Sexta, 09 de agosto de 2013
As perguntas de um não crente ao papa jesuíta
chamado Francisco. Artigo de Eugenio Scalfari
Eu acredito que o papa, que prega a Igreja pobre, é um
milagre que faz bem ao mundo. Mas também acredito que não haverá um Francisco
II. Uma Igreja pobre, que expulse o poder e desmantele os instrumentos de poder
se tornaria irrelevante.
A opinião é de Eugenio
Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica,
07-08-2013. A tradução é deMoisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O Papa Francisco foi eleito ao sólio petrino há
pouquíssimos meses, mas continua provocando escândalo a cada dia. Por como ele
se veste, por onde mora, por aquilo que diz, por aquilo que decide. Escândalo,
mas benéfico, tonificante, inovador.
Com os jornalistas, ele fala pouco ou, melhor, de fato
não fala; o circo midiático não é para ele, não é do seu gosto, mas o seu
diálogo com as pessoas é contínuo, coletivo e individual, escuta, pergunta,
responde, vai aos lugares mais disparatados e sempre tem um texto para ler
entre as mãos, mas logo o descarta. Improvisa sem esforço algum, ao ar livre ou
em uma igreja, em uma cabana de pescadores ou na praia de Copacabana, no salão
das audiências ou do "papamóvel" que fende docemente a multidão dos
fiéis.
Ele é bom como o Papa João XXIII, fascina as pessoas
como Wojtyla, cresceu entre os jesuítas, escolheu se chamarFrancisco,
porque quer a Igreja do pobrezinho de Assis. Enfim: é cândido como uma
pomba, mas esperto como uma raposa. Todos escrevem a respeito, todos o olham
admirados, e todos, presbíteros e leigos, homens e mulheres, jovens e velhos,
crentes e não crentes, esperam ver o que ele vai fazer no dia seguinte.
Ele não se ocupa com a política; nunca o fez nem na Argentina como
bispo, nem no Vaticano como papa. CriticouVidela sistematicamente,
mas não pela horrível ditadura por ele instaurada, mas porque ele não estava
ajudando os pobres, os fracos, os necessitados. No fim do governo, para se
livrar daquela voz irritante, colocou à sua disposição uma estrutura
assistencial até aquele momento inerte, e ele abandonou a sua diocese a um
vigário e começou a bater por todo o país como missionário, mas não para
converter, mas sim para ajudar, educar, infundir esperança e caridade.
Há dois meses, publicou uma encíclica
sobre a fé, um texto já escrito pelo seu antecessor, com o qual convive sem
nenhum constrangimento a poucas centenas de metros de distância. Retocou aquele
texto em pouco pontos, assinou-o e o tornou público.
A encíclica é bastante inovadora com relação a outras
sobre o mesmo assunto emitidas pelos seus antecessores. A novidade está no fato
de que ela não se ocupa da relação entre fé e razão. De fato,não exclui que essa
relação exista, mas a ele (e a Bento XVI) interessa a graça que flui do
Senhor e desce sobre os fiéis. A graça coincide com a fé, e a fé com a
caridade, o amor pelo próximo, que é o único modo – atenção: o único modo – de
amar o Senhor.
Sente-se o perfume intelectual de Agostinho. Mais de Agostinho do
que de Paulo. Mas aqui já estamos em dificuldades. Seria preciso
pensar que são três os santos de referência para o atual bispo de Roma (que
insiste muito nessa sua qualificação que acompanha e até mesmo precede o título
pontifício): Agostinho, Inácio, Francisco.
Mas é este último que dá ao papa que tomou o seu nome a
conotação mais evidente e por ele ressaltada em cada ocasião. Ele quer uma
Igreja pobre que pregue o valor da pobreza; uma Igreja militante e missionária;
uma Igreja pastoral; uma Igreja construída à semelhança de um Deus
misericordioso, que não julga, mas perdoa, que busque a ovelha perdida, que
acolha o filho pródigo.
Certamente, a Igreja Católica também é uma instituição,
mas a instituição, assim como Francisco a vê, é uma estrutura de
serviço, como a intendência de um exército com relação às tropas combatentes. A
intendência segue, não precede. E assim são a instituição, a Cúria, a Secretaria
de Estado, o banco, o Governatorato do Vaticano, as
Congregações, os núncios e os Tribunais, toda a imensa e imensamente complexa
arquitetura que a Igreja, Esposa de Cristo, mantém de pé há 2.000 anos.
Esse, até agora, tem sido o rosto da Igreja. A
pastoralidade? Certamente, um bem precioso. A Igreja pregadora? A Igreja
missionária? A Igreja pobre? Certamente, a verdadeira substância que a
instituição contém como uma joia preciosa dentro de uma caixa de aço.
Mas, atenção: por 2.000 anos, a Igreja falou, decidiu,
agiu como instituição. Nunca houve um papa que tenha hasteado a bandeira da
pobreza, nunca houve um papa que não tem gerido o poder, que não tenha
defendido, reforçado, amado o poder, nunca houve um papa que tenha sentido como
próprio o pensamento e o comportamento do pobrezinho de Assis. E nunca houve, exceto nos casos de
fraqueza e de agitação, uma Igreja horizontal, ao invés de vertical.
Em 2.000 anos de história, a Igreja Católica convocou 21
concílios ecumênicos, principalmente condensados entre os séculos III e V da
era cristã e entre os séculos IX e XIII. Desde o Concílio
de Trento, passaram-se mais de 300 anos até o Vaticano I precedido
pelo Sílabus, e depois passaram-se 80 anos até o Vaticano II.
Os Sínodos, obviamente, foram muito mais numerosos, mas
todos convocados e liderados pela Cúria e pelo papa. O cardeal Martini (aliás,
também ele jesuíta) queria ao lado do magistério do papa a estrutura horizontal
dos concílios e dos sínodos, das Conferências Episcopais e da pastoralidade.
Ele não foi amado em Roma, assim como Bergoglio no conclave que
terminou com a eleição de Ratzinger.
Bergoglio também gosta da estrutura horizontal. A
sua missão contém, em suma, duas escandalosas novidades: a Igreja pobre de Francisco,
a Igreja horizontal de Martini. E uma terceira: um Deus que não julga, mas
perdoa. Não há condenação, não há inferno. Talvez Purgatório? Seguramente,
arrependimento como condição para o perdão. "Quem sou eu para julgar os
gays ou os divorciados que buscam a Deus?", assim diz
Bergoglio.
* * *
Mas eu gostaria, neste ponto, de lhe fazer algumas
perguntas. Eu não acredito que ele vai responder, mas, aqui e hoje, eu não sou
um jornalista, sou um não crente que, há muitos anos, está interessado e
fascinado pela pregação de Jesus de Nazaré, filho de Maria e de José,
judeu da estirpe de Davi. Eu tenho uma cultura iluminista e não busco a
Deus. Penso que Deus é uma invenção consolatória e fascinante da mente dos
homens.
Pois bem, é nessa veste que eu me permito fazer ao Papa
Francisco algumas perguntas e acrescentar algumas reflexões minhas.
Primeira pergunta: se uma pessoa não tem fé nem a
busca, mas comete o que para a Igreja é um pecado, ela será perdoada pelo Deus
cristão?
Segunda pergunta: o crente crê na verdade revelada,
o não crente pensa que não existe nenhum absoluto e, portanto, nem mesmo uma
verdade absoluta, mas sim uma série de verdades relativas e subjetivas. Esse
modo de pensar, para a Igreja, é um erro ou um pecado?
Terceira pergunta: o Papa Francisco disse
durante a sua viagem
ao Brasil Brasil que a nossa espécie também perecerá, assim como todas
as coisas que têm um início e um fim. Eu também penso do mesmo modo, mas também
penso que, com o desaparecimento da nossa espécie, também desaparecerá o
pensamento capaz de pensar Deus e que, portanto, quando a nossa espécie
desaparecer, então Deus também desaparecerá, porque ninguém mais será capaz de
pensá-lo. O papa certamente tem uma resposta sua a esse tema, e eu gostaria
muito de conhecê-la.
E agora uma reflexão. Eu acredito que o papa, que prega a
Igreja pobre, é um milagre que faz bem ao mundo. Mas também acredito que não
haverá um Francisco II. Uma Igreja pobre, que expulse o poder e desmantele
os instrumentos de poder se tornaria irrelevante. Isso aconteceu com Lutero,
e hoje as seitas luteranas são milhares e continuam se multiplicando. Elas não
impediram a laicização, ao contrário, favoreceram a sua expansão.
A Igreja Católica, repleta de defeitos e de pecados,
resistiu e, ao contrário, é forte porque não renunciou ao poder. Aos não
crentes como eu, Francisco agrada muito ou, melhor, muitíssimo, assim
como Francisco de Assis e Jesus de Nazaré. Mas eu não acredito
que Jesus teria se tornado Cristo sem um São Paulo.
Longa vida ao Papa Francisco.
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Papa responde carta do fundador do jornal La Repubblica: "Chegou o tempo de caminharmos juntos"
Quarta, 11 de setembro de 2013
No dia 07-07-2013, o fundador do jornal La Repubblica, Eugenio Scalfari, escreveu uma carta aberta ao PapaFrancisco.
Em artigo posterior, publicado no dia 7 de agosto, ele complementa o artigo
anterior com novas reflexões pessoais.
Eugênio Scalfari sempre manteve um vivo intercâmbio de diálogos
com Carlo Maria Martini, cardeal-arcebispo de Milão.
Hoje o jornal La Repubblica publica uma longa resposta de
Papa Francisco aos dois artigos do jornalista e fundador do
importante jornal italiano.
O papa agradece a atenção que o jornalista deu comentar a encíclica Lumen
Fidei.
O papa escreve:
"Entre a Igreja e a cultura de inspiração cristã, de um lado, e
a cultura moderna de inspiração iluminista, de outro, instaurou-se a
incomunicabilidade. Chego o tempo, e o Vaticano II inaugurou esta nova estação,
de um diálogo aberto e sem preconceitos capaz de reabrir as portas para um
verdadeiro e fecundo encontro".
E mais adiante, Francisco afirma:
"A fé cristã crê nisto: que Jesus é o Filho de Deus que veio
dar a sua vida para abrir a todos o caminho do amor. Por isso o senhor tem
razão quando vê na encarnação do Filho de Deus o núcleo central da fé cristã.
Já Tertuliano escrevia; "Caro cardo salutis", a
carne (de Cristo) é o núcleo da salvação. Porque a encarnação, ou seja, o fato
de que o Filho de Deus veio na nossa carne e tenha compartilhado conosco
alegrias e dores, vitórias e derrotas da nossa existência, até o grito da cruz,
vivendo cada coisa no amor e na fidelidade ao Abbá, testemunha o incrível
amor que Deus tem por cada um ser humano, o valor inestimável que lhe
reconhece. Cada um de nós, por isso, é chamado a fazer seu o olhar e a opção do
amor de Jesus, a entrar no seu modo de ser, de pensar e de agir. Esta é a fé,
com todas as expressões que são descritas pontualmente na Encíclica".
A longa resposta de Papa Francisco, a ser publicada na íntegra,
nesta página, conclui assim:
"Egrégio Dr. Scalfari, concluo assim estas minhas
reflexões, suscitadas por aquilo que o senhor quis me comunicar e me
interrrogar. Acolha-as como uma resposta tentativa e provisória, mas sincera e
confiante, ao convite de fazermos juntos um pedaço do caminho. A Igreja,
acredite, apesar de toda a lentidão, as infedilidades, os erros e os pecados
que pode ter cometido e ainda pode cometer naqueles que a compõem, não tem
outro sentido do que o de viver e testemunha Jesus: Ele que foi enviado por Abbá "a
anunciar aos pobres o alegre anúncio, a proclamar aos presos a liberdação e aos
cegos a vista, a colocar em libertade os oprimidos, a proclamar o ano da graça
do Senhor" (Lucas 4, 18-19). Com fraterna proximidade, Francisco".
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Papa Francisco escreve ao La Repubblica: ''Um diálogo aberto com os não crentes''
Quinta, 12 de setembro de 2013
O pontífice responde às
perguntas que lhe tinham sido feitas por Eugenio
Scalfari, fundador do jornal La Repubblica, sobre fé e laicidade.
"Chegou o tempo de fazer um trecho de estrada juntos". "Deus
perdoa quem segue a própria consciência".
Publicamos aqui a íntegra da carta enviada pelo Papa
Francisco ao jornal e publicada no dia 11-09-2013. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Eis o texto.
Ilustríssimo Doutor Scalfari, é com viva
cordialidade que, embora somente em grandes linhas, gostaria de tentar com esta
minha carta responder à sua, que, a partir das páginas do La Repubblica, o
senhor quis me endereçar no dia 7 de julho com uma série de reflexões pessoais
suas, que depois o senhor enriqueceu nas páginas do mesmo jornal, no dia 7
de agosto.
Agradeço-lhe, acima de tudo, pela atenção com que quis
ler a Encíclica Lumen
fidei. Ela, de fato, na intenção do meu amado Antecessor, Bento
XVI, que a concebeu e em grande medida a redigiu, e do qual, com gratidão, eu a
herdei, é dirigida não somente para confirmar na fé em Jesus Cristo aqueles que
nela já se reconhecem, mas também para suscitar um diálogo sincero e rigoroso
com aqueles que, como o senhor, se definem como "um não crente há muitos
anos interessado e fascinado pela pregação de Jesus de Nazaré".
Parece-me, portanto, certamente positivo não só para nós,
individualmente, mas também para a sociedade em que vivemos determo-nos para
dialogar sobre uma realidade tão importante como a fé, que se refere à pregação
e à figura deJesus. Eu penso que há, em particular, duas circunstâncias que
tornam hoje necessário e precioso esse diálogo.
Ele, aliás, constitui, como se sabe, um dos objetivos principais
do Concílio Vaticano II, desejado por João XXIII, e do ministério dos
Papas que, cada um com a sua sensibilidade e o seu aporte, desde então e até
hoje caminharam no sulco traçado pelo Concílio. A primeira circunstância – como
se refere nas páginas iniciais da Encíclica – deriva do fato que, ao longo dos
séculos da modernidade, assistiu-se a um paradoxo: a fé cristã, cuja novidade e
incidência sobre a vida do ser humano, desde o início, foram expressadas
precisamente através do símbolo da luz, foi muitas vezes rotulada como a
escuridão da superstição que se opõe à luz da razão. Assim, entre a Igreja e a
cultura de inspiração cristã, de um lado, e a cultura moderna de marca
iluminista, de outro, chegou-se à incomunicabilidade. Chegou agora o tempo, e o
Vaticano II inaugurou justamente a sua época, de um diálogo aberto e sem
preconceitos que reabra as portas para um sério e fecundo encontro.
A segunda circunstância, para quem busca ser fiel ao dom
de seguir Jesus na luz da fé, deriva do fato de que esse diálogo não é um
acessório secundário da existência do crente: ao invés, é uma expressão íntima
e indispensável dela. Permita-me citar-lhe, a propósito, uma afirmação a meu
ver muito importante da Encíclica: como a verdade testemunhada pela fé é a do
amor – sublinha-se – "resulta claro que a fé não é intransigente, mas
cresce na convivência que respeita o outro. O crente não é arrogante; ao
contrário, a verdade o torna humilde, sabendo que, mais do que possuirmo-la
nós, é ela que nos abraça e nos possui. Longe de nos enrijecer, a segurança da
fé nos põe a caminho e torna possível o testemunho e o diálogo com todos"
(n. 34). É esse o espírito que anima as palavras que eu lhe escrevo.
A fé, para mim, nasceu do encontro com Jesus. Um
encontro pessoal, que tocou o meu coração e deu uma direção e um sentido novo à
minha existência. Mas, ao mesmo tempo, um encontro que se tornou possível pela
comunidade de fé em que eu vivia e graças à qual eu encontrei o acesso à
inteligência da Sagrada Escritura, à vida nova que, como água que jorra, brota
de Jesus através dos Sacramentos, à fraternidade com todos e ao serviço dos
pobres, imagem verdadeira do Senhor. Sem a Igreja – acredite-me –, eu não teria
podido encontrar Jesus, embora na consciência de que aquele imenso dom que é a
fé é custodiado nos frágeis vasos de barro da nossa humanidade.
Ora, é precisamente a partir daí, dessa experiência
pessoal de fé vivida na Igreja, que eu me sinto confortável para ouvir as suas
perguntas e para buscar, junto com o senhor, as estradas ao longo das quais
possamos, talvez, começar a fazer um trecho de caminho juntos.
Perdoe-me se eu não seguir passo a passo as argumentações
propostas pelo senhor no editorial do dia 7 de julho. Parece-me mais frutífero
– ou, ao menos, é mais natural para mim – ir de certo modo ao coração das suas
considerações. Não vou entrar nem na modalidade expositiva seguida pela
Encíclica, em que o senhor entrevê a falta de uma seção dedicada
especificamente à experiência histórica de Jesus de Nazaré.
Observo apenas, para começar, que uma análise desse tipo
não é secundária. Trata-se, de fato, seguindo, além disso, a lógica que guia o
desdobramento da Encíclica, de deter a atenção sobre o significado do que Jesus
disse e fez, e, assim, em última instância, sobre o que Jesus foi e é para nós.
As Cartas de Paulo e o Evangelho de João, aos quais se faz
referência particular na Encíclica, são construídos, de fato, sobre o sólido
fundamento do ministério messiânico de Jesus de Nazaré que chegou ao seu auge
resolutivo na páscoa de morte e ressurreição.
Portanto, é preciso se confrontar com Jesus, eu diria, na
concretude e na rudeza da sua história, como nos é narrada sobretudo pelo mais
antigo dos Evangelho, o de Marcos. Constata-se então que o
"escândalo" que a palavra e a práxis de Jesus provocam em
torno dele deriva da sua extraordinária "autoridade": uma palavra,
esta, atestada desde oEvangelho de Marcos, mas que não é fácil traduzir bem em
italiano. A palavra grega é "exousia", que, literalmente, refere-se
ao que "provém do ser" que se é. Não se trata de algo exterior ou
forçado, portanto, mas de algo que emana de dentro e que se impõe por si só.
Jesus, com efeito, impressiona, surpreende, inova a partir – ele mesmo o diz –
da sua relação com Deus, chamado familiarmente de Abbá, que lhe confere essa
"autoridade" para que ele a gaste em favor dos homens.
Assim, Jesus prega "como quem tem
autoridade", cura, chama os discípulos a segui-lo, perdoa... todas coisas
que, noAntigo Testamento, são de Deus, e somente de Deus. A pergunta que mais
vezes retorna no Evangelho de Marcos: "Quem é este que...?", e
que diz respeito à identidade de Jesus, nasce da constatação de uma autoridade
diferente da do mundo, uma autoridade que não tem como fim exercer um poder
sobre os outros, mas servi-los, dar-lhes liberdade e plenitude de vida. E isso
até o ponto de pôr em jogo a sua própria vida, até experimentar a
incompreensão, a traição, a rejeição, até ser condenado à morte, até desabar no
estado de abandono sobre a cruz. Mas Jesus permanece fiel a Deus, até o fim.
E é precisamente então – como exclama o centurião romano
aos pés da cruz, no Evangelho de Marcos – que Jesus se
mostra, paradoxalmente, como o Filho de Deus! Filho de um Deus que é amor e que
quer, com todo o seu próprio ser, que o ser humano, cada ser humano, se
descubra e viva também ele como seu verdadeiro filho. Isso, para a fé cristã, é
certificado pelo fato de que Jesus ressuscitou: não para trazer novamente o
triunfo sobre quem o rejeitou, mas para atestar que o amor de Deus é mais forte
do que a morte, o perdão de Deus é mais forte do que todo o pecado, e que vale
a pena gastar a própria vida, até o fim, para testemunhar esse imenso dom.
A fé cristã crê nisto: que Jesus é o Filho de
Deus que veio para dar a sua vida para abrir a todos o caminho do amor. Por
isso, o senhor tem razão, ilustre Dr. Scalfari, quando vê na encarnação do
Filho de Deus o eixo da fé cristã. Tertulianojá escrevia: "Caro
cardo salutis", a carne (de Cristo) é o eixo da salvação. Porque
a encarnação, isto é, o fato de que o Filho de Deus veio na nossa carne e
compartilhou alegrias e dores, vitórias e derrotas da nossa existência, até o
grito da cruz, vivendo todas as coisas no amor e na fidelidade ao Abbá, testemunha
o incrível amor que Deus tem por cada ser humano, o valor inestimável que lhe
reconhece. Cada um de nós, por isso, é chamado a fazer seu o olhar e a escolha
de amor de Jesus, a entrar no seu modo de ser, de pensar e de agir. Essa é a
fé, com todas as expressões que são descritas pontualmente na Encíclica.
Ainda no editorial do dia 7 de julho, o senhor me
pergunta, além disso, como entender a originalidade da fé cristã, uma vez que
ela se articula justamente na encarnação do Filho de Deus com relação a outras
fés que gravitam, ao invés, em torno da transcendência absoluta de Deus.
A originalidade, eu diria, está precisamente no fato de
que a fé nos faz participar, em Jesus, da relação que Ele tem com Deus que é Abbá e,
nessa luz, da relação que Ele tem com todos os outros seres humanos, incluindo
os inimigos, no sinal do amor. Em outros termos, a filiação de Jesus, como
ela é apresentada pela fé cristã, não é revelada para marcar uma separação
intransponível entre Jesus e todos os outros: mas para nos dizer que, n'Ele,
todos somos chamados a ser filhos do único Pai e irmãos entre nós. A
singularidade de Jesus é pela comunicação, não pela exclusão.
Certamente, segue-se também disso – e não é uma coisa
pequena – aquela distinção entre a esfera religiosa e a esfera política que é
sancionada no "dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de
César", afirmada com clareza por Jesuse sobre a qual, laboriosamente,
se construiu a história do Ocidente. A Igreja, de fato, é chamada a semear
o fermento e o sal do Evangelho, isto é, o amor e a misericórdia de Deus que
alcançam todos os seres humanos, apontando para a meta ultraterrena e
definitiva do nosso destino, enquanto à sociedade civil e política cabe a
tarefa árdua de articular e encarnar na justiça e na solidariedade, no direito
e na paz, uma vida cada vez mais humana. Para quem vive a fé cristã, isso não
significa fuga do mundo ou busca de qualquer hegemonia, mas sim serviço ao ser
humano, a todo o ser humano e a todos os seres humanos, a partir das periferias
da história e mantendo desperto o senso da esperança que impulsiona a fazer o
bem apesar de tudo e olhando sempre além.
O senhor me pergunta também, na conclusão do seu primeiro
artigo, o que dizer aos irmãos judeus acerca da promessa feita a eles por Deus:
ela foi totalmente esvaziada? Esta é – acredite-me – uma interrogação que nos
interpela radicalmente, como cristãos, porque, com a ajuda de Deus, sobretudo a
partir do Concílio Vaticano II, redescobrimos que o povo judeu ainda é,
para nós, a raiz santa a partir da qual germinou Jesus. Eu também, na
amizade que cultivei ao longo de todos esses anos com os irmãos judeus na Argentina,
muitas vezes na oração interroguei a Deus, de modo particular quando a mente ia
ao encontro das recordações da terrível experiência do Holocausto. Aquilo que
eu posso lhe dizer, com o apóstolo Paulo, é que nunca falhou a fidelidade de
Deus à aliança feita com Israel e que, através das terríveis provações desses
séculos, os judeus conservaram a sua fé em Deus. E por isso, a eles, nós nunca
seremos suficientemente gratos, como Igreja, mas também como humanidade. Eles,
além disso, justamente perseverando na fé no Deus da aliança, lembram a todos,
também a nós, cristãos, o fato de que estamos sempre à espera, como peregrinos,
do retorno do Senhor e que, portanto, sempre devemos estar abertos a Ele e
nunca nos encastelarmos naquilo que já alcançamos.
Chego, assim, às três perguntas que o senhor me faz no
artigo do dia 7 de agosto. Parece-me que, nas duas primeiras, o que está no seu
coração é entender a atitude da Igreja para com aqueles que não compartilham a
fé em Jesus. Acima de tudo, o senhor me pergunta se o Deus dos cristãos
perdoa quem não crê e não busca a fé. Posto que – e é a coisa fundamental – a
misericórdia de Deus não tem limites se nos dirigimos a Ele com coração sincero
e contrito, a questão para quem não crê em Deus está em obedecer à própria
consciência. O pecado, mesmo para quem não tem fé, existe quando se vai contra
a consciência. Ouvir e obedecer a ela significa, de fato, decidir-se diante do
que é percebido como bem ou como mal. E nessa decisão está em jogo a bondade ou
a maldade do nosso agir.
Em segundo lugar, o senhor me pergunta se o pensamento
segundo o qual não existe nenhum absoluto e, portanto, nem mesmo uma verdade
absoluta, mas apenas uma série de verdades relativas e subjetivas, é um erro ou
um pecado. Para começar, eu não falaria, nem mesmo para quem crê, em verdade
"absoluta", no sentido de que absoluto é aquilo que é desvinculado,
aquilo que é privado de toda relação. Ora, a verdade, segundo a fé cristã, é o
amor de Deus por nós em Jesus Cristo. Portanto, a verdade é uma relação!
Tanto é verdade que cada um de nós a capta, a verdade, e a expressa a partir de
si mesmo: da sua história e cultura, da situação em que vive etc. Isso não
significa que a verdade é variável e subjetiva, longe disso. Mas significa que
ela se dá a nós sempre e somente como um caminho e uma vida. Talvez não foi o
próprio Jesus que disse: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida"? Em
outras palavras, a verdade, sendo definitivamente uma só com o amor, exige a
humildade e a abertura a ser buscada, acolhida e expressada. Portanto, é
preciso entendermo-nos bem sobre os termos, e, talvez, para sair dos impasses
de uma contraposição... absoluta, refazer profundamente a questão. Penso que
isso seja absolutamente necessário hoje para entabular aquele diálogo sereno e
construtivo que eu esperava no início deste meu dizer.
Na última pergunta, o senhor me questiona se, com o
desaparecimento do ser humano sobre a terra, também desaparecerá o pensamento
capaz de pensar Deus. Certamente, a grandeza do ser humano está em poder pensar
Deus. Isto é, em poder viver uma relação consciente e responsável com Ele. Mas
a relação entre duas realidades. Deus – este é o meu pensamento e esta é a
minha experiência, mas quantos, ontem e hoje, os compartilham! – não é uma
ideia, embora altíssima, fruto do pensamento do ser humano. Deus é Realidade,
com "R" maiúsculo. Jesus no-lo revela – e vive a relação
com Ele – como um Pai de bondade e misericórdia infinitas. Deus não depende,
portanto, do nosso pensamento. Além disso, mesmo quando viesse a acabar a vida
do ser humano sobre a terra – e para a fé cristã, em todo caso, este mundo como
nós o conhecemos está destinado a desaparecer –, o ser humano não deixará de
existir e, de um modo que não sabemos, assim também o universo criado com ele.
A Escritura fala de "novos céus e nova terra" e afirma que, no fim,
no onde e no quando que está além de nós, mas para o qual, na fé, tendemos com
desejo e expectativa, Deus será "tudo em todos".
Ilustre Dr. Scalfari, concluo assim estas minhas
reflexões, suscitadas por aquilo que o senhor quis me comunicar e me perguntar.
Acolha-as como a resposta tentativa e provisória, mas sincera e confiante, ao
convite que nelas entrevi de fazer um trecho de estrada juntos. A Igreja,
acredite-me, apesar de todas as lentidões, as infidelidades, os erros e os
pecados que pode ter cometido e ainda pode cometer naqueles que a compõem, não
tem outro sentido e fim senão o de viver e testemunhar Jesus: Ele que foi
enviado pelo Abbá "para levar aos pobres o alegre anúncio, para
proclamar aos presos a libertação e aos cegos a recuperação da vista, para
libertar os oprimidos, para proclamar o ano de graça do Senhor" (Lc 4,
18-9).
Com proximidade fraterna,
Francisco
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(A carta que o Papa
Francisco me enviou é "escandalosamente fascinante")
O Artigo de E. Scalfari
Quinta, 12 de setembro de 2013
Jesus, fé e razão: o diálogo do pontífice com a ovelha
perdida. Artigo de Eugenio Scalfari
A carta que o Papa Francisco me enviou é
"escandalosamente fascinante", mais uma prova da sua capacidade e
desejo de superar as barreiras dialogando com todos em busca da paz, do amor e
do testemunho. Dito isso, resumo aqui as perguntas e as reflexões que eu fiz e
às quais o papa responde, a fim de que os leitores tenham bem claro o quadro
dentro do qual se desenvolve este diálogo.
A opinião é de Eugenio
Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La
Repubblica, 11-09-2013. A tradução é deMoisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Francisco decidiu responder às perguntas que eu
lhe havia endereçado em dois artigos, respectivamente publicados no nosso
jornal no dia 7 de julho (1) e 7
de agosto passados. Francamente, eu não esperava que ele o fizesse
tão difusamente e com espírito tão afetuosamente fraterno. Talvez porque a
ovelha perdida mereça mais atenção e cuidado? Digo isso porque, nos artigos
acima citados, eu especifiquei ao papa que eu sou um "não crente e não
busco a Deus", embora "estou há muitos anos interessado e fascinado
pela pregação de Jesus de Nazaré, filho de Maria e José, judeu da
estirpe de Davi". E, mais adiante, eu escrevo que "Deus,
a meu ver, é uma invenção consolatória da mente dos homens".
Permito-me lembrar esta minha posição de interlocutor, até
porque ela torna ainda mais "escandalosamente fascinante" aos nossos
olhos a carta que o Papa Francisco me enviou, mais uma prova
da sua capacidade e desejo de superar as barreiras dialogando com todos em
busca da paz, do amor e do testemunho.
Dito isso, resumo as perguntas e as reflexões que eu fiz e
às quais o papa responde, a fim de que os leitores tenham bem claro o quadro
dentro do qual se desenvolve este diálogo.
1 – A modernidade iluminista pôs em discussão o
tema do "absoluto", começando pela verdade. Existe uma única verdade
ou tantas quantas cada indivíduo configura?
2 – Os Evangelhos e a doutrina da Igreja afirmam
que o Unigênito de Deus se fez carne, certamente não vestindo uma roupa e
imitando os movimentos dos homens e permanecendo Deus, mas sim assumindo também
as suas dores, suas alegrias e seus desejos. Isso significa que Jesus teve
todas as tentações da carne e as venceu não como Deus, mas como homem que tinha
se colocado o fim de levar o amor aos outros no mesmo nível de intensidade do
amor por si mesmo. Daí a incitação: ama o teu próximo como a ti mesmo. Até que
ponto a pregação de Jesus e da Igreja fundada pelos seus discípulos realizou
esse objetivo?
3 – As outras religiões monoteístas, a judaica e
o Islã, preveem um só Deus; o mistério da Trindade lhes é totalmente estranho.
O cristianismo é, portanto, um monoteísmo bastante particular. Como ele se
explica para uma religião que tem como raiz o Deus bíblico, que não tem nenhum
Filho Unigênito e nem pode ser nomeado, muito menos mostrado, como Alá?
4 – O Deus encarnado sempre afirmou que o seu
reino não era e nunca seria deste mundo. Daí o "dai a César o que é de
César e a Deus o que é de Deus". Esse "limite" teve como
consequência lógica que o cristianismo nunca deveria ter a tentação da
teocracia, que, ao invés, domina nas terras islâmicas. No entanto, o
cristianismo, principalmente na sua versão católica, também sentiu fortemente a
tentação do poder terreno; a temporalidade muitas vezes superou a pastoralidade
da Igreja. O Papa Francisco representa finalmente a prevalência da Igreja pobre
e pastoral sobre a institucional e temporalista?
5 – Deus prometeu a Abraão e ao
povo eleito de Israel prosperidade e felicidade, mas essa promessa nunca foi
realizada e culminou, depois de muitos séculos de perseguições e
discriminações, no horror do Holocausto. O Deus de Abraão, que também é o dos
cristãos, portanto, não manteve a sua promessa?
6 – Se uma pessoa não tem fé, nem a busca, mas
comete aquilo que para a Igreja é um pecado, será perdoada pelo Deus cristão?
7 – O crente crê na verdade revelada, o não
crente crê que não existe nenhum "absoluto", mas sim uma série de
verdades relativas e subjetivas. Esse modo de pensar para a Igreja é um erro ou
um pecado?
8 – O papa disse durante a sua viagem
ao Brasil que a nossa espécie também vai acabar, assim como todas
as coisas que têm um início e um fim. Mas quando a nossa espécie desaparecer, o
pensamento também desaparecerá, e ninguém mais pensará Deus. Então, nesse
ponto, Deus estará morto junto com todos os homens?
Os leitores encontrarão nestas páginas as respostas do papa
contidas na sua carta, pela qual, ainda com grande afeto e respeito, eu lhe
agradeço. No nosso jornal dessa quinta-feira, eu formularei algumas reflexões
para aprofundar os temas e levar adiante um diálogo que, eu também penso, assim
como o papa, é útil e até mesmo precioso para os leitores, crentes em Jesus
Cristo, ou em outras religiões, ou em nenhuma, mas animados pelo desejo de
conhecimento e pela boa vontade de colaborar com o bem comum.
Notas:
(1) "As respostas que os dois papas ainda
não deram"
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