrário. Não importa o idioma (língua mãe), mas a linguagem comum, o modo como é transmitida a proposta do reino.
b) De fogo: representa a manifestação de Deus; é um modo apocalíptico para dizer que Deus se manifestou – Ex 3,2-3; 13,21; 19,18) -,  (Cf. Comblin, José, Atos dos Apóstolos vol. 1:1-12. Petrópolis: Vozes, 1988, p.89). Deus acompanha o povo pelo deserto numa coluna de fogo que iluminava a noite (Ex 13,20-22). Deus desce para falar com o povo e Moisés no Sinai por meio de um fogo (Ex 19,18). A comunidade de Mateus conservou a memória da fala de João Batista que anuncia o batismo no Espírito Santo e no fogo que Jesus deveria realizar (Mt 3,11). E é isto que ocorre em Pentecostes, segundo a interpretação da comunidade de Atos dos Apóstolos. O Espírito Santo é o fogo da Palavra de Jesus que deve ser anunciada pelos seus seguidores. Também a tradição rabínica associa a palavra de Deus com o fogo. O comentário rabínico da passagem de Ex 20,18 “todo o povo ouviu trovões” diz: “Note-se que não é dito o trovão, mas ‘trovões’. Por isso, Rabi Johanan disse que a voz de Deus, apenas pronunciada, dividiu-se em 70 vozes, em 70 línguas, para que todas as nações pudessem compreender. Quando cada nação entendeu a voz na própria língua, a sua alma desfaleceu, salvo Israel que a ouviu, mas não ficou perturbado”( Cf. FABRIS, Rinaldo, Os Atos dos Apóstolos,São Paulo: Loyola, 1991, p.62. ). Falar em línguas, então, significa anunciar a palavra comprometedora de Jesus e não, balbuciar palavras indecifráveis.
c)  Multidão: simboliza o povo no deserto que recebeu as tábuas da Lei. No dia de Pentecostes, três mil pessoas estavam em Jerusalém. Não se trata aqui de uma cifra exata. A comunidade de Atos quis, com isso, afirmar que a comunidade dos convertidos era uma multidão, proveniente de doze povos e três regiões. Basicamente, estavam em Jerusalém três grupos: a) nativos do oriente (partos, medos e elamitas); 2) habitantes do leste (Mesopotâmia), norte (Ásia), sul (Líbia) e os da Judeia, Capadócia, Ponto, Frígia, Panfília e Egito; 3) estrangeiros (romanos, judeus e prosélitos, cretenses – povo marítimo – e árabes – povos do deserto). Curioso é o fato de que Lucas não menciona o território das igrejas paulinas (Síria, Macedônia e Grécia). Na menção aos povos, Roma está em último lugar. De onde Lucas herdou essa lista? Questão debatida. A lista dos vv. 9-10 Lucas herdou de uma fonte, mas a modificou, provavelmente. “Judeia” fora do lugar, no meio da Mesopotâmia e “Creta e arábia” parecem ser composição lucana.
d) Vendaval impetuoso: simboliza a manifestação de Deus. É a “violência” do Espírito que leva a comunidade a ser profética e missionária. Deus fala no Primeiro e Segundo Testamentos.
e)  Estão cheios do vinho doce: essa acusação simboliza os que não estão abertos ao novo da comunidade cristã. Segundo os Rolos do Templo (Cf. FITZMYER, J., The Acts of the Apostles, The Anchor Bible, vol. 31, p.235.), gruta 11, os judeus de Qumrã celebravam três pentecostes: a) Festa das Semanas e do Novo Trigo (50 dias após a Páscoa); b) Festa do Novo Vinho (50 dias após a festa do Novo Trigo); c) Festa do Novo Óleo (50 dias após a Festa do Novo Vinho). Essa sequencia de festas nos mostra que, depois da Páscoa, de cinquenta em cinquenta dias, era celebrada uma festa. Sendo uma das festas a do Novo Vinho, podemos entender melhor essa zombaria no texto: “estão cheios de vinho doce”. Lucas pode ter conhecido múltiplos Pentecostes entre os contemporâneos Judeus e fez alusão ao Pentecostes do Novo Vinho, quando fala, mais propriamente, do Pentecostes do Novo Trigo.
f)  Discurso de Pedro: Como Moisés, Pedro faz um discurso para fortalecer na fé os que aceitaram a proposta de Jesus e desmascara os que não estão dispostos a seguir o novo. Pedro, como liderança do grupo dos apóstolos, convoca a comunidade a acreditar em Jesus de Nazaré que foi morto e ressuscitou dos mortos por intervenção divina. Diante da reação atônita da comunidade, só resta a conversão para obter a salvação.       
2. Evangelho (João 20,19-23): Pentecostes é a nova páscoa para os seguidores de Jesus, na paz e no anúncio do Espírito Santo.
A comunidade está reunida e com medo. O ressuscitado ultrapassa a barreiras físicas e aparece diante dela. Ele lhes diz: ‘a paz esteja convosco’. “Paz se diz em hebraico Shalom, o qual, por sua vez, tem sua origem no verbo Shlm que, no tempo verbal piel,significa pagar, devolver, ressarcir, indenizar, conservar. Da mesma raiz, o adjetivo Shalem significa estar completo, inteiro. Pagar em hebraico tem o sentido de completar o valor justo. É uma forma simbólica de completar o vazio deixado pelo objeto tirado. Quem compra e não paga mutila o outro. Paz é um eterno estar em harmonia com Deus, o outro e o universo. Os judeus acreditam que o Messias só virá, quando a justiça social estiver implantada em nosso meio. Jerusalém, a cidade (Yeru) da paz (Shalem), é protótipo desse sonho, dessa esperança. Jerusalém, em hebraico se escreve, na verdade, Ierushalaim. Duas vezes aparece o i(em hebraico yod), sendo que na segunda vez ele não é pronunciado, pois representa o nome de Deus, Iahweh. Os outros povos, não compreendendo o significado do i no nome dessa cidade santa, traduziram o seu nome para Jerusalém. O yod representa, para o semita, a esperança. E é nesse contexto que podemos entender a fala de Jesus: “Nem um i sequer será tirado da Lei” (Mt 5,18). A esperança de paz, de voltar ao tempo de Deus, jamais acabará para quem sabe esperar. Jesus pôde dizer Paz a vós, pois ele é a paz. A sua presença já é paz e esperança. Quando, na missa, saudamos o outro com a expressão paz de Cristo, desejamos que Cristo esteja dentro dele e que ele seja qual outro ressuscitado. A expressão “Paz de Cristo” reúne os elementos do ser completo, da harmonia e, mais do que isso, da presença duradoura de Deus transmitida por Jesus aos seus” (Cf. Faria, Jacir de Freitas, As origens apócrifas do cristianismo, comentários aos evangelhos de Maria Madalena e Tomé. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 2003, p.??).
Para as comunidades joaninas, Pentecostes, como dom do Espírito, se realiza na Páscoa. Jesus, na sua morte de cruz, entrega o Espírito (Jo 19,30). Jesus ressuscitado aparece aos discípulos e lhes oferece o Espírito Santo, como nos atesta o evangelho de hoje (v.22). A comunidade pascal é portadora da paz e da força do Espírito do Ressuscitado que deve ser levado ao mundo. Ela é sinal da ação do Espírito que faz passar da morte para a vida todo o universo. Por isso, Jesus envia a comunidade ao mundo, com a missão de reconciliá-lo com Deus, combatendo as forças do mal. A nova comunidade dos judeus cristãos é portadora do projeto de Deus para a verdadeira unificação do mundo. Esse segredo chama-se: páscoa do ressuscitado. Sua força é a mesma de Pentecostes: reunir a diversidade na unidade. O desafio da comunidade é abrir as portas da ‘casa’: sair de si para reconhecer no universo o “vendaval” do Espírito que tudo renova, tudo recria e que sopra onde quer.
3. II leitura (I Coríntios 12,3b -7.12-13): O Espírito, fonte de diversidade e de  comunhão
Tendo aprofundado o caráter simbólico da solenidade de Pentecostes, nos deparamos com a segunda leitura de hoje, a qual é um desafio proposto à comunidade de Corinto, em meio às divisões que ela sofria. Paulo insiste na comunhão no mesmo Espírito, na diversidade de ministérios, atividades, raças, culturas e povos. Diversidade é sinal da riqueza do único corpo de Cristo e condição para a unidade. O Espírito distribui os dons e reúne tudo e todos em Cristo. Assim, todos devem ser responsáveis e contribuir para o crescimento da comunidade, o Corpo do Senhor. Essa unidade só é possível porque envolve três realidades: 1) a ressurreição de Jesus que reúne o corpo e a comunidade; 2) a força do Espírito que impulsiona esse corpo e 3) a diversidade de dons necessários à vida do corpo.
Na Comunidade de Corinto e nas de hoje, reconhecer Jesus como Senhor, título do Ressuscitado, é abandonar toda e qualquer divisão entre os irmãos. É ser sinal do amor de Deus para o mundo, deixando a energia do Espírito nos conduzir ao diferente, ao novo, manifestando a todos a vida que Deus dá. É o que expressa o prefácio litúrgico de Pentecostes: “…é ele quem dá a todos os povos o conhecimento do verdadeiro Deus e une, numa só fé, a diversidade das raças e línguas”. A unidade dos cristãos é um desafio constante para todos nós. É nesse espírito que somos convidados a viver a Páscoa do Senhor como fator de unidade entre todas as Igrejas e entre todo o gênero humano. Pentecostes, assumido pela tradição cristã como plenitude da Páscoa de Jesus, é a força capaz de nos fazer compreender e viver em profundidade o projeto universal de vida para todos. Faz-nos enxergar no diferente, e até no estranho, a força da vida divina. A vida nova em Cristo tem força “simbólica”, unificadora: supõe abandonar tudo o que divide, afasta e cria abismos na convivência humana e ecológica, para abraçar outra norma de vida: o amor que reúne, aproxima e refaz a convivência na humanidade. É o Espírito, força de vida e de unidade, o único capaz de nos conectar com todo o universo e com a fonte da vida.
III.  PISTAS PARA REFLEXÃO
1. Demonstrar que o Espírito Santo é o coração palpitante que animou a vida das primeiras comunidades cristãs no anúncio do evangelho e na fé em Jesus ressuscitado. Somos herdeiros dessa fé intrépida que rompeu barreiras e ganhou o mundo.
2. Demonstrar que a grande mensagem de Pentecostes é a evangelização e não o falar línguas. A vivacidade de nossas comunidades é um exemplo de um novo Pentecostes acontecendo.
3. O Espírito de Deus em Pentecostes enche todo o universo e mantém unidas todas as coisas; gera novas relações na comunidade e no mundo; realiza a plenitude da Aliança do Sinai: o amor sem fronteiras.


Frei Jacir de Freitas Faria, OFM é Padre franciscano, escritor, mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico, de Roma, especialista em evangelhos apócrifos, professor de exegese bíblica no Instituto Santo Tomás de Aquino – ISTA, em Belo Horizonte e em cursos de Teologia para leigos. Autor de uma centena de artigos. Autor e coautor de quinze livros, sendo o último: Infância apócrifa do menino Jesus. Histórias de ternura e travessura. Petrópolis: Vozes, 2010. Diretor Geral e Pedagógico dos Colégios Santo Antônio e Frei Orlando, ambos em Belo Horizonte.
Veja mais: www.bibliaeapocrifos.com.br

25 de maio de 2012

PENTECOSTES: Como minha avó a soprar brasas -

 Edmilson Schinelo

O que o grupo seguidor de Jesus estava celebrando?
Pentecostes, em Israel, era a festa que marcava o final da colheita dos cereais. Era uma festa agrária, na qual se louvava a Deus pelos primeiros frutos da terra em cada ano. O povo judeu a chamava e ainda a chama de Shavuot, Festa das Semanas, por ser celebrada no primeiro dia, depois de transcorridas sete semanas desde a Páscoa. Por isso o nome grego Pentecostes - qüinquagésimo dia (Dt 16,9-10). Mais tarde, as comunidades judaicas associaram a festa agrária com uma data também histórica, recordando, nesse dia, a entrega das tábuas do Decálogo no Monte Sinai (Ex 19-20).
Como o texto de At 2 foi escrito pelo menos 50 anos depois, já houve tempo para que as comunidades e o redator final elaborassem uma narrativa muito mais cheia de sentido simbólico, que nos ajuda ainda hoje em nossa leitura e em nossa caminhada de fé. Anunciando a chegada do Espírito Santo na festa da antiga lei, estão a nos dizer que a nova aliança é agora selada com o próprio sopro divino.

Sobre quem pousa o Espírito Santo?
Há várias maneiras de se ler o texto de At 2. Bastante comum entre nós é um tipo de leitura que quase dispensa o próprio texto bíblico. Trata-se da leitura feita a partir dos quadros artísticos, nos quais vemos línguas de fogo pousando sobre o grupo dos Doze, quase sempre tendo Maria ao centro, fechados em uma sala bastante luxuosa. Por mais que respeitemos essa leitura, é importante que digamos que a mesma não corresponde à narrativa bíblica: "tendo-se completado o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar (At 2,1).
"Todos quem?", devemos nos perguntar. Pouco antes, podemos ler que "o número das pessoas reunidas era de mais ou menos cento e vinte" (At 1,15). Tendo em vista que não houve nenhuma indicação de mudança de grupo, é evidente que o "todos" do texto imediatamente seguinte refere-se a esse grupo de cento e vinte pessoas. Ou seja, o Espírito Santo é derramado sobre todas as pessoas da Igreja nascente (o número é rico em simbologia) e não apenas sobre algumas de suas lideranças. Não é por acaso que o relato evoca as palavras do profeta Joel: "Derramarei o meu espírito sobre todas as pessoas (literalmente: sobre toda carne), vossos filhos e vossas filhas profetizarão" (Jl 3,1; At 2,17). Esta lembrança é de importância fundamental, pois significa a reafirmação de um princípio óbvio de nossa fé: ninguém pode se apossar do Espírito Santo.
Um espírito que se manifesta na casa e não no templo!
Outro aspecto a ser observado tem a ver com o local da manifestação do Espírito divino. O texto inicia dizendo que "estavam todos reunidos no mesmo lugar". Que lugar seria esse? O texto grego fala de "mesmo lugar". Traduções mais antigas gostavam de usar a palavra "cenáculo", que literalmente significa "o lugar onde a gente janta", faz a ceia - a cena. Traduziam assim provavelmente por dedução a partir do último lugar especificamente citado: a "sala superior" para onde o grupo havia voltado e onde costumava ficar (At 1,13). Logo em seguida, entretanto, fala-se da reunião dos "quase cento e vinte irmãos", na qual se procede à escolha de Matias no lugar de Judas Iscariotes (At 1,15-26). E do ruído, que, como o agitar do vento, enche toda a casa onde se encontravam (At 2,2).
Muita gente quis interpretar que se tratava de um lugar muito grande para reunir tanta gente. O mais importante, porém, não é discutir o tamanho do lugar, visto que a cultura judaica chama de casa o espaço do clã (como em culturas africanas e indígenas, a casa verdadeira é a sombra das árvores, o quintal, onde a vida acontece). O que precisamos considerar é que, por mais que o Livro dos Atos valorize o templo (cf. At 2,46), é no espaço da casa que o Espírito se manifesta. A casa é o espaço aberto, enquanto o templo se fechava às mulheres, aos estrangeiros, aos "impuros". A casa é o lugar da acolhida e, ao mesmo tempo, da partilha: o lugar da ceia comum (Lc 24,13-35). Assim como o pão se reparte, também o Espírito se reparte a todas as pessoas da casa. E se no templo, apenas os homens querem ter poder, na casa, é comum que este poder se exerça de forma também mais partilhada. Como podemos ler, ali "todos eles se reuniam sempre em oração, com as mulheres, entre as quais Maria, a mãe de Jesus, e os irmãos dele" (At 1,14).
Como minha avó a soprar as brasas
Muitas imagens são evocadas no texto, a maioria delas buscada no Primeiro Testamento. Além da casa e do número 12 X 10, é expressiva a imagem do vento, das línguas e do fogo.
O vento lembra o sopro de Deus que abriu o Mar (Ex 14,21). As línguas lembram Babel (Gn 11,1-9), onde Deus também prefere a diversidade das línguas. Também agora, cada pessoa ouve as maravilhas de Deus na sua própria língua (At 2,11). O fogo lembra a sarça ardente (Ex 3,1-10), lembra a coluna de nuvem (Ex 13,21). E toda a cena lembra especialmente a conclusão da Aliança no Sinai (Ex 19,16-19).
Mas o vento e o fogo também lembram minha avó, enchendo suas simpáticas bochechas para acender fogo na fornalha ou no fogão de lenha, tarefa que exigia cuidado e, ao mesmo, tempo expressa exercício de poder. Essa é a imagem que faço de Pentecostes: a divindade, com suas grandes bochechas, a soprar em nossas brasas, quando querem se apagar. Às vezes, uma brisa leve (a Ruah divina) é suficiente para que nossas brasas se acendam. Outras vezes, faz-se necessário um sopro bem mais forte, ventania até, para que sejamos sacudidas e sacudidos em nossa inércia!
Que neste Pentecostes, possam as bochechas divinas nos despertar de nossa acomodação, especialmente aquela que nos deixa inertes em nossos templos, em nossos cultos e nossas missas! Que possamos louvar o Espírito lá onde ele se manifestou primeiro, no cotidiano das pessoas, em suas próprias casas. Mas especialmente na vida das pessoas empobrecidas cujo espaço muitas vezes nem mesmo podemos chamar de casas. Pois é para isso que o mesmo Espírito de Pentecostes nos conclama: "O Espírito do Senhor está sobre mim, ele me ungiu para levar uma notícia alegre aos pobres" (Is 61,1; Lc 4,18).

Edmilson Schinelo (schinelo@terra.com.br)

22 de maio de 2012

Cristovam Buarque - A POBREZA DA RIQUEZA

Cristovam Buarque

Em raros países os ricos dispõem de tanta ostentação quanto no Brasil. Apesar disso,
os ricos brasileiros são pobres.
São pobres porque compram sofisticados automóveis importados, com todos os
exagerados equipamentos da modernidade, mas ficam horas engarrafados ao lado
dos ônibus de subúrbio. E às vezes são assaltados, seqüestrados e mortos nos sinais
de trânsito.
Presenteiam belos carros a seus filhos, mas não dormem tranqüilos enquanto eles não
chegam em casa. Pagam fortunas para construir modernas mansões, desenhadas por
arquitetos de renome, e são obrigados a escondê-las atrás de muralhas, como se
vivessem nos tempos dos castelos medievais.
Os ricos brasileiros usufruem privadamente de tudo que a riqueza lhes oferece, mas
vivem encalacrados na pobreza social.
Nas sextas-feiras, saem de noite para jantar em restaurantes tão caros que os ricos da
Europa não poderiam freqüentar, mas perdem o apetite diante da pobreza que por
perto arregala os olhos pedindo um pouco de pão; ou são obrigados a comer em
restaurantes fechados, cercados e protegidos por policiais privados. Quando terminam
de jantar escondidos, são obrigados a tomar o carro na porta, trazido por um
manobrista, sem o prazer de caminhar pela rua, ir a um cinema ou teatro e seguir até
o bar preferido para conversar sobre o que viram.
Não é raro que o rico seja assaltado antes de terminar a refeição, ou no caminho de
casa.
Quando isto não acontece, a viagem é um susto até quando se abriu o portão
automático, como as antigas pontes levadiças dos castelos medievais. E, às vezes, o
susto continua dentro de casa. Os ricos brasileiros são pobres de tanto medo. Por
mais riquezas que acumulem no presente, são pobres  na falta de segurança para
usufruir seu patrimônio e no susto permanente diante das incertezas em que os filhos
crescerão.
O rico brasileiro fica menos rico de tanto gastar dinheiro apenas para corrigir os
desacertos criados pela desigualdade que suas riquezas provocam em termos de
insegurança e ineficiência. No lugar de usufruir todo o seu dinheiro, é obrigado a
gastar uma parte dele para proteger-se de perdas que sua riqueza provoca. Por causa
da pobreza ao redor, os ricos brasileiros vivem um paradoxo: para ficarem mais ricos
têm que ficar mais pobres, gastando cada vez mais dinheiro apenas para se proteger
da realidade hostil e ineficiente.
Quando viajam ao exterior, se tiverem um mínimo de informação, os ricos sabem que
no hotel onde se hospedarão serão vistos como destruidores de florestas na
Amazônia, usurpadores da maior concentração de renda no planeta, assassinos de
crianças na Candelária, portadores de malária, dengue, verminose. São ricos
empobrecidos pela vergonha que sentem ao serem vistos pelos olhos estrangeiros.
Porém, a maior pobreza dos ricos brasileiros encontra-se em sua incapacidade de
enxergar a riqueza que há nos pobres.
Foi esta pobreza de visão que impediu os ricos brasileiros de perceberem, há cem
anos, a riqueza que havia nos braços dos escravos libertos se lhes fosse dado o
direito de trabalhar a imensa e ociosa terra de que o país dispunha. Se tivessem
percebido esta riqueza e libertado a terra junto com os escravos, os ricos brasileiros
teriam abolido a pobreza que os acompanha ao redor  da riqueza. Se os latifúndios
tivessem sido colocados à disposição dos braços dos 34 ex-escravos, a riqueza criada
teria chegado aos ricos de hoje, que viveriam em cidades sem o peso da imigração
descontrolada, com uma população sem miséria.
A pobreza de visão dos ricos impediu-os de ver a riqueza que há na cabeça de um
povo educado. Ao longo de toda a nossa história, os nossos ricos abandonaram a educação do povo, desviaram os recursos para criar  a riqueza só deles e ficaram
pobres: contratam trabalhadores com baixa produtividade, investem em modernos
equipamentos e não encontram quem os saiba manejar, vivem rodeados de
compatriotas que não sabem ler o mundo ao redor. Muito mais ricos seriam os ricos se
vivessem em uma sociedade onde todos fossem educados.
Achando que ao comprar água mineral se protegiam das doenças dos pobres, os ricos
construíram viadutos para seus carros com o dinheiro que teria permitido colocar água
e esgoto nas casas do povo. Montam modernos hospitais, mas têm dificuldades para
evitar infecções decorrentes da falta de esgotos nas cidades. Com a pobreza de achar
que poderiam ficar ricos sozinhos, construíram um país doente e vivem no meio da
doença.
Há um grave quadro de pobreza entre os ricos brasileiros. E esta pobreza é tão grave
que a maior parte deles não percebe. Por isso, a pobreza de espírito tem sido o maior
inspirador das decisões governamentais das pobres elites ricas brasileiras.
Se percebessem a riqueza potencial que há nos braços e nos cérebros dos pobres, os
ricos brasileiros poderiam reorientar o modelo de desenvolvimento em direção aos
nteresses de nossas massas. Esta seria uma decisão que enriqueceria o Brasil nteiro,
pois os pobres sairiam da pobreza e os ricos sairiam da vergonha, da insegurança, da
ineficiência e da insensatez.
Mas talvez isto seja querer demais. Os ricos são tão pobres que não percebem a triste
pobreza em que usufruem suas malditas riquezas.
Disponível em: http://www.portalbrasil.net/reportagem_cristovambuarque.htm
Texto do livro “Os Instrangeiros”, de Cristovam Buarque, editora Garamond.