O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

12 de março de 2011

Marcelo Barros: Eu me acuso II - sobre a profecia de Comblin

Marcelo Barros

Alguns órgãos de comunicação ligados à pastoral popular divulgaram uma recente conferência feita pelo padre José Comblin no Chile e uma entrevista-resumo que o padre Comblin deu logo depois. Diante deste material, Dom Redovino Rizzardi, bispo católico de Dourados, reagiu com um texto no qual afirma que o padre Comblin está ressentido. Segundo ele, isso se deveria ao seu envelhecimento e sua posição é pessimista e negativa. O seu texto tem um título pesado: José Comblin: crepúsculo de um profeta?

José Comblin é um teólogo famoso no mundo inteiro e um pastor dedicado ao melhor da inserção junto aos pobres. Viveu isso a sua vida inteira e continua vivendo-o hoje. Não precisa de defesa minha nem de ninguém. Provavelmente entre os católicos conscientes de hoje, se encontram muitos que estão a favor de tudo o que o padre Comblin disse e ainda de outras coisas mais. É claro que em um debate aberto e democrático, a reação de Dom Redovino é até bem-vinda, desde que ele se coloque na discussão e não comece desmerecendo quem pensa diferente dele. Lamento que ele não respondeu ao padre Comblin com argumentos. O quadro que o padre Comblin pinta da centralização hierárquica romana é ou não verdade? Neste contexto autoritário, existe ou não o controle do pensamento e da ação? E o que Comblin diz sobre os dois últimos papas é real ou não? Sem entrar propriamente no mérito das questões, Dom Redovino simplesmente cita o texto do profeta Elias no Horeb, (1 Reis 19), tirando-o do contexto histórico e pinçando dele apenas o elemento da brisa silenciosa. No texto bíblico, a brisa é sinal da presença e da nova revelacao divina. Nesta reação ao padre Comblin, se torna elemento ou fator de mudança (eclesial?).

Na primeira metade dos anos 80, em um diário nacional, um importante companheiro do CEBI foi acusado por um bispo brasileiro de fazer leitura redutiva da Bíblia e de outros "erros". Julguei ser minha obrigação vir a público e escrevi um artigo intitulado "Eu me acuso!". Neste texto, eu dizia que tudo aquilo do qual o irmão em questão era criticado, podiam também dizer de mim. Então, não seria justo deixá-lo sozinho na arena dos leões. Agora me sinto obrigado a escrever um "Eu me acuso número 2" para dizer que, embora eu tenha outro temperamento e outro estilo pessoal, a maioria das coisas que o padre Comblin disse, eu penso exatamente assim e assinaria embaixo. Não tenho 87 anos (tenho 66) e penso que quem me conhece sabe que não sou de natureza pessimista nem digo isso por amar menos a Igreja. Ao contrário, a amo como minha mãe. Mas, isso me obriga a ser ainda mais exigente e sincero em querer vê-la "sem rugas nem manchas".

Quando escuto críticas dizendo que o padre Comblin é pessimista ou que realça mais o negativo, me lembro do saudoso padre Alfredinho (Alfredo Kunz) que, nos anos 70, em Crateús, comparava os profetas bíblicos com os urubus que via nos telhados das casas de periferia. Ele dizia: "Normalmente, ninguém gosta de urubu e entretanto das aves é a mais útil no sertão do Nordeste a cuidar da higiene e da limpeza pública".

Já que foi citado o primeiro livro dos Reis, é bom lembrar que no capítulo 22 deste mesmo livro, os reis de Judá e de Israel querem consultar um profeta de Deus e o rei Josafá pergunta ao seu colega de Israel: Será que aqui não tem ao menos um profeta do Senhor? E o rei responde: "Só tem o profeta Miquéias, filho de Jemla, mas eu o detesto, porque ele so profetiza desgraças e só diz coisas negativas". O relato conta que o profeta é obrigado a dizer o que Deus lhe inspira e por isso é esmurrado, preso e mantido a pão e água. A maioria dos profetas bíblicos viveu isso e mereceu a mesma crítica feita ao meu mestre padre Comblin. Jeremias denuncia os profetas falsos como sendo aqueles que dizem "Está tudo bem! Estamos em paz!" quando de fato está tudo mal (Cf. Jr 14, 13- 15 e outros). Através do profeta, Deus pergunta: "Por acaso a minha Palavra não é como um fogo que queima, um martelo que fende até rocha?" (Jr 23, 29).

Eu e todos os que conhecemos o padre Comblin sabemos que ele se mantém sempre jovial e bem-humorado, assim como ativo na sua inserção junto aos mais pobres e na sua dedicação às Igrejas locais que o Concílio Vaticano II afirmou serem Igrejas no sentido pleno do termo. É o modo dele obedecer à proposta da conferência episcopal de Medellin que pedia: darmos à nossa Igreja o rosto de uma Igreja pobre e despojada de poder, missionária e pascal, comprometida com a libertação da humanidade toda e de cada ser humano em sua integralidade" (Med 5, 15). Deus o mantenha entre nós por muito tempo, lúcido como está, com a mesma coragem profética de nos dizer as coisas e sempre fiel ao que o Espírito diz hoje às Igrejas.

Ao publicar esse artigo de Marcelo Barros, o CEBI reafirma seu compromisso com o sonho e a profecia de José Comblin e testemunha sua lucidez e a sua fidelidade ao Evangelho. O CEBI também reafirma que acredita na possibilidade de uma Igeja fraterna, plural, sem discrinações ou abusos de poder.

A não-violência e o amor aos inimigos

José Comblin


(Reflexões com base em Mt 5,38-48 e Lc 6,27-37)

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O presente artigo é desenvolvido de forma mais ampla no livro Ser é poder. Organizada por Luiz Dietrich, a obra inclui as contribuições de Sebastião Gameleira (Somos poder), Edênio Valle (Dimensões psicológicas nas relações de poder) e Selvino Hech (A cidadania e a questão de poder). Pedidos paravendas@cebi.org.br


“Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam...”

A não violência e o amor ao inimigo são, com certeza, as maiores características dos discípulos de Jesus e, também, as mais discutidas. Foram, muitas vezes, entendidas de forma errada ou negadas, com força, não somente por não-cristãos, mas também por cristãos que querem tornar a mensagem de Jesus mais aceitável. Nietzsche considerava essa doutrina uma moral de escravos e a entendia como uma reação de rancor e ressentimento de derrotados que não querem enfrentar a situação. Seria a expressão da covardia. Claro está que ela pode ser invocada por pessoas que realmente são covardes e querem legitimar a covardia. No entanto, quando se tomam os textos no seu sentido original, não se trata de covardia. Cabe a cada um de nós e a cada comunidade examinar como essa doutrina se aplica nos conflitos da vida cotidiana.

O lugar social do amor ao inimigo e da renúncia à violência

No texto de Mateus (Mt 5,38-48), o contexto mostra que o texto convém no quadro das comunidades depois da guerra da Judéia (66-70). A derrota dos judeus foi completa. Estava tudo arrasado, as comunidades de Mateus, ligadas ao judaísmo, podiam sentir-se totalmente esmagadas. O que fazer, o que pensar ou sentir nessa oportunidade? O inimigo está triunfando, e desapareceu toda esperança de resistência. “Nessa situação de opressão, o texto de Mateus expressa a consciência da possibilidade de agüentar a situação com amor ao inimigo e renúncia à violência e, assim, estar em superioridade quanto aos adversários, os gentios. Olhar para eles torna-se compreensível no seguinte raciocínio: Há uma diferença entre olhar [para baixo] para aqueles aos quais, de qualquer modo, se é superior e entre o fato de a pessoa subjugada preservar a sua honra, sabendo-se interiormente superior ao vencedor. A idéia de um Deus que está acima do bem e do mal permite suspeitar que essa postura seja um ressentimento”.Como textos que constituem esse contexto de um povo subjugado, citamos Mt 5,41 que se refere às prestações de serviço obrigatório impostas pelos soldados como serviço ao estado; também Mt 5,39 com os quatro exemplos de reações não-violentas, o que se explica diante do desastre do ano 70; também a comparação entre Mt 5,44 e 5,9.Há duas particularidades no texto de Lucas (Lc 6,27-37).

A primeira é a representação de uma sociedade urbana em que as relações de reciprocidade são comuns e respondem a uma ética tradicional. É preciso tratar os outros sem ódio se queremos ser tratados sem ódio. Essa regra de ouro, a regra da reciprocidade, já era comum entre os filósofos gregos. Não é novidade cristã.A segunda particularidade é a grande insistência de Lucas no dinheiro. O princípio geral é : “Dá a todo o que te pede”. Perdoar é perdoar a dívida, não cobrar a dívida (Lc 6,37-38). Aqui o inimigo é o devedor. Amar o inimigo é perdoar a dívida.

Dessa maneira, tanto Mateus como Lucas aplicam as palavras de Jesus a casos particulares, dando-lhes sentidos bem específicos. Eles não inventaram as palavras de Jesus. Receberam-nas de uma tradição comum. Essa mesma tradição deriva de Jesus. Como saber o que havia na tradição comum e o que o próprio Jesus pensava?

A tradição primitiva dos textos e o pensamento de Jesus

O estudo dos textos insinua que a tradição comum dos ditos vem da Palestina antes da guerra. O grupo que mais freqüentemente se refere aos ditos seriam os missionários itinerantes. Eles são os que vão encontrar ladrões no caminho. As alusões ao sol e aos lírios provêm de pessoas que andam pelo campo. A falta de preocupação com comida e bebida também se refere a missionários itinerantes. O mesmo vale para a alusão às perseguições. Uma vez perseguidos, os missionários vão para outro povoado. Tudo se aplica muito bem às condições de vida dos missionários itinerantes.

Cabe-nos fazer a aplicação a nós mesmos, que, de modo geral, não somos missionários itinerantes (ainda que haja alguns).A condição de missionário itinerante combina bastante bem com a condição do próprio Jesus. O amor ao inimigo deriva de Jesus e também a negação da violência. Os missionários itinerantes aprenderam esses temas de Jesus, da sua conduta e dos seus ditos.

A não-violência não é pura novidade de Jesus. Ele mesmo pôde inspirar-se em fatos da história de Israel. Por exemplo, no ano de 26/27, quando Jesus estava prestes a começar o seu ministério, houve um incidente esclarecedor na Judéia. Pilatos, assumindo o governo na Judéia, quis levar imagens de César para dentro de Jerusalém. Para os judeus, eram ídolos. Foi um alvoroço em Jerusalém. Milhares de judeus foram ao palácio de Pilatos em Cesaréia. Lá, de joelhos, ficaram cinco dias e cinco noites sem mover-se do lugar. Pilatos acabou permitindo que entrassem no palácio. Ele mandou cercar os judeus com três fileiras de soldados. Mesmo assim, os judeus negaram-se a aceitar as imagens. Pilatos descontrolou-se e os ameaçou de morte. Ordenou que os soldados sacassem suas espadas. Os judeus deitaram-se lado a lado no chão, ofereceram seus pescoços e gritavam que preferiam morrer a transgredir as leis dos pais. Profundamente impressionado, Pilatos ordenou que as imagens fossem retiradas de Jerusalém. Jesus devia conhecer esse fato ocorrido poucos meses antes que ele mesmo começasse a sua missão. Ali ele tinha um exemplo de não-violência, e, nesse caso, a não-violência tinha sido vitoriosa.

Jesus generalizou esse comportamento e definiu o amor aos inimigos em geral. O mandamento é geral. Não leva em conta as circunstâncias particulares, nem a eventual eficácia. Depois dele, os cristãos procuraram adaptar o mandamento às novas circunstâncias. Vieram os missionários itinerantes que tiveram um papel importante na transmissão dos ditos e fatos de Jesus. As comunidades de Mateus aplicaram os ditos à situação dos judeus esmagados pela guerra. As comunidades de Lucas relacionaram-nos com os problemas econômicos das cidades gregas, sobretudo com o problema fundamental das dívidas.

Agora o problema é nosso. Quais são os casos em que somos chamados a aplicar os mandamentos da não-violência e do amor aos inimigos? De que maneira se faz a aplicação?

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