O teólogo Hans Küng, "reformista crítico", celebra
o papado de Francisco, critica a canonização de João Paulo II e fala de Céu,
Inferno, eutanásia, amor carnal...
por Markus Grill — publicado 03/09/2014 05:08
Papa Francisco, o verdadeiro revolucionário
Hans küng lutou durante toda a sua vida pelas reformas hoje
avaliadas pelo Vaticano. Nesta entrevista, o teólogo suíço fala sobre as
probabilidades de o papa Francisco revolucionar a Igreja, por que João Paulo II
não deveria ser canonizado e o que ele espera aprender no Céu.
Küng tem sido uma voz a favor da reforma da Igreja Católica
há décadas: da infalibilidade papal ao celibato dos padres e à eutanásia. Sua
atuação custou-lhe a licença para ensinar teologia católica e levou muitos a
considerá-lo um herege. Aos 85 anos, afetado por mal de Parkinson e outras
doenças, o suíço vê a Igreja sob Francisco contemplar várias das ideias
defendidas por ele faz muito tempo.
Markus Grill: Professor Küng, o senhor irá para
o Céu?
Hans Küng: Certamente, espero que sim.
MG: Alguns diriam que o senhor irá para o
Inferno, por ser um herege aos olhos da Igreja.
HK: Não sou um herege, mas um teólogo reformista
crítico. Diferentemente de muitos de meus detratores, uso como parâmetro o
Evangelho, em vez da teologia medieval, a liturgia e a lei da Igreja.
MG: O Inferno existe?
HK: A referência ao Inferno é uma advertência ao
fato de um ser humano poder negligenciar completamente seu propósito na vida.
Não acredito em um Inferno eterno.
MG: Se o Inferno significa perder seu propósito
na vida, deve ser uma noção muito secular.
HK: Os indivíduos criam seu próprio inferno, em
guerras, assim como no capitalismo desenfreado.
MG: Em seu ensaio “Fragmento sobre o tema da
religião”, Thomas Mann admitiu pensar na morte quase todos os dias. E o senhor?
HK: Na verdade, sempre pensei que morreria
jovem, pois acreditava que, diante da minha vida louca, não chegaria aos 50
anos. Hoje estou surpreso por ter 85 e continuar vivo.
MG: O senhor é um homem idoso e doente. Tem
perda auditiva aguda, osteoartrite e degeneração macular, que destruirá sua
capacidade de ler.
HK: Essa seria a pior coisa, não ser mais capaz
de ler.
MG: O senhor foi diagnosticado com doença de
Parkinson.
HK: Entretanto, ainda trabalho muito duro todos
os dias. Mas interpreto todas essas coisas como sinais de advertência sobre
minha morte iminente. Minha caligrafia tem ficado pequena e muitas vezes
ilegível, quase como se estivesse prestes a desaparecer. Meus dedos falham. É
um fato que minha condição geral deteriorou. Mas eu também combato isso. Nado
15 minutos todos os dias onde moro e faço exercícios de fisioterapia, assim
como exercícios para a voz e para os dedos, e me dedico a novas tarefas. Além
disso, tomo vários remédios por dia.
MG: O senhor escreveu mais de 60 livros e sempre
foi um homem muito produtivo, que gostava de entrar em discussões. Em suas
memórias, o senhor avalia se em breve não será nada além de uma sombra de si
mesmo.
HK: É claro, os diagnósticos e prognósticos dos
médicos são imprecisos. Minha visão, por exemplo, deteriora-se mais lentamente
do que o previsto. Dois anos atrás, meu médico disse que eu só conseguiria ler
por mais dois anos. E hoje ainda consigo ler. Mas vivo em aviso prévio, e estou
preparado para me despedir a qualquer momento.
MG: Seu amigo, o escritor e intelectual Walter
Jens, caiu em um estado de demência que rapidamente se deteriorou nove anos
atrás. Ele morreu faz pouco tempo.
HK: Eu o visitei várias vezes, inclusive pouco
antes de sua morte. Até alguns anos atrás, seu rosto ainda se iluminava quando
eu o visitava. Mas nos últimos anos ele não se lembrava mais se tinha me visto
na véspera ou um mês antes. No final, não me reconhecia mais. Foi deprimente pensar
que Jens, um dos intelectuais mais importantes do pós-Guerra, havia recuado
para uma espécie de infância.
MG: A demência também foi dura para Jens, ou
apenas para seus parentes e amigos?
HK: No início de sua doença, quando você
perguntava como se sentia, ele quase sempre dizia “péssimo” ou “mal”. Ao mesmo
tempo, ele passou a apreciar pequenas coisas, como crianças, animais e doces.
Eu costumava levar-lhe chocolates. No início ele comia sozinho, mas depois eu
tinha de colocá-los em sua boca. Não podemos saber o que Jens experimentou no
final. Mas não se pode esperar que eu aceite estar em uma condição semelhante.
MG: Em 1995, o senhor e Jens coescreveram o
livro Dying With Dignity (Morrendo com Dignidade). Como
cristão, o senhor pode pôr fim à sua própria vida?
HK: Sinto que a vida é um dom de Deus. Mas Deus
me tornou responsável por esse dom. O mesmo se aplica à última fase da vida, a
morte. O Deus da Bíblia é um Deus de compaixão, e não um déspota cruel que quer
ver os seres humanos passarem o maior tempo possível em um inferno de sua
própria dor. Em outras palavras, o suicídio assistido pode ser a forma
definitiva de ajuda na vida.
MG: A Igreja Católica considera a eutanásia um
pecado, uma infração à soberania do criador.
HK: Não apreciei quando o porta-voz do bispo de
Rotemburgo declarou que o que eu havia escrito representava os ensinamentos de
Küng, e não os ensinamentos da Igreja. Uma hierarquia eclesiástica que errou
tanto sobre o controle de natalidade, a pílula e a inseminação artificial não
deveria cometer os mesmos erros agora sobre questões relativas ao fim da vida.
Nossa situação mudou fundamentalmente no século XXI. A expectativa média de
vida cem anos atrás era de 45 anos, e a maioria morria cedo. Hoje tenho 85, mas
é uma extensão artificial da minha vida, graças às dez pílulas que tomo
diariamente, e graças aos progressos na higiene e na medicina.
MG: O senhor tem medo de uma doença prolongada?
HK: Escrevi instruções cuidadosamente formuladas
e recentemente entrei para uma organização de suicídio assistido. Isso não
significa que desejo cometer suicídio. Mas, caso minha doença piore, quero ter
uma garantia de que posso morrer de maneira digna. Em nenhum lugar a Bíblia diz
que um ser humano tem de se manter até o fim ordenado. Ninguém nos diz o que
“ordenado” significa.
MG: O senhor tem de ir para outro país para ter
acesso ao suicídio assistido.
HK: Sou um cidadão suíço.
MG: Como funciona exatamente? O senhor telefona
e diz: estou indo?
HK: Ainda não tenho um mapa do caminho. Mas
escrevi minha própria liturgia da morte no último volume de minhas memórias.
MG: Um padre não poderá lhe administrar os
últimos ritos.
HK: Terei comigo um amigo que é padre, um de
meus alunos.
MG: Em Os Sofrimentos do Jovem Werther,
de Goethe, o protagonista se mata por amor. O livro termina com a sentença:
“Nenhum padre esteve presente”. Essa é a posição da Igreja.
HK: Eu sempre objetei a que minha posição sobre
a morte fosse considerada um protesto contra a autoridade da Igreja. Não quero
fornecer regras gerais, e só posso decidir por mim mesmo. Seria ridículo
encenar a própria morte como um protesto contra a autoridade da Igreja. O que
eu quero, entretanto, é que a questão seja discutida de maneira aberta e
amigável.
MG: Mas que ser humano com uma doença incurável
desejará impor uma carga a seus parentes quando o suicídio assistido se tornar
socialmente aceito?
HK: Existe, é claro, o risco que você descreve.
Mas hoje o suicídio assistido ocorre em uma zona cinzenta, pois é proibido.
Muitos médicos aumentam a dose de morfina quando chega a hora, e ao fazê-lo
correm o risco de ser condenados por um crime. Alguns pacientes, quando não
conseguem encontrar esses médicos, saltam da janela do hospital. Isso é
intolerável. Não podemos deixar essa questão à discrição de cada médico.
Precisamos de um regulamento legal, em parte para proteger os médicos.
MG: Não nos agarramos demais à vida no final, de
modo que perdemos o momento certo?
HK: Isso é possível, é claro.
MG: O senhor se agarra à vida?
HK: Eu não me agarro à vida terrena, porque
acredito na vida eterna. Essa é a grande distinção entre meu ponto de vista e
uma posição puramente secular.
MG: O senhor escreve em suas memórias: “Meu
coração dói quando penso em todas as coisas que terei de abandonar”.
HK: É verdade. Não me despeço da vida por ser um
misantropo ou por desprezá-la, mas porque, por outros motivos, está na hora de
seguir em frente. Estou firmemente convencido de que existe vida após a morte,
não em um sentido primitivo, mas como a entrada de minha natureza completamente
finita no infinito de Deus, como uma transição para outra realidade além da
dimensão do espaço e do tempo que a pura razão não pode afirmar nem negar. É
uma questão de razoável confiança. Não tenho evidência matemática e científica
disso, mas tenho bons motivos para confiar na mensagem da Bíblia, e acredito em
ser recebido por um Deus misericordioso.
MG: O senhor tem um conceito de céu?
HK: A maioria das maneiras de falar sobre o céu
são imagens puras que não podem ser tomadas literalmente. Estamos muito
distantes das noções de céu no período anterior a Copérnico. No céu, espero,
porém, conhecer as respostas para os grandes mistérios do mundo, para perguntas
como: Por que uma coisa é uma coisa e não nada? De onde vêm o big-bang e as
constantes físicas? Em outras palavras, há perguntas que nem a
astrofísica nem a filosofia responderam. De qualquer modo, falo sobre um estado
de paz eterna e felicidade eterna.
MG: Hoje a física pode explicar o cosmo escuro,
com seus bilhões de estrelas, muito melhor do que no passado. Isso abalou a sua
fé?
HK: Quando consideramos como o universo é enorme
e escuro, certamente não facilita as coisas para a fé. Quando Beethoven compôs
a Nona Sinfonia, ainda podia esperar que “acima da abóbada de estrelas
vivesse um pai amoroso”. Nós, entretanto, temos de aceitar que sabemos pouco.
Noventa e cinco por cento do universo é desconhecido para nós, e nada sabemos
sobre os 27% de matéria escura ou 68% de energia escura. A física se aproxima
cada vez mais da origem, no entanto não consegue explicar a origem em si.
MG: O que acontece atualmente no Vaticano é
aquilo pelo qual o senhor passou a vida a lutar: uma liberalização e reforma da
Igreja. Isso acontece no momento em que o senhor envelhece e se torna frágil. É
uma ironia da história?
HK: A ironia aplica-se mais a meu ex-colega
Joseph Ratzinger do que a mim. Eu não esperava ver uma mudança radical na
Igreja Católica durante minha vida. Sempre acreditei, e passei a aceitar, que
Küng partiria e Ratzinger ficaria. Por isso fiquei tão surpreso ao ver Bento
XVI sair e o papa Francisco assumir o cargo em 19 de março de 2013, meu
aniversário e dia onomástico de Ratzinger.
MG: Como foi possível que um colégio de cardeais
formado por homens conservadores e de modo geral retrógrados elegesse um
revolucionário para papa?
HK: Em primeiro lugar, eles nem sabiam o quanto
ele é revolucionário. Mas, fora o núcleo duro da Cúria, muitos cardeais sabiam
que a Igreja está em uma crise profunda, simbolizada pela corrupção no Vaticano,
o encobrimento de casos de abuso e o escândalo do VatiLeaks. Os cardeais muitas
vezes foram confrontados com duras críticas de suas congregações nativas.
MG: Um indivíduo pode revolucionar uma
instituição como a Igreja Católica?
HK: Sim, se ela receber bons conselhos como papa
e tiver uma equipe capaz. Do ponto de vista jurídico, o papa tem mais poder que
o presidente dos Estados Unidos.
MG: Mas só dentro da igreja, porque suas
decisões não são submetidas à aprovação de um órgão legislativo.
HK: Também não há Suprema Corte. Se quisesse, o
papa poderia abolir imediatamente a lei do celibato adotada no século XII.
MG: A Primavera Árabe poderia ser seguida por
uma Primavera Católica?
HK: Já está aqui, mas existe o mesmo risco de
reveses e movimentos contrários, como houve na Primavera Árabe. Existem grupos
poderosos no Vaticano e na Igreja em todo o mundo que gostariam de reverter o
tempo. Eles estão preocupados com seus privilégios.
MG: O senhor se incomoda por não poder mais se
envolver nesses debates?
HK: Aceito isso calmamente. Para mim é mais
importante o papa ler o que eu lhe envio do que me convidar para ir a Roma.
MG: Recentemente, ele lhe escreveu e disse ter
gostado de ler os dois livros que o senhor lhe enviou, e que permanece “à sua
disposição”.
HK: Recebi recentemente duas cartas manuscritas
e muito amigáveis dele. O endereço do remetente nos envelopes dizia apenas “F.,
Domus Sanctae Marthae, Vaticano”, e ele assinou as cartas “com saudações
fraternas”. Até isso é um novo estilo. Em 27 anos, João Paulo II não me
considerou digno de uma única resposta.
MG: Com quem Francisco pode ser comparado?
HK: Provavelmente, com João XXIII, mas ele não
tem uma de suas fraquezas. João XXIII fez reformas apressadas e sem uma agenda.
Ele cometeu sérios erros administrativos.
MG: A questão é se Francisco impressiona apenas
com gestos, ou há mais por trás disso.
HK: Os trajes mais simples, as mudanças no
protocolo e o tom de voz completamente diferente não são coisas superficiais.
Ele introduziu uma mudança de paradigmas. Com esse papa, ressurgiu o caráter de
serviço do cargo papal. Ele quer que os padres saiam das igrejas e encontrem os
fiéis. Recentemente, enviou aos bispos uma pesquisa para obter as opiniões dos
laicos sobre assuntos familiares. Sua primeira viagem o levou aos refugiados em
Lampedusa. Tudo isso é um distanciamento da maneira como Bento XVI interpretava
o cargo. O apelo por uma Igreja pobre leva a uma maneira de pensar diferente.
Com Bento, o extravagante bispo de Limburg provavelmente ainda estaria no
cargo.
MG: Mas Francisco confirmou o arcebispo
linha-dura Gerhard Ludwig Müller como chefe da Congregação para a Doutrina da
Fé, o vigilante do Vaticano e policial em questões da doutrina aceita.
HK: Poderia imaginar que Bento fizesse uma forte
campanha para manter Müller no cargo. Mas o teste definitivo será se o novo
papa continuará a permitir que ele interprete o supervisor da fé e o grande
inquisidor.
MG: E a canonização de João Paulo II, que
reforçou grupos controversos como o Opus Dei e a Legião de Cristo?
HK: Não posso entender a canonização. Trata-se
do papa mais contraditório do século XX. Ele venerava a Virgem Maria, mas
negava às mulheres cargos na Igreja. Ele pregava contra a pobreza em massa, no
entanto proibia a contracepção. Discuti extensamente 11 dessas enormes
contradições no último volume de minhas memórias. Suas palavras divergiam
constantemente de seus atos. Ele considerava o padre Marcial Maciel, um dos
piores molestadores de meninos e fundador da Legião de Cristo, seu amigo e o
defendeu contra todas as críticas.
MG: O senhor perdoa Francisco por essa
canonização?
HK: Bento XVI acelerou a canonização de Wojtyla
e ignorou todos os períodos de espera requeridos. Deter o processo agora não
apenas seria uma afronta a Bento, mas a muitos poloneses. Posso entender que
Francisco não queira fazer isso. Ao menos o papa reformista João XXIII também
foi canonizado. Devemos pensar se as canonizações, uma invenção medieval, ainda
têm sentido hoje.
MG: Há alguma coisa em sua vida que gostaria de
desfazer?
HK: Fui muito polêmico às vezes, e gostaria de
não ter dito certas coisas. Minha experiência mais drástica foi, porém, a
revogação da licença para ensinar como teólogo católico, em 1979. Foi
devastador para mim, emocional e fisicamente. Houve um dia em que eu estava
deitado neste sofá amarelo e não conseguia ir à reunião de professores marcada
para discutir meu caso.
MG: O senhor espera ser reabilitado em vida?
HK: Não. A Conferência Episcopal Alemã poderia
iniciar o processo e Roma só teria de concordar. Mas não prevejo ou espero
isso. O papa Francisco não deveria pôr em risco outras tarefas importantes ao
me reabilitar e aproximar-se demais de mim.
MG: O senhor foi acusado de vaidade durante toda
a sua vida. Existe até um capítulo inteiro sobre isso em suas memórias.
HK: Provavelmente, não sou mais vaidoso que a
média.
MG: Parte do motivo de sua licenciatura ter sido
revogada deveu-se ao fato de o senhor pôr em dúvida a necessidade de celibato
dos padres. O senhor acredita que as regras poderão ser modificadas com
Francisco?
HK: Não posso realmente imaginar que essa
questão continue a ser adiada. A cada dia há menos sacerdotes paroquiais. Não
sei como a Igreja poderá oferecer atendimento pastoral na próxima geração. A
questão é relevante há algum tempo e os fiéis apoiam amplamente essa reforma.
MG: O senhor vive em celibato?
HK: Não sou casado e não tenho esposa nem
filhos.
MG: Há uma mulher em suas memórias a quem o
senhor se refere como “minha companheira ideal na vida”.
HK: Sim,
no sentido de uma companheira de viagem ideal. Temos propriedades separadas,
vivemos em andares separados e temos apartamentos separados. Eu descrevo tudo
isso em minhas memórias
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