O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

10 de julho de 2010

Propriedade Privada e Coletiva

(Maurício Tupinanbá)

O Pentecostes , a conversão de Paulo , a abertura aos gentios - continuam presente entre nós e são de uma profunda relevância . Esse tipo de passado não morre -continua vivendo entre nós. A Revolução Cristã é um processo que continua em curso - no desenvolvimento histórico , em nossas orações e meditações , em nossos atos e resoluções. O Reino de Deus continua em marcha , e cada momento de nossas vidas pode promover ou obstruir seu progresso. Devemos meditar nas genuínas palavras de Jesus nos Evangelhos (sem deturpações ) , Ele salvou e salvará sempre a Humanidade no plano espiritual e temporal.
Jesus não fundou nenhuma Religião , Ele continuou com o Judaísmo , agora aberto a todos sem acepção de pessoas.

A Opção Pelos Pobres e o Desapego à Propriedade.

Vários dos filósofos cínicos, como o famoso Diógenes e Crates, também haviam renunciado a suas posses. Crates, admirado e amado por ser amigo de todos e filantropo, compôs um hino à simplicidade de vida com uma deusa (Euteleia), como séculos depois São Francisco cantaria os louvores da Madonna Povertá. Mas a "Opção Preferencial pelos pobres", tão característica dos Primeiros Cristãos, era algo de novo, numa sociedade tão obcecada por dinheiro e posição social, e tinha precedentes bem judaicos. Basta ler alguns dos Salmos para verificar que já antes do Senhor Jesus os termos "os pobres" (evionim, como em ebionitas, a seita judaico-cristã) ou "os humildes" (anawim) já haviam adquirido uma conotação de santidade ou devoção: eram os pobres que se mostravam mais fiéis à religião, enquanto os ricos se deixavam seduzir pelos luxos da cidade grega ou do Império romano. O comentarista da Bíblia, Manson, diz com acerto: "No judaísmo dos últimos dois séculos A.C., o termo "pobre" era praticamente sinônimo de "santo" ou "devoto" no melhor sentido da palavra". Mas havia uma tradição no judaísmo talvez ainda mais significativa, que tem sido relembrada nos últimos anos, para reforçar a Teologia e a luta por uma Reforma Radical: era a prática do "ano sabático" (ao fim de sete anos) e do "ano do jubileu" ou libertação (sete vezes sete e portanto quase cinquenta), em que os escravos seriam libertados e a própria terra teria repouso. Numa proclamação das mais significativas, a lei mosaica ou Torá nega qualquer direito absoluto à propriedade privada: "Nenhuma terra será vendida perpetuamente, pois a terra é minha (de Deus), e entrais nela como estrangeiros e hóspedes. Para todo o território de vosso patrimônio, será permitido o direito de resgatar a terra que foi vendida" (Lev., 25,23-24). Esta é uma completa negação da arrogância proprietária do "é meu e faço disto o que bem entender" e contra a dominação tirânica das "leis do mercado", envolvendo terras , pessoas e casa própria . E tem sido invocada com justiça para apoiar a Reforma Agrária em várias partes do mundo. A proclamação do Levítico a uma fala famosa de Jocasta na tragédia As Mulheres Fenícias de Eurípides, que afirma um princípio praticamente idêntico: "Os mortais não têm posses próprias. Não passamos de guardiões da propriedade dos deuses, e quando eles querem temos de devolvê-la" (Fen., 555-7). Esse princípio era às vezes invocado por reformadores gregos para justificar práticas como a reforma agrária (ou redistribuição periódica de terras), o cancelamento de dívidas, ou mesmo a manumissão de escravos. Ora, se a terra era de Deus, e os homens não passavam de inquilinos ou "posseiros" -- de peregrinos na terra, como era a visão cristã -, considerar algo como uma "posse absoluta" ou permanente era quase uma blasfêmia , proclamando o indivíduo um deus, negando um princípio afirmado várias vezes no Velho Testamento:
"A Terra é do Senhor e tudo o que ela contém" (Salmo, 24,1).

Essa oposição ao direito de propriedade provada surge com grande clareza e radicalismo nos escritos de São Basilio de Cesaréia (329-379) e São João Crisóstomo, ambos das maiores figuras da igreja grega.
Basilio era de uma familia de proprietários ricos da Asia Menor e, seguindo o exemplo de Santo Antônio do Egito (Santo Antão) , distribuiu tudo o que possuía entre os pobres. Num famoso sermão sobre a parábola do agricultor rico em Lucas (12, l4ss.) ele se antecipa ao famoso dito de Proudhon - "a propriedade é um roubo" - dizendo que quem guarda as posses para si em vez de ajudar os necessitados não passa de um ladrão. E se alguém alega "afinal de contas isto é meu", sua resposta é: (Diga-me só, o que é seu? Onde o conseguiu e trouxe para o mundo? É como se alguém ocupasse uma cadeira de teatro e expulsasse todos os que viessem depois, julgando que é só para si que deve ser usado por todos. Os ricos são assim: ocupam o que é comum e se apropriam daquilo com base nesta posse anterior. Se cada um só tirasse algo para satisfazer suas necessidades imediatas, deixando o restante para outros que também precisam, ninguém seria rico e ninguém seria pobre. Os argumentos de São João Crisóstomo (354-407) lembram um pouco os do historiador grego Éforo sobre a estreita ligação entre propriedade privada (competitiva) e falta de harmonia social. Ele lembra que Deus=Trindade Santa fez certas necessidades básicas comuns - sol, ar, água e terra, e quanto a estas não há dissensão. Mas quando alguém tenta apropriar-se de alguma coisa, fazendo-a sua, então surge o elemento de conflito, como se a própria natureza se indignasse com nossa avidez de separar-nos tomando posse de objetos e usando estas palavras frias - "meu e teu". É aí que surgem dissensão e intranquilidade. Mas onde não há apropriação, não há luta nem dissensão."Meu" e "teu" - como na filosofia indiana da vedanta o sentimento do ego - eram algo que tinha de ser eliminado na vida espiritual: a queda do "eu" tirânico que quer ser o centro do universo, como lembrava Pascal em sua famosa frase "le moi est haíssable". Mas o grande paradoxo ou mistério da vida cristã era que, a exemplo do Senhor Jesus , a renúncia e o esvaziamento total levavam a uma imensa recompensa espiritual, à plenitude: segundo a fórmula de São Paulo, "sem ter nada e no entanto possuindo tudo" (nu habentes et omnia possidentes,
- II Cor., 6,10).

Textos Bíblicos:
“A voz do Senhor eleva-se contra a cidade - é sabedoria temer o vosso nome. Ouve, tribo: ouve, assembléia da cidade. Haverá ainda na casa do ímpio tesouros mal adquiridos e um efá diminuído e maldito? Pode-se ser inocente com balanças falsas e com um saco cheio de pesos enganosos?” (Miquéias 6,9-11) .

"Ai daquele que para si construiu esse palácio por meios desonestos, e seus salões, violando a eqüidade. Ai daquele que faz seu próximo trabalhar sem paga, e lhe recusa o salário! E daquele que diz: Vou mandar construir suntuosa morada, salões espaçosos, com largas janelas e revestimento de cedro, e pinturas de vermelho" (Jeremias 22,13-14).

“A oferenda daquele que sacrifica um bem, mal adquirido, é maculada. E os insultos dos injustos não são aceitos por Deus. O Senhor (só se dá) àqueles que o aguardam no caminho da verdade e da justiça. O Altíssimo não aprova as dádivas dos injustos, nem olha para as ofertas dos maus; a multidão dos seus sacrifícios não lhes conseguirá o perdão de seus pecados. Aquele que oferece um sacrifício arrancado do dinheiro dos pobres, é como o que degola o filho aos olhos do pai. O pão dos indigentes é a vida dos pobres; aquele que lho tira é um homicida. Quem tira de um homem o pão de seu trabalho, é como o assassino do seu próximo. O que derrama o sangue e o que usa de fraude no pagamento de um operário são irmãos: um constrói, o outro destrói. O que lhes resta senão a fadiga? Um ora, o outro maldiz; de qual ouvirá Deus a voz?” (Eclesiástico 34, 21-29).

“Vós conheceis a bondade de nosso Senhor Jesus Cristo. Sendo rico, se fez pobre por vós, a fim de vos enriquecer por sua pobreza. Aqui vos dou apenas um conselho. Isso vos convém. Há um ano fostes os primeiros, não só a iniciar esta obra, mas mesmo os primeiros a sugeri-la. Agora, pois, levai a termo a obra, para que, como houve prontidão em querer, assim também haja para a concluir, segundo as vossas posses. Quando se dá de bom coração segundo as posses (evidentemente não do que não se tem), sempre se é bem recebido. Não se trata de aliviar os outros fazendo-vos sofrer penúria, mas sim que haja igualdade entre vós. Nas atuais circunstâncias, vossa abundância supra a indigência daqueles, para que, por seu turno, a abundância deles venha a suprir a vossa indigência. Assim reinará a igualdade, como está escrito: O que colheu muito, não teve sobra; e o que pouco colheu, não teve falta (Ex 16,18)” (2a. Coríntios 8,9-15).
“Todos os fiéis viviam unidos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e os seus bens, e dividiam-nos por todos, segundo a necessidade de cada um. (...) Nem havia entre eles nenhum necessitado, porque todos os que possuíam terras e casas vendiam-nas, e traziam o preço do que tinham vendido e depositavam-no aos pés dos apóstolos. Repartia-se então a cada um deles conforme a sua necessidade" (Atos 2,44-45;4,34-35)

Comentário-Resumo sobre o pensamento dos Santos Padres

Os escritores eclesiásticos da Antigüidade cristã (sobretudo dos séculos II ao V) são considerados testemunhas muitos autorizadas da fé. As preocupações pela justiça e pelos pobres são muito evidentes e são uma rica fonte de pensamento cristão, em alguns casos de surpreendente radicalidade.

Nos Padres da Igreja aparecem várias linhas de reflexão:

a) Não se pode separar a fé da caridade com os pobres, porque Cristo pertence aos humildes e nós o confessamos verdadeiramente através de nossas obras de amor e de justiça (Clemente Romano).
A esmola é superior à virgindade e ao jejum porque, diferente destes, ela não fica num só, mas abraça os membros de Cristo. O juízo final narrado por Mateus revela que não se condenam tanto os atos de maldade como a não-solidariedade.

b) Predileção da Igreja pelos pobres: não se deve fazer distinção de pessoas, antes pelo contrário é preciso visitar os pobres antes de qualquer outro (Clemente Romano).
As viúvas, os órfãos e os pobres são as pessoas que devem ser atendidas prioritariamente (Policarpo, Pastor de Hermas).
Dever-se-ia inclusive vender as jóias e os tesouros da Igreja para atender aos pobres porque assim se tornariam ouro útil, ouro de Cristo (Ambrósio).

c) Amar os ricos é adverti-los do perigo das riquezas: antes de adorar a estátua de ouro é preferível cair na pobreza (João Crisóstomo).
As riquezas provêm da exploração do alheio (Teodoreto de Ciro).
As riquezas fecham o coração para a fraternidade e trazem outros males (João Crisóstomo).
O dinheiro é o princípio de todos os males (Zenão de Verona).
Não é o acaso que faz ricos e pobres mas a rapina e a acumulação de riquezas (João Crisóstomo).

d) Amar os pobres é libertá-lo, romper o jugo que o oprime e para isso é preciso ver o drama social em si (Ambrósio).
Não se pode praticar a caridade sem primeiro se ter praticado a Justiça (João Crisóstomo).

e) Há situações de injustiça: opressão (Basílio Magno), luxo do rico que injuria o pobre (João Crisóstomo e Ambrósio); exploração do trabalhador através do salário (João Crisóstomo); desigualdade e escravidão (Lactâncio, Basílio Magno, Gregório de Nissa). A propriedade privada é fonte de desigualdades (Astério Amaseno, Agostinho de Hipona , Doutor da Igreja).
Ladrão é o que acumula mais do eu o necessário (Basílio Magno).

Ante os males sociais, a resposta cristã deve ser regida por estes princípios:
a) Não somos donos, mas administradores dos bens (João Crisóstomo, Basílio Magno, Astério Amaseno, Leão Magno).

b) Todos os bens da criação se destinam a todos os homens (consenso bastante claro entre os padres gregos e latinos).

c) O homem tem uma natureza social, é chamado a viver em comunidade (Basílio Magno, Lactâncio, Agostinho de Hipona).

d) Todos os homens temos uma igualdade básica (Gregório Nazianzeno, Jão Crisóstomo, Ambrósio, Gregório de Nissa, Lactâncio).

e) A propriedade privada sem solidariedade nem respeito pelo destino universal de todos os bens para todos os homens é fonte de egoísmos, divisões, exploração (Didaqué, Tertuliano, Lactâncio, Basílio Magno, Gregório de Nissa, João Crisóstomo, Ambrósio, Astério Amaseno, Zenão de Verona).

f) A participação de bens é uma exigência de justiça para cumprir o destino dos bens criados. Quem não remedeia a fome é homicida (Basílio Magno); alguns ajudam um pobre mas empobrecem cem (Gregório de Nissa); quando se dá esmola se devolve ao pobre o que lhe pertence; é, portanto, obra de justiça (João Crisóstomo, Ambrósio).
A misericórdia com o pobre é justiça (Agostinho de Hipona)”.

Textos Patrísticos:

“O pão que para ti sobra é o pão do faminto. A roupa que guardas mofando é a roupa de quem está nu. Os sapatos que não usas são os sapatos dos eu andam descalços. O dinheiro que escondes é o dinheiro do pobre. As obras de caridade que não praticas são uma entre outras tantas injustiças que cometes. Quem acumula mais que o necessário pratica crime” (São Basílio Magno, Comentário a Mateus 25,31-46).

“As riquezas são injustas porque são fruto da miséria dos outros” (São Jerônimo).

“A solidariedade com o pobre é lei de Deus, não um mero conselho” (São Gregório de Nissa)

"Nabot não foi o único pobre assassinado. Todo dia um Nabot cai ao solo, todo dia um Nabot é assassinado (...) Tu não estás dando ao pobre o que é teu, mas lhe devolves o que é dele. Pois o que é comum e foi dado a todos, tu o estás usurpando sozinho. A terra pertence a todos e não apenas aos ricos. Infelizmente, são pouquíssimos os que podem usufruir a terra” (Santo Ambrósio, Comentário a 1o. Reis 21).

“Tu vais participar da Eucaristia? Então, não humilhes teu irmão. Não desprezes o faminto (...) Quê? Tu fazes memória de Cristo e desprezas o pobre? Tu não ficas horrorizado? Bebeste o sangue do Senhor e não reconheces teu irmão? Ainda que o tenhas desconhecido antes, deves reconhece-lo nesta mesa (...) Tu, que recebeste o pão da vida, não faças obra de morte” (São João Crisóstomo, Comentário a 1a. Coríntios 11,17-34).

“Tu, que revestes tua cama de prata e de ouro o teu cavalo, se te pedirem conta e explicações de tanta riqueza, que razão alegarás? Quando tu já estiverdes morto, as pessoas que passarem diante do teu palácio, vendo o tamanho e o luxo, dirão ao seu vizinho: ‘ao preço de quantas lágrimas foi edificado este palácio?, de quantos órfãos deixados nus? De quantas viúvas injustiçadas? De quantos operários espoliados de seu salário?’ Sim, nem morto escaparás das acusações” (São João Crisóstomo, Comentário ao Salmo 49).

“Nenhum de vossos bens, se fosse um mal em si mesmo, poderia ser uma criação de Deus, porque toda a Criação é boa, diz a Escritura, e não podemos depreciá-la. O mandamento do Senhor não nos compele a renunciar e desprezar a nossos bens, mas nos exorta a usá-los dignamente. (...) Se alguém se condena, não é pelo mero fato de possuir riquezas, mas por havê-las viciado com pensamentos e desejos pecaminosos e feito mal uso delas” (São Basílio Magno).

“Que vais responder ao Juiz, tu que vistes as paredes e não vistes o ser humano, que adornas luxuosamente teus cavalos e desprezas teu irmão coberto de farrapos, que deixas apodrecer o trio e não alimentas os famintos, que enterras o ouro e abandonas o oprimido?” (São Basílio Magno).

“O que tu possuis, na realidade, pertence a outro: Deus. Propriamente falando, tu não tens direito de propriedade. Se alguém te confiasse alguma coisa para que a guardasses, tu dirias que é proprietário dessa coisa? De nenhuma maneira, porque o que possuis não te pertence, só te foi confiado para guardar” (São João Crisóstomo)

A Deturpação da Mensagem Evangélica.

Com o correr dos séculos, a realidade dinâmica dessa vida espiritual, que era o verdadeiro fermento cristão, começou a declinar, minada por uma institucionalização crescente. O processo se acelerou depois de Constantino, quando a Igreja passou a adquirir mais e mais propriedades, por meio de doações generosas. Como era de esperar, entrou para as comunidades um número crescente de ricos, ou mesmo milionários, que às vezes se "convertiam" por motivos de conveniência. Com a mundanizaçao veio a corrupção, e também o cuidado em não "ofender" ricos e poderosos - um " respeito humano" que antes nunca havia tolhido a franqueza de Jesus, dos profetas , ou mesmo de filósofos gregos e romanos. Bem cedo alguns apologistas começaram a suavizar as arestas e "ditos duros" do Senhor Jesus , num capcioso "não é bem assim" . Um bom exemplo é o sermão de Clemente de Alexandria (sem dúvida um dos maiores apologistas do século II) "Quis dives salvatur" ou "A salvação do homem rico". Seu texto é o famoso episódio do jovem rico, a quem o Senhor Jesus disse: "Ainda te falta uma coisa: vende tudo o que tens e distribui (o dinheiro) entre os pobres, e terás tesouro no céu" (Mc., 10,21).
No seu desejo de mostrar que este não é um “mandamento” absoluto e sim uma opção “facultativa” para os que “querem ser perfeitos” , ele faz a citação segundo Marcos , que deve ser a versão original , mas ao chegar à frase final de Jesus muda para Mateus sem avisar ao leitor : “ Se queres ser perfeito , vai , vendes teus bens , etc .” (Quis dives ,4-5).
Fazendo esta manipulação indevida de citações bíblicas, Clemente estabeleceu um precedente de exegese que vem transviando muitos até os tempos de hoje.
Basta uma breve análise comparativa para mostrar que Mateus tende a "suavizar" certos ditos mais radicais do Senhor Jesus , mas neste caso está em minoria: Lucas, Marcos e o Evangelho segundo os Hebreus (citado por São Jerônimo) dão todos a versão mais simples e radical, que deve ser a autêntica. É a mesma tendência que levou Mateus a qualificar "bem-aventurados são os pobres de espírito" (contrastando com a versão simples e direta de Lucas e do Evangelho de Tomás).

Clemente vai mais além. Em seu desejo de justificar a propriedade privada e as grandes posses dos ricos , chega a perguntar: "Que partilha (koinonia) poderia haver entre os homens se ninguém possuísse coisa alguma ? . Ele levanta esta questão para comentar o episódio de Zaqueu, o publicano abastado que deu hospitalidade a Jesus (Lc., 19,1- 10), mas tem-se argumentado coisa semelhante até sobre o Bom Samaritano! Ele só pôde ser "bom" e caridoso porque tinha dinheiro de sobra - uma curiosa apologia de regime de desigualdade ou capitalista: é essencial que ele exista para que os ricos possam ajudar os pobres... Aristóteles também usou esse argumento capcioso para repudiar o regime de propriedade coletiva. Na verdade, Clemente termina "corrigindo" os Evangelhos, ou reinterpretando-os, alegando que o mal não está na posse das coisas em si, mas nas paixões da alma":
Portanto, o homem deve livrar-se não de suas posses, mas das paixões que não o permitem utilizá-las bem. Assim, quando o evangelho nos diz para "renunciar a tudo o que possuímos" (Lc., 13,33) ou vender tudo o que nos pertence" (Mc., 10,21), a frase deve ser entendida com relação as paixões das almas ... Em suma, todos os Discípulos e Apóstolos , a Igreja Primitiva, e Santo Antônio do Egito, e muitos outros, erraram em "tomar ao pé da letra" a exortação de Jesus Cristo. Não é de admirar que nessa aceitação da riqueza e de uma sociedade de classes a prática de dar esmolas fosse surgindo como um sucedanêo cada vez mais importante do regime original de partilha de bens e solidariedade integral. O rico cristão podia agora como que "comprar" a salvação a peso de ouro - com suas sobras (como muito depois a Igreja de Roma "venderia" indulgências de pecados). O magnífico e generoso ÁGAPE - o amor que não mede o que dá nem abre livro de contas - foi-se convertendo mais e mais na caritas formal, e daí a degradação atual da palavra "caridade", que adquiriu um mau cheiro tal que muitos pobres têm repudiado com altivez. Nos países católicos em especial , mas não só neles, popularizou-se uma versão de um dos provérbios da Bíblia: " Quem dá aos pobres empresta a Deus" (19,17 : no original " quem é generoso para os pobres" ).
É em alusão a essa frase que Clemente chega a chamar tal caridade "um belo comércio e um negócio divino" - " comprar imortalidade com dinheiro" (32,1).
No século IV, quando o cristianismo já era religião oficial e protegida, São Gregório de Nazianzo, embora insistindo no preceito radical de Cristo, oferece opções:
Joga tudo fora e possui a Deus somente, pois as riquezas que estão em tuas mãos não te pertencem. Se não desejas dar tudo, dá a maior parte; ou se nem ao menos podes abrir mão disto, faz um uso piedoso do que te é supérfluo. Mas havia exceções nessa tendência a justificar uma sociedade desigual e injusta e viver em bons termos com ela. Há um escrito do século V, talvez de um discípulo de Pelágio (o monge britânico que teve uma famosa controvérsia com Santo Agostinho sobre o livre-arbítrio), com o título Sobre a riqueza (De divitiis). Como mostrou Sainte Croix, o autor não chega a condenar a riqueza como pecado, mas afirma que leva com frequência a ele, e quanto ao problema da pobreza tem esta frase bem radical: "Livremo-nos dos ricos, e só assim não haverá mais pobres".
A interpretação capciosa dos ditos de Cristo chegou a extremos ridículos na Idade Média, sobretudo quanto à famosa frase "é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha". Foram inventados dois meios contraditórios de "salvar" os ricos. O primeiro era que a palavra grega kamelos teria sido um erro, em vez de kamilos, uma corda grossa, uma "correção" que não tem a menor base no grego do Novo Testamento nem nos manuscritos da Bíblia. O segundo, não menos absurdo e fantasioso, era que um dos portões de Jerusalém seria conhecido pelo nome de "Agulha" e assim não seria tão difícil fazer um camelo passar por ele. Essas deturpações são bem reveladoras da mentalidade de quem as fez, e são uma completa traição do espírito e Estilo de Vida cristão. Por outro lado, a exortação de Jesus ao jovem rico também tem tido uma enorme força persuasiva, principalmente para a vocação monástica. Por volta de 270, o jovem Antônio do Egito ouviu um padre repetir a frase numa igreja, e o incidente revolucionou sua vida: vendeu tudo o que possuía (e era de uma familia próspera) e foi para o deserto da Tebaida, vindo a ser o grande modelo dos santos ascetas da época. Na verdade, as grandes ordens monásticas, e depois as de frades como os franciscanos , foram movimentos repetidos de sanar a corrupção da Igreja e sua "mundanização" : a partir de São Bento de Núrcia , que cerca do ano 500 se retirou para uma caverna , fugindo da vida dissoluta das cidades , e depois para o Monte Cassino com um grupo de companheiros. Sua famosa regra , ainda hoje governa a grande Ordem Benenitina , dá importância especial a extirpar o "vício" da propriedade privada e cita várias vezes os trechos dos Atos sobre o regime "comunista" da igreja de Jerusalém : "É da maior importância erradicar este vício do mosteiro... Os monges não devem considerar seus nem mesmo seus corpos ou vontades... Que todas as coisas sejam comuns a todos, como está escrito, e que ninguém diga que alguma coisa é sua ou passe a agir com base nesta suposição (Atos, 4) ." Havia um precedente para tal no tempo de Cristo: a ordem dos essênios, cuja comunidade hoje conhecemos melhor graças aos Manuscritos do Mar Morto, e também aos chamados Terapeutas do Egito, talvez um ramo seu, que Fílon de Alexandria descreve em detalhe. Mas os próprios mosteiros, a quem a cultura ocidental deve tanto em tantas esferas, tendiam a corromper-se, como sabido. Houve reformas sucessivas - como a de Cluny e a cisterciana, que não raro se tornaram vítimas de seu próprio sucesso. Os monges começavam seguindo a vida mais árdua, conforme o preceito de laborare est orare, aliando a oração e meditação ao trabalho incansável nos campos, desbravando florestas, drenando pântanos, e com isto prestando serviços inestimáveis à agricultura do Ocidente.
Esse "milagre econômico" da agricultura enriquecia a ordem, e daí a décadas os monges estavam se tornando indolentes como uma classe privilegiada e abandonando o trabalho aos "irmãos leigos", como as classes ricas tinham seus "empregados". Um historiador cristão das ordens monásticas, Herbert Workman, conclui com acerto que este processo de corrupção se repetiu várias vezes, por motivos semelhantes: "A história do movimento monástico no Ocidente é na verdade a repetição constante do mesmo tema, do mesmo ideal sendo corrompido de modo inevitável pelo próprio sucesso". O contraste entre os primeiros monges, magros, ágeis e ascéticos, e muitos dos que vêm depois - bem nutridos, obesos e amigos do conforto e do vinho (sem falar de seus deslizes sexuais), satirizados nos contos de Chaucer ou no Decameron de Boccaccio ou no Elogio da Loucura de Erasmo, já é bem conhecido. É claro que o perigo de corrupção pelo mundo era ainda maior no chamado "clero secular" (diferente do "regular" - monges e frades). E havia uma diferença marcante entre o humilde padre de alguma paróquia rural, ainda fiel aos preceitos de Cristo, e partilhando seus escassos recursos com os pobres, e os bispos e arcebispos: os simples "supervisores" do tempo de São Paulo e Santo Inácio se converteram muitas vezes em "príncipes da Igreja", vestindo-se com pompa, banqueteando-se como qualquer barão e habitando palácios. O gesto notável de Dom Helder Câmara, abandonando o "palácio do bispo" por uma casa modesta, brilhou justamente porque foi uma exceção. Nos princípios do século XIII, uma época ainda de grande devoção, o jovem Francisco de Assis causou um enorme choque renunciando à riqueza da casa paterna e convertendo-se no poverello. Pode-se imaginar o que pensaram dele e dos companheiros os cardeais ricos e suntuosos de Roma quando foi lá em 1209 pedir a aprovação do papa Inocêncio III para a regra de sua nova ordem. Mais de um século depois, em 1317, o papa João XXII dissolveu o que se pode chamar "a esquerda franciscana -- o grupo dos espirituais , que insistia em viver em absoluta pobreza como seu fundador São Francisco. E foi mais além: condenou como herética a tese de que Jesus e seus discípulos haviam vivido em completa pobreza, que é a verdade histórica. No ano seguinte o papa fez queimar na fogueira quatro franciscanos espirituais que sustentavam essa tese. Já há séculos que o bispo de Roma governava um vasto território, e se transformara num príncipe italiano, às vezes comandando exércitos em campo como Júlio II (150-13). (Ver Cap. 8). Sem dúvida o ascetismo monástico levava a excessos, aliás condenados em geral pelos líderes espirituais mais sábios, e podia produzir regimes os mais tirânicos e dos menos sadios, que em certos casos matavam e envelheciam mulheres e homens. Se havia um desenvolvimento desequilibrado e muito repressivo, era quase inevitável que desencadeasse depois o excesso oposto - indolência, falta de disciplina e queda num luxo ocioso. Na crise atual da religião, o monasticismo está procurando novos rumos, e vamos esperar que encontre um novo equilíbrio, mais flexível e sadio. A condenação cristã do luxo está bem ilustrada numa história divertida e genuína que se conta do famoso São Bernardo de Clairvaux, que em 1113 se tornou um dos líderes da Ordem Cisterciana. Depois de fazer uma longa viagem de uma semana, ele foi criticado por usar uma manta ricamente trabalhada em sua sela - típica dos vaidosos nobres da época. São Bernardo explicou que, absorvido em suas preces e meditações, nem havia olhado a sela (um monge budista, treinado em cultivar a atenção, não teria tal lapso!). Descobriu-se depois que o cavalo havia sido emprestado por um tio de Bernardo, monge beneditino de Cluny: sua ordem, que havia liderado a famosa reforma da Igreja no século XI (que deu o papa Gregório VII), era em geral composta de filhos de famílias aristocráticas e agora já havia resvalado para hábitos de luxo e requinte (a mesa do abade, por exemplo, "fazia as honras" a visitas de nobres, e seus banquetes podiam comparar-se aos de Lúculo ou do homem rico da parábola!). Assim, a crítica original a São Bernardo terminou voltando-se contra a ordem "degenerada" de Cluny. Foi o próprio santo que num de seus escritos condenou os hábitos de luxo dos monges do "hábito negro" de Cluny: Não posso imaginar como pode ter surgido entre monges tal intemperança em comida e bebida, vestuário e roupa de cama, equipagem e prédios... Frugalidade é agora considerada mesquinhez; a sobriedade é criticada como austera demais; e o silêncio melancolia. Enquanto isso, dissipação é olhada como coisa discreta; roupas efeminadas e fina equipagem como honrosas... Na mesa os pratos se seguem um após outro, e a arte dos cozinheiros é tão grande que mesmo depois de uma série de pratos o conviva é sempre capaz de comer mais. A variedade faz desaparecer o sentimento de saciedade e o estômago fica cheio sem que as pessoas o percebam .
Pelo exposto a Propriedade Coletiva tanto Rural como Urbana é a indicada pelo Senhor Jesus , a Igreja Primitiva e os Testemunhos dos Santos Padres da Igreja Cristã , é dever de todos construir o Reino de Deus , o Paraíso Terrestre mesmo no sofrimento , tarefa esta que Deus nos confiou através de Seu Filho Jesus Cristo e Ele Ressuscitado está no meio de nós ajudando a todos que são seus Discípulos e Discípulas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário