O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

5 de abril de 2011

Os pobres e a libertação. Artigo inédito de José Comblin

José Comblin
"Os pobres são a verdadeira Igreja, o verdadeiro povo de Deus ainda que a sua presença no sistema religioso possa ser muito fraca. Encontram-se nos grandes santuários de romarias populares. Não se encontram nas igrejas paroquiais e muitas vezes nem sequer nas capelas. Mas Jesus sabe reconhecê-los e os integra no seu corpo como o verdadeiro povo de Deus. Jesus luta pela sua libertação no meio deles". A afirmação é do Pe. José Comblin em artigo inédito para o livro Fome de Justiça, perspecivas de superação da pobreza que será lançado na Suiça no dia 20 de maio próximo. O artigo nos foi enviado por Marianne Spiller, suiça, há muitos anos radicada no Brasil e coordenadora da Associação Brasileira de Amparo à Infância –Abai, com sede em Mandirituba-PR.
Marianne conheceu José Comblin, quando foi se solidarizar com D. Luiz Cappio, bispo de Barra - BA, em greve de fome contra a transposição do Rio São Francisco.
Eis o artigo.
A história da humanidade é a história de um conflito permanente, uma verdadeira guerra entre alguns que conseguem acumular mais poder dominando os demais e as vítimas dominadas. Os vencedores obrigam os vencidos a trabalhar a serviço deles quando precisam deles ou os abandonam sem recursos quando não precisam mais deles. Os vencedores apropriam-se todos os recursos que estão na terra ou nos mares. Os outros vivem daquilo que os poderosos querem deixar-lhes Esta foi a visão marxista da história. Mas não era original porque já é a visão da Bíblia.A Bíblia fala dos pobres e dos ricos. Os pobres são os vencidos da guerra e os ricos são os vencedores. A história da América é uma figura exemplar dessa condição da humanidade.
Vida e morte
A síntese da história encontra-se no capítulo 8 do evangelho segundo João. Jesus denuncia que os seus interlocutores que são as elites de Israel querem matá-lo porque são filhos do diabo que quer matar. Fazem a vontade do seu pai. De fato eles o mataram. Na cruz Jesus está aí como representante de toda essa parte da humanidade que é oprimida porque vencida. Jesus quer a vida. Ele vai ressuscitar e, depois de ressuscitado, leva os vencidos para a vida
Pois Jesus também foi vencido e a sua derrota envolve todas as derrotas dos vencidos. Mas a sua ressurreição envolve a ressurreição de todos os que foram mortos como ele. Viveram na terra, mas foi uma vida aparente, porque foi uma sobrevida, uma tentativa permanente para não morrer. Milhões foram mortos cruelmente pelas armas ou pela arrogância dos vencedores. Eis a história da América que ainda continua.
A mensagem de vida
A mensagem de Jesus é o anuncio da vitoria dos vencidos, a vitória da vida que vence a morte. Nos evangelhos Jesus usa a expressão de “reino de Deus”. O reino de Deus é, de acordo com o linguajar dos profetas, um reino de justiça e de paz. É o contrário dos reinos que houve e que há e haverá na história humana. No tempo de Jesus o reino era o Império romano, um Império tremendamente cruel que concentrava todas as riquezas do Império na fortuna de alguns milhares de bilionários. Estes residiam em Roma e na região, e oprimiam 50 milhões de vencidos por um sistema de impostos que os deixava sem força.
Jesus anuncia a ruína desse Império e de todos os Impérios. Cada um tem o seu tempo, mas eles acabam derrotados. Virá o reino de Deus. Este não virá pela conquista com as armas, ou o dinheiro. Virá pelos pobres porque a força de Deus estará com eles. Jesus não explica como será. Mas a história dos seus discípulos vai mostrar pouco a pouco como entra esse reino de Deus neste mundo. Em lugar do poder reinará a comunidade. Todos agirão juntos e introduzirão o reino de Deus neste mundo. Que essa história será trágica, lenta, que exigirá tantos sacrifícios, vinte séculos o ensinam. Mas este reino de Deus já tem as suas manifestações nesta terra. Sucede cada vez que os pobres conseguem direitos pela força da sua união que desafia os dominadores.
O evangelho entrou no Império romano. Ali as traduções grega e latina da palavra aramaica que significa reino, são palavras tão odiadas que os apóstolos nem sequer se atrevem a usá-la o a aplicá-la a Deus. É impossível que Deus reine porque reinar é dominar, destruir, escravizar. Paulo como João falam da vida que veio vencer a morte. Jesus veio trazer a vida. Deus é vida. Jesus trouxe a vida. O Espírito nos dá a vida prometida por Jesus.
A vida virá pelos que não têm poder, nada podem impor, não têm armas, não têm força política. Vão conseguir vencer o poder das armas, do dinheiro, da política. Quem tem poder, somente pensa em defender ou aumentar esse poder. Quem tem dinheiro, somente pensa em conservar ou aumentar o seu dinheiro. Quem tem armas, somente pensa em fazer mais armas. Não se preocupam pelo que acontece com os vencidos. No entanto, temem os pobres, enxergam-nos como entes perigosos. Inventam forças de controle para impedir que os pobres deixem de se submeter. Apesar disso Jesus promete a vida aos pobres.
A liberdade prometida aos pobres
Os pobres de quem Jesus falava eram os camponeses sem terra que deviam trabalhar a serviço de grandes proprietários nas terras deles . Eram pescadores que muitas vezes deviam trabalhar em barcos de outros que eram os donos desses barcos. Deviam pagar-lhes uma taxa insuportável. Todos deviam pagar os impostos de Roma e os impostos do templo. A sua vida era uma vida dedicada a outros que dominavam os meios de produção. Não havia alternativa.
Para eles o reino de Deus era libertar-se daqueles que lhes roubavam o trabalho e a vida. Era poder fazer a sua vida, eles próprios. Era poder trabalhar para si mesmos e para os seus filhos. Alguns entenderam que Jesus lhes daria essa libertação por um grande ato de violência destruindo toda a classe dos dominadores. Esperaram que Jesus fizesse o que muitos em Israel achavam que seria a obra do Messias. Não aconteceu assim. Houve discípulos desanimados com a morte de Jesus porque não tinha sido o Messias esperado por eles.
O caminho de Jesus
O próprio Jesus entendia que a sua missão terrestre era o início e o sinal do libertação dos pobres e de todos os oprimidos, de todas as vítimas do reino da violência. Erra preciso entender isso, entender o sentido dessa vida de Jesus. Entender isso demorou. Muitos se deixaram iludir porque achavam que a libertação se faria na segunda vinda de Jesus, essa vinda que ele mesmo tinha prometido. Muitos esperavam que essa segunda vinda ocorresse em breve. O próprio S. Paulo pensava que muitos dos seus contemporâneos e talvez ele próprio não conheceriam a morte, porque Jesus viria antes. Mas ele não veio como se esperava. Então foi preciso procurar entender de outra maneira o que ele realmente tinha dito, o que realmente tinha ensinado e que não tinham percebido.
Jesus tinha prometido que voltaria depois da sua ressurreição e depois da sua ascensão. Voltaria para viver com os seus discípulos, para acompanhá-los. Mas era preciso descobrir de que maneira ele estava presente, e o que pretendia fazer. Até hoje muitos cristãos ainda não sabem isso. Ainda não entenderam. Acham que devemos entender a história no sentido de que Jesus prometeu essa libertação dos pobres para depois do fim deste mundo e do juízo final. Os pobres teriam primeiro que salvar a sua alma para poder entrar no reino de justiça e de paz. Mas com essas condições os pobres não teriam nenhum privilégio porque salvar a alma era uma operação factível por todos graças aos meios que a religião colocava a sua disposição. A libertação não se realizaria neste mundo, mas no outro. Muitos pensaram assim e ainda hoje muitos pensam assim e se dizem cristãos .
A maneira de Jesus
Jesus chama e reúne discípulos e os prepara para refazer no mundo inteiro aquilo que ele mesmo faz. Desperta para a espera do reino de Deus e pede uma conversão, uma mudança. Qual é essa conversão ? Mudar de vida, dedicar-se a anunciar o reino de Deus a todos. Fundar uma vida social de irmãos na qual ninguém domina nem explora outros. Nessa vida ninguém quer ser o primeiro, mas todos querem ser servidores dos outros. Os discípulos vão começar essa vida entre eles e convidar os outros a fazer a mesma coisa. É algo muito simples e muito difícil de ser aceito. Como acreditar que esse método possa ser eficaz ? No entanto, a história mostra que tem eficácia, sempre parcial, precária, provisória, que é preciso sempre recomeçar, mas que alguma coisa acontece. Jesus não prometeu a realização completa da libertação, mas ensina a buscá-la neste terra, neste vida, acreditando nela. Isso é ter fé. Ter fé é acreditar que fomos chamados para construir o reino de Deus no mundo tal como é, sem violência, sem dominação e que o método de Jesus vale.
Somente os pobres podem acreditar, porque é impossível um rico acreditar nisso. Os ricos acreditam no poder e acham que o caminho é querer sempre mais poder. Dessa maneira aumentam sem cessar a dominação e a opressão . Para eles esse evangelho de Jesus é pura loucura como já dizia Paulo. Mas para os que confiam em Jesus , é a verdadeira sabedoria.
Como se percorre o caminho de Jesus
Jesus não liberta sem a colaboração dos próprios pobres. A libertação não é um dom que desce do céu e se recebe já acabado. A experiência ensinou-nos que de fato nenhum dom desce acabado do céu. Jesus realiza a libertação pela vida e pela atividade dos próprios pobres. Jesus está neles animando-os para construir esse reino de liberdade.
Os pobres animados por Jesus não usam, nem procuram as armas dos dominadores, nem as armas, nem o poder político, nem o dinheiro Não usam os meios pelos quais os donos da terra dominam os pobres e fazem deles os seus escravos. Se buscassem esses mesmos meios, cairiam nos mesmos defeitos. Construiriam outra forma de sociedade de dominação mas não trariam a liberdade porque esses meios não criam a liberdade
A formação da comunidade
Os pobres formam comunidades de vida. São diversas as formas que essas podem assumir. Pois dependem das condições históricas. No inicio são comunidades minúsculas como aqueles que aparecem no Novo Testamento. Mas elas podem crescer e vão crescendo na história. Não são essencialmente comunidades de culto ou de religião, embora culto e religião possam ser formas de educação ou de preparação para a vida comunitária. Nem sempre culto e religião fazem isso, nem de longe. Muitas vezes culto e religião têm o seu fim em si mesmos, pois respondem a necessidades psicológicas e sociais das pessoas. As comunidades que Jesus cria, são comunidades de vida total, de trabalho, de educação, de habitação, de relacionamento sempre na vida concreta de todos os dias e nunca fora num mundo puramente simbólico.
Podem ser comunidades rurais em que todos tem o seu pedaço de chão e trabalham em conjunto, produzem em conjunto, comercializam em conjunto e crescem em conjunto. Podem ser indústrias dirigidas pelos próprios trabalhadores em forma de cooperativa ou outra. Aliás, pode haver cooperativas em muitas atividades humanas.
Porque essa formação de comunidade é tão lenta? Com certeza porque o sistema estabelecido se defende e usa todos os meios para destruir tudo o que é comunitário. Mas também precisamos reconhecer que muitas vezes os próprios pobres não têm a fé suficiente, não têm a coragem, a audácia, a confiança nos outros que são necessárias para buscar formas de vida comunitária. Nada se faz sem uma fé radical.

As comunidades na história
Historicamente houve e há semelhantes comunidades, de dimensão mais ou menos importante. Há regimes de comunidade parcial: por exemplo quando todo um povo assume a solidariedade nos casos de doença, desemprego, velhice. Há comunidade quando o povo inteiro assume a educação de todos e a mesma educação para todos. É o que recebeu na época contemporânea o nome de Estado de bem-estar social, ou de democracia social. São expressões comunitárias importantes. Ainda são muito incompletas porque a maior parte dos meios de produção pertencem a minorias privilegiadas, e é o que permite uma grande desigualdade. Na América latina, no Brasil de modo particular, a desigualdade social é imensa e as classes sociais praticamente não comunicam, vivem em mundo fisicamente separados. Não se encontram na vida a não ser de modo puramente formal e funcional nas fábricas ou nas unidades de produção, de maneira totalmente desigual. Com essa situação os encontros são manifestações da desigualdade.
Porque os pobres suportam ainda tanta dominação ? Porque se sentem tão fracos frente aos seus dominadores que perdem coragem. Por medo, por falta de audácia, por falta de confiança em si próprios. Falta uma evangelização forte capaz de suscitar a verdadeira fé. Há toda uma cultura dominante que lhes ensina que são incapazes, impotentes, condenados a sua condição de dominados, porque não há outra sociedade possível. Quem recebe essa mensagem durante a vida toda, perde coragem; Não confiam uns nos outros e por isso são lentos para unir-se e buscar juntos essa nova convivência humana que pode substituir as estruturas de dominação existentes.
O anúncio da libertação
Jesus anunciou a libertação . Iniciou o movimento comunitário reunindo os seus discípulos que se acharam juntos no dia de Pentecostes para receber o Espírito Santo enviado por ele. Lançou o movimento. A missão dos apóstolos, dos missionários é anunciar de modo ativo, como Jesus, mostrando o modo de proceder para construir o reino de Deus. A Igreja constitui esse povo de missionários. A Igreja existe para iniciar esse movimento de comunidade humana em todos os níveis. Para dizer melhor, a Igreja existe nesse movimento. Fora desse movimento ela não existe como Igreja de Jesus Cristo, mas somente de nome.
Historicamente a Igreja falhou e continua falhando. Os cristãos pertencem a este mundo e trazem todo um passado pagão . Custa acreditar no evangelho, mas muitos nem sequer o receberam, ainda que fossem batizados e recebessem os sacramentos. No início, Jesus não tinha criado uma religião, não tinha organizado nenhum culto, nem definido uma doutrina, nem um regime de governo, já que queria que todos fossem iguais. Mas muito cedo os discípulos que traziam em si toda a religião da sua vida anterior, sentiram uma necessidade de fazer uma religião a partir do culto a Jesus ressuscitado. Não tinham conhecido a vida real de Jesus e aplicaram a Jesus o que tinham aprendido seja no judaísmo seja nas religiões ditas pagãs.
A religião e os pobres
Criou-se uma religião muito desenvolvida e cada vez mais formalizada. A religião vive num mundo simbólico, consiste em formas e não em realidades materiais. Acontece que a Igreja chega a se fechar no seu mundo simbólico para viver nesse mundo simbólico que para ela é salvação. O Deus da religião pede a paz e a tranqüilidade, mas se esquece de que os missionários são perseguidos. Se a Igreja vive em paz, é sinal de que não anuncia, não tem por objetivo o reino de Deus mas apenas a segurança dos seus fiéis. No concreto das paróquias e das comunidades religiosas as atividades dominantes de longe são atividades simbólicas, de culto, de profissões de fé, de construção de um aparelho material para realizar melhor as suas atividades simbólicas. Essas atividades têm por finalidade a salvação das almas mas não se preocupam pelo que sucede neste mundo.
Uma Igreja dedicada ao culto e ao mundo simbólico não dá atenção particular aos pobres a não ser para lhes dar esmolas, mas não faz nem idéia sequer da sua libertação . Ela não tem interesse em ser a Igreja dos pobres porque os pobres não trazem muito poder. Ela procura ter boas relações com o poder político, o poder econômico e o poder cultural. Ainda hoje traz as marcas do 15 séculos de cristandade quando a religião dos povos era a religião dos reis. Todos deviam praticar a religião do rei. E a Igreja dependia do rei. Essa colaboração entre o poder religioso e os poderes civis ainda está na mentalidade e nos projetos conscientes ou inconscientes de muitos cristãos sobretudo do clero. O discurso é evangélico, mas a prática é o serviço a esse edifício religioso que construiu a Igreja como instituição .
As minorias abraamicas de dom Helder
Minorias salvam a honra da Igreja. Houve homens e mulheres heróicos que conseguiram despertar os cristãos e levá-los a promover reformas sociais. Nem sempre pertenceram à Igreja de modo explícito. A Instituição Igreja não lutou pela emancipação dos escravos porque estava atada pelos laços com o Império e não queria emancipar-se. Não sentia que a união estreita entre o Império ou, antes dele, com o reino de Portugal era o maior obstáculo para a vida cristã. Essa estrutura de cristandade favorecia a religião , mas desviava da missão da Igreja que era anunciar o reino de Deus e lutar pela libertação dos oprimidos e entre eles estavam os índios e os escravos africanos.
Há minorias que lutam pela reforma agrária e o próprio episcopado toma posição com muita força nas suas declarações . Mas as elites sociais e as classes médias que se dizem católicas e as vezes praticam e recebem os sacramentos regularmente, não querem saber de reforma agrária. Há cristãos que lutam também pela libertação das favelas e de todas as habitações insalubres, mas a massa dos católicos não se move e continua elegendo governantes que não ser dedicam a essas tarefas primordiais.
Podemos perguntar-nos se nas paróquias há realmente muito interesse em entrar nessas lutas. Não se nota muito. Então a nível teórico a Igreja quer reforma agrária, reforma urbana, salário justo, mas na prática nas paróquias e nas instituições da Igreja, esses assuntos não têm importância. Na prática a Igreja se confunde com as atividades religiosas e não está a serviço da humanidade, não busca a sua libertação. Como fazer para conseguir a libertação da instituição tão apegada à estrutura social estabelecida e às classes sociais dominantes ? Eis o drama.
Quem é pobre?
Os ricos sempre procuraram desviar o sentido do evangelho. Inventaram o conceito de pobreza espiritual. Pobres seriam os que não estão apegados à riqueza, os que não se sentem ricos, os que têm sentimentos de compaixão pelos pobres. Interpretam o versículo de Mateus sobre os pobres em espírito como se o espírito fosse o imaterial,o mental, o psicológico. Mas o espírito é vento, força, tempestade como no dia de Pentecostes. Os pobres no espírito são os que são animados pelo Espírito. Não são os pobres sentimentalmente.
Os verdadeiros pobres sabem que são pobres. Não se perguntam quem é pobre. Sabem que são pobres. Os ricos buscam subterfúgios para definir em forma complicada a pobreza de tal maneira que não se sintam denunciados como os ricos do evangelho. Se alguém duvida se é pobre ou rico, com certeza é rico porque um pobre não duvida, mas sabe muito bem o que é pobreza. Os pobres são a verdadeira Igreja, o verdadeiro povo de Deus ainda que a sua presença no sistema religioso possa ser muito fraca. Encontram-se nos grandes santuários de romarias populares. Não se encontram nas igrejas paroquiais e muitas vezes nem sequer nas capelas. Mas Jesus sabe reconhecê-los e os integra no seu corpo como o verdadeiro povo de Deus. Jesus luta pela sua libertação no meio deles.

3 de abril de 2011

Romero. Uma beatificação incômoda

No dia 24 de março de 1980, um grupo de pistoleiros crivou de balas o então Arcebispo de São Salvador Oscar Arnulfo Romero e Galdámez. Um assassinato político em meio a uma sangrenta guerra civil. Os discursos do prelado foram por demais incômodos para o governo e para os esquadrões da morte. Passados 31 anos de sua morte, a sua figura continua incomodando e o seu processo de beatificação não avança.
A análise é de Andrés Beltramo Alvarez em seu blogSacro & Profano, 28-03-2011. A tradução é do Cepat.
Por seus inflamados discursos em favor dos pobres, a defesa dos direitos humanos e a sua proximidade com o povo, Monsenhor Romero é lembrado como um defensor dos menos favorecidos. Em uma América Latina onde a Teologia da Libertação tinha força, o seu assassinato foi lido pela chave ideológica (algo inevitável).
Em 1994, o seu sucessor na Arquidiocese de São Salvador Arturo Rivera e Damas, iniciou o processo de beatificação. Como era previsível, a interpretação ideológica veio a tona, sobretudo no Vaticano. Em 2000, a Congregação para a Doutrina da Fécomeçou o estudo de todos os discursos de Romero. Em 2005, o postulador da causa, o bispo italiano Vincenzo Paglia disse publicamente que Romero não era um bispo revolucionário, mas um homem da Igreja, do Evangelho e os pobres”.
Apesar disso, seis anos depois, nada se sabe sobre a beatificação. Fontes qualificadas nos confiaram que, neste momento, a Santa Sé não tem previsão sobre tema. Espera passar tempo suficiente para deixar para trás riscos de instrumentalização e permitir que venha a tona a figura de Romero, para além das ideologias.
Enquanto isso, o povo salvadorenho espera, assim como o movimento católico da Comunidade de São Egídio, um dos grupos eclesiais que mais apóia o "caminho para o altar" do arcebispo.

2 de abril de 2011

Matthew Fox - Um cristianismo sem Agostinho?


"A principal tese do teólogo norte-americano Matthew Fox é que a 'bênção original' no centro da mensagem do cristianismo foi ofuscada pela prevalência de uma teologia particular do pecado original, cujo principal autor é Santo Agostinho de Hipona."
A opinião é de Massimo Faggioli, doutor em história da religião e professor de história do cristianismo no departamento de teologia daUniversity of St. Thomas, em Minneapolis-St. Paul, nos EUA. O artigo foi publicado na revistaEuropa, 31-03-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O cristianismo, assim como o conhecemos, é fiel às suas origens, à mensagem deJesus? A pergunta, a mais arriscada para qualquer pessoa que se interesse pelo cristianismo, está no centro do livro de Matthew Fox, In principio era la gioia [No princípio era a alegria] (Ed. Fazi, 2011, 423 páginas), publicado originalmente nosEstados Unidos em 1983 com o título Original Blessing[Bênção original].
O livro, que levou o autor à expulsão dos dominicanos em 1993 (junto com um grande sucesso editorial), foi traduzido só agora ao italiano e abre uma nova coleção de textos teológicos, intitulada significativamente Campo dei Fiori, publicada pela Fazi Editores e organizada por Vito Mancuso e Elido Fazi.
Mancuso introduz o livro de Fox com um longo texto que apresenta não só o livro, mas também toda a coleção e o projeto editorial que prevê a publicação de textos de teologia, espiritualidade e história do cristianismo. O projeto se baseia em uma constatação dificilmente contestável: "A oposição sistemática entre liberdade e pertencimento à Igreja Católica foi se dilatando e gerou a muito difundida ideia de uma oposição sistemática entre liberdade e experiência espiritual" (p. xxx).
Se Mancuso pretende iniciar um diálogo com o catolicismo institucional, as premissas postas por esse livro da coleção são combativas: no prefácio,Mancuso sugere uma analogia entre o destino deMatthew Fox e o dos teólogos hereges e dissidentes condenados à morte pela Igreja romana, dentre os quais Arnaldo de BrésciaeGiordano Bruno. A sorte reservou a Fox uma saída da Igreja de Roma bem mais cômoda em comparação ao fogo no Campo de Fiori.
Mas In principio era la gioia se presta bem para essa interessante operação cultural e editorial da efitora Fazi, da qual logo veremos outros volumes (entre os quais a recente história dos Papas deJohn O’Malley e uma interpretação cristã do budismo dePaul Knitter). A principal tese de Fox, agora ex-católico que se define "padre pós-denominações", é que a "bênção original" no centro da mensagem do cristianismo foi ofuscada pela prevalência de uma teologia particular do pecado original, cujo principal autor é Santo Agostinho de Hipona.
Na opinião de Fox, o original otimismo da revelação judaico-cristã sobre a humanidade e sobre a criação foi removido pelo "esquema queda-redenção" centrado no pecado original: esse deslizamento fez do cristianismo uma religião não só pessimista, mas também patriarcal e violenta. A teologia de Fox tenta despedaçar o esquema "queda-redenção" para romper o fundamental dualismo alma-corpo, sagrado-profano, Deus-mundo – um dualismo herança da experiência maniqueia do jovem Agostinho.
Fox propõe uma viagem espiritual de quatro etapas: a via positiva (em contato com a energia criativa de Deus), a via negativa (redescobrir o sofrimento por meio da natureza), a via criativa (para nos tornarmos novamente criadores do mundo junto com Deus) e a via transformativa (para voltar ao momento inicial graças a uma inspiração de justiça pelo cosmos).
Hoje, quando um dos principais acusadores do livro (o então cardeal Ratzinger) tornou-se Papa de Roma, In principio era la gioia se apresenta como uma espécie de testemunha póstuma da tentativa de fundar, em uma síntese pós-agostiniana, as almas teológicas do catolicismo pós-conciliar: em outras palavras, a tentativa de elaborar uma teologia liberacionista em sentido amplo, que misture ecumenismo, teologia feminista, espiritualidade ecológica, misticismo e busca de um campo teológico inter-religioso bem além do "monoteísmo abraâmico", judaísmo-cristianismo-islã.
Nesse sentido, o livro de Fox se apresenta, mais do que como uma proposta original de espiritualidade alternativa ao catolicismo institucional, como um mapa das fontes e das direções possíveis em que a teologia católica foi estimulada (frequentemente com maior sucesso de Fox) depois do Concílio Vaticano II.
São evidentes as fraquezas teológicas da proposta de Fox. Um dos elementos prevalentes do livro é o de uma oferta de "teologia terapêutica", típica da paisagem religiosa norte-americana contemporânea, fenômeno do qual o catolicismo dos EUApermaneceu em grande parte (e por sorte) imune. Às vezes, parece que lemos em Foxessa proposta teológica para católicos suburbanizados, cultos e pós-confessionais, que havia feito o sucesso de Thomas Merton nos anos 50 e 60: com a diferença de queMerton escrevia como neocatólico, enquanto aqui Fox fala como ex-católico.
A segunda fraqueza tem a ver com a exigência de reduzir a taxa de agostinismo da teologia cristã e católica em particular: exigência compreensível, especialmente se considerarmos os legados mais problemáticos do bispo de Hipona (teologia da guerra justa, concepção da sexualidade). Mas entre eliminar a ênfase sobre a libertação do pecado original e eliminar do horizonte da teologia cristã a ideia de libertação tout courto limite é tênue: a ideia de "libertação" é uma das ideias teológicas mais poderosas da revelação judaico-cristã (do Êxodo em diante, chegando às teologias políticas).
Além disso, Fox parece ignorar a passagem de paradigma dos séculos XIX e XX da teologia como metafísica à teologia como "história da revelação" e, substancialmente, parece declarar decaídos os grandes mestres da teologia católica do século XX.
Por fim, Fox se baseia em fontes bíblicas (especialmente dos livros sapienciais) e em fontes místicas medievais, além de uma vasta série de fontes teológicas sui generis(poesia, literatura, psicologia), deixando substancialmente de lado a teologia patrística latina e grega dos primeiros séculos do cristianismo. Não está claro quanta teologia dos Padres da Igreja Fox pretende arquivar (além de Agostinho), se é verdade que oressourcement teológico foi uma das pedras-angulares da reconstrução da teologia católica no século XX, depois da estação árida da teologia neoescolástica. Declarar acabado o ressourcementequivale a declarar acabada a teologia doVaticano II: uma declaração que todos os catolicismos inimigos de Fox ficariam felizes em assinar embaixo.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=41981

1 de abril de 2011

Pedra maia é exibida para desmentir anúncio do fim do mundo em 2012

Peça foi mostrada na cidade de Tabasco, no México.Arqueólogo garante que não há escritos sobre o Apocalipse.

Maias fim do mundo 1 (Foto: René Alberto López / AFP Photo)
Pedra com calendário maia é exposta em Tabasco, no México (Foto: René Alberto López / AFP Photo)

A pedra do calendário maia que foi interpretada erroneamente como um anúncio do fim do mundo marcado para dezembro de 2012 foi apresentada na terça-feira (29) em Tabasco, sudeste do México.

A peça é formada de pedra calcária e esculpida com martelo e cinzel, e está incompleta. "No pouco que podemos apreciá-la, em nenhum de seus lados diz que em 2012 o mundo vai acabar", enfatizou José Luis Romero, subdiretor do Instituto Nacional de Antropologia e História.

Na pedra está escrita a data de 23 de dezembro de 2012, o que provocou rumores de que os maias teriam previsto o fim do mundo para este dia. Até uma produção hollywoodiana, "2012", foi lançada apresentando esse cenário apocalíptico.

"No pouco que se pode ler, os maias se referem à chegada de um senhor dos céus, coincidindo com o encerramento de um ciclo numérico", afirmou Romero. A data gravada em pedra se refere ao Bactum XIII, que significa o início de uma nova era, insistiu o pesquisador.

Comblin, o profeta da ironia afetuosa


"Como poucas pessoas, é o caso de Dom Helder Câmara, Comblin conseguiu ser cada dia mais aberto e crítico à medida que seus anos avançaram", testemunha Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e escritor.

Eis o testemunho.

Hoje saí da UTI de um hospital de Olinda, no qual me abriram o peito e me recauchutaram o coração fragilizado, com duas pontes de safena. No reencontro com a vida, ainda no leito de uma enfermaria, fico sabendo da partida do padre José Comblin, meu velho professor de Teologia e amigo de tantos anos e companheiro de lutas e esperanças.

A um teólogo de fama mundial e de projeção pastoral como foi o padre Comblin, não faltarão testemunhos de muitos irmãos e irmãs que com ele conviveram e trabalharam por tantos anos. Eu fui apenas um dos seus alunos em todo o curso de Teologia e nem pertenci ao grupo mais ligado a ele na Teologia da Enxada ou mesmo no instituto de vida missionária que ele animava. Entretanto, fui marcado por sua figura e sua doutrina e tenho algumas experiências próprias que podem ser úteis que agora sejam recordadas. Há pouco mais de uma semana, escrevi um pequeno artigo, defendendo a atualidade e a pertinência de sua profecia eclesial e popular. Ele me respondeu com uma breve mensagem de agradecimento e depois me mandou um texto maior explicando suas críticas ao estilo atual do poder na Igreja Católica.

Conheci o padre Comblin quando ele ainda era muito jovem, em 1964. Dom Hélder Câmara, então novo arcebispo de Olinda e Recife, trouxera uma equipe célebre de professores de Teologia. Entre eles estava o padre Comblin que, durante seus primeiros anos no Nordeste, ficou hospedado no mosteiro dos beneditinos. Naqueles anos, justamente, eu entrei no Mosteiro com a ânsia de renovação que motivava minha geração. Apesar de ser o tempo em que o Concílio Vaticano II propunha para a Igreja um novo Pentecostes, a maioria dos monges se apegava às velhas tradições. Apesar de ser muito discreto e viver outras preocupações pastorais, Comblin não deixava de ser irônico e quase sarcástico. E aquilo me atraía. No meu tempo de noviciado, li em francês “O Cristo no Apocalipse” onde se vê um Comblin exegeta e pouco conhecido. Li também, já em português “A Ressurreição”, um belo livro da Herder no qual ele, antes do Vaticano II, sustentava que o fato teológico mais marcante para o século XX tinha sido a revalorização teológica e espiritual do mistério pascal e da ressurreição de Jesus

Quando comecei a fazer Teologia no Seminário de Camaragibe, ele era o coordenador do curso. Na minha juventude, eu o achava contraditório. De um lado, ele ensinava uma teologia profunda, mas tradicional (não tradicionalista) e eu compreendia pouco isso. Esperava dele intuições inventivas e estas não apareciam, ao menos para mim. Sei que, neste tempo, ele produziu obras impressionantes como Théologie de la Paix, Théologie de la Ville e um estudo sobre Catolicismo Popular no Brasil. Mas, na época, não tive acesso a estas obras. Suas aulas eram dadas em um tom monocórdio, só interrompidas aqui e ali pelas risadas de alunos que festejavam as ironias do Comblin, aparentemente demolidoras, mas no fundo construtivas.

Mais tarde, em 1968, o Instituto de Teologia do Recife nomeia uma equipe de três professores e três alunos para elaborar uma proposta de nova temática e nova metodologia teológica. O coordenador da equipe era Comblin e eu fazia parte dos três alunos que tinham de discutir com ele as propostas dos alunos. Eu tinha a sensação de que ele mal nos escutava, mas me surpreendi quando, depois de muitos debates ácidos, ele assumiu nossas propostas e estas foram, em sua maioria, implementadas.

No mesmo ano, um escrito interno com o qual Comblin preparava a conferência episcopal de Medellin e propunha uma revolução social, extravasou para a imprensa. Ele que tinha ido a Europa foi proibido pela ditadura militar de voltar ao Brasil. Quando lhe perguntaram quem poderia, até o final do ano, coordenar o seu curso de Teologia dos Sacramentos, (estávamos em agosto), tive a surpresa e o orgulho de saber que ele escolhera o meu nome. Eu era apenas um dos alunos da classe do terceiro ano. A partir daí, sim, eu o assumi como um mestre de vida e procurava ler e estudar tudo que ele escrevia. A partir de então, descobri como ele inovava sua doutrina.

Seu livro em dois volumes “Teologia da Revolução” foi meu batismo nos caminhos do que depois chamaríamos teologia da libertação. Nos anos 70, ele estava fora do Brasil e tivemos poucos contatos. Nos anos 80, o reencontrei mais velho e o achei mais aberto e comunicativo, sempre muito atento aos amigos. Um homem fiel às amizades e às relações. Era um intelectual de erudição raríssima, capaz de dissertar sobre Teologia, Política, Bíblia, Economia e muitos outros assuntos com uma competência incrível, ao mesmo tempo que punha em prática sua visão de uma teologia popular e seu carinho por um instituto para formar padres, missionários/as e religiosos /as que viessem do campo e não precisassem sair do meio rural.

Algumas discussões com ele nortearam-me a vida. Por exemplo, a tentativa de libertar a Teologia cristã de sua base helenista (filosófica grega) ainda muito forte em nossa Igreja. Também, me impressionavam sempre a sua capacidade de criticar livremente a estrutura monárquica e absolutista do Vaticano. Mesmo um interesse imenso por uma vida religiosa mais popular e mais inserida, menos centrada nas estruturas das congregações.

Nos últimos anos em que vivi no mosteiro de Goiás, sempre passou a Páscoa conosco. No Brasil, temos a graça de contar com teólogos e teólogas dos mais abertos e criativos do mundo, mas a contribuição própria do padre Comblin tem sido sempre a de uma liberdade interior de dizer o que pensa e ser um profeta crítico e irônico sempre capaz de ler a história e as estruturas eclesiásticas a partir dos empobrecidos e das grandes causas da América Latina. Em 2006, com Dom Tomás Balduíno e com ele, fomos observadores internacionais das eleições presidenciais da Venezuela e, bem mais do que outros companheiros, eu o vi muito aberto ao bolivarianismo. Quem o conheceu de perto sabe que sua ironia era profunda, mas não era de ruptura e sim de afeição.

Como poucas pessoas, é o caso de Dom Helder Câmara, Comblin conseguiu ser cada dia mais aberto e crítico à medida que seus anos avançaram. Que sua herança teológica e profética seja por nós mantida e continuada.