A Teologia da Libertação, a mais original contribuição da
teologia latino-americana, possui uma ambigüidade epistemológica acerca do
fundamento, ou seja: colocou o pobre no lugar de Cristo. Isso aconteceu através
de uma confusão e de um nevoeiro epistemológico, uma indecisão a respeito do
“princípio regente” que deslizou para a inversão e instrumentalizou a fé e
Deus. Este equívoco levou a conseqüências graves: esvaziamento da identidade,
sociologia e ideologia no lugar de teologia, tagarelice ad nauseam, percepção
da Igreja como uma ONG etc. A Teologia da Libertação cedeu ao espírito da
modernidade, absorveu da modernidade o seu antropocentrismo expressando-o em
termos de pauperocentrismo. Conseqüências últimas: a libertação pode devorar a
teologia, e “o pobre não agüentará por muito tempo nas costas o edifício de uma
teologia que o escolheu por base: cederá antes de ser esmagado por ela, como a
história não cansa de mostrar” (p.1022).
Este é um “rude resumo” do artigo de fr. Clodovis Boff,
conhecido por sua atenção e por seus méritos nas questões de método em Teologia
da Libertação (TdL). É autoridade “desde dentro”, que escreve um artigo crítico
e, portanto, autocrítico. Afirmar que a TdL colocou o pobre no lugar de Deus e,
sobretudo, Deus no lugar do pobre, poderia soar como uma santa e sábia
ambigüidade cristã. Mas Clodovis afirma que o pobre, desta forma, substitui
Deus e a ambigüidade é funesta.
Publicado nesta prestigiosa Revista Eclesiástica Brasileira,
em número especial dedicado ao evento e ao documento de Aparecida – REB n.67,
de outubro 2007, p.1001-1022 – Clodovis faz uma confrontação do caminho
“desviante” da Teologia da Libertação com a “surpresa do Espírito” e o “milagre
de Nossa Senhora (Aparecida)” que é o documento de Aparecida: correta relação
entre fé e ação libertadora, não do pobre a Cristo, mas de Cristo ao pobre.
Evidentemente, os dois parágrafos acima não fazem justiça
aos matizes cuidadosos de um teólogo tão rigoroso e exigente em termos de
epistemologia e de método. É necessário lê-lo com atenção para ser justo. No
entanto, parece-nos que o artigo de Clodovis, ainda assim, no desenrolar do
artigo, tem afirmações ex abrupto, sem aprofundamentos. Talvez seja de alguém
que já advertiu também ad nauseam anteriormente, em seus textos mestres, sobre
o problema, e aqui atalha caminhos. Resume para a sua intenção: acentuar o dom
de Aparecida para a arquitetura e a engenharia da TdL. Não faltam, é claro,
afirmações de que a TdL é ou foi oportuna, importante, mas “a prova dos frutos
mostra que necessita de uma oportuna pulverização crítico-epistemológica e,
mais ainda, de adubar suas raízes”(p.1007). Por isso Clodovis aposta tanto no
documento de Aparecida – evidentemente por amor à TdL que ele mesmo ajudou a
parir e a criar.
Para compreender melhor a crítica sem açúcar de Clodovis,
convém cotejar este artigo contundente com outros textos dele no passado
recente. As suas duas obras maiores sobre método[1] podem ser encontradas de
forma mais resumidas sem perda de rigor nos seus artigos: Como vejo a teologia
latino-americana trinta anos depois[2], que tem caráter autobiográfico, e
Retorno à Arché da Teologia[3]. Além destes dois elucidativos textos, pode ser
útil o seu verbete Epistemología y Metodología de la Teología de la
Liberación[4]. Somente assim se p0de levar adiante um debate objetivo e fecundo
a partir de uma provocação sem rodeios a colegas e novas gerações de teólogos e
teólogas latino-americanos.
No artigo em debate, Clodovis menciona autores como Sobrino
e Rahner de forma curta e cortante, mas deve-se fazer a mesma justiça a estes
dois grandes teólogos, considerando suas elaborações teológicas de forma
estrutural e completa. Sobre Rahner, Clodovis se atém à “vulgata rahneriana que
subjaz à TdL”(p.1007), em que a teologia, no contexto da “virada
antropológica”, fica reduzida a uma “hermenêutica da existência humana”,
repercutindo por aqui como hermenêutica da existência pobre. Na verdade, Rahner
foi considerado “o engenheiro da teologia católica do século XX” (J.Moltmann).
Clodovis reclama, em seus textos, o respeito à fonte originária da fé e da
teologia, que é o “Mistério” transcendental de Deus. E o faz citando Rahner, o
teólogo que insistiu no Mistério não manipulável de Deus que, no entanto – aqui
a originalidade espantosa do cristianismo – habita o humano e o mundo. Quanto a
Sobrino, podemos parodiar Moltmann: é o engenheiro da mais criativa e madura
cristologia entre nós, inclusive depois de considerar a Notificação da
Congregação para a Doutrina da Fé.
Com a atual facilidade de comunicação, teólogos e teólogas,
Brasil afora, se perguntaram uns aos outros como interpretar adequadamente o
artigo de Clodovis. Não por esprit de corps, mas como trabalho e
responsabilidade comum, como comunidade teológica, abrimos em muitas mãos este
debate. Somos membros da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião, e/ou da
Equipe de Reflexão Teológica da Conferência dos Religiosos do Brasil, e/ou da
Ameríndia, rede latino-americana de reflexão teológica, diversos de nós
presentes em Aparecida. Diante de uma provocação tão “de repente”, debater vai
fazer bem a todos, sobretudo à verdade e ao Povo de Deus.
1. Razões indiscutíveis: a fé
como princípio referente, mas ela se constitui de diversos aspectos e
manifestações.
Convém dizer o óbvio ululante, que de tão óbvio, como lembra
Clodovis, pode ser um pressuposto esquecido no fragor das batalhas de
libertação: numa dialética de fé e prática cristã, a fé é o princípio
referente, enquanto outros princípios são “referidos”, ganham da fé a sua
autoridade. Não conseguimos encontrar e nem imaginar que teólogos da libertação
tenham escrito ou pensado diferentemente. Clodovis põe a salvo os “pais” da
TdL, nossos mestres. Nós [quem? Parágrafo acima] somos a segunda geração
pós-conciliar na teologia latino-americana. Ela buscou um método que realmente
refletisse o rosto e a alma do cristianismo latino-americano e não fosse mero
“reflexo da reflexão” européia. Sem pretensões de originalidade narcisista,
ainda que com impulsos de adolescência, mas em obediência a Medellín: buscando
fidelidade pós-conciliar num continente com tremendo anseio de transformação
onde a fé cristã é conatural à se tornou cultura popular.
Clodovis, em outros textos, refere-se à sua experiência com
alunos, portanto com teólogos em formação e suas peculiaridades, que nós também
conhecemos. Sabemos também de sua grande experiência com militância de fé e
política e com lideranças de pastoral popular e de massa, que frequentemente
transformam a teologia em “ferramenta de luta” e slogans. E toda a teologia
arrisca ser julgada pelo sucesso dos slogans, pela impaciência da sede de
justiça, por um lado, e, por outro lado, pelo cinismo de quem não leu e não
gostou porque aberta ou disfarçadamente tem posição oposta. Tudo isso é
realmente risco de possíveis efeitos colaterais de um caminho novo. No entanto,
de longe – é o nosso protesto – isso não diz respeito à produção propriamente
teológica no espírito e no método da TdL. Pode-se comprovar com escritos
recentíssimos, de grande qualidade, como, apenas a título de exemplo, o livro
Temas de Teologia Latino-americana[5], com artigos que incidem exatamente sobre
cristologia e eclesiologia da TdL e sua epistemologia. É bom lembrar também que
interpretações redutivas não são privilégio da TdL, mas acompanham como
tentação, hybris, todo e qualquer discurso humano a respeito do Mistério
Divino. A tradição da Teologia apofática, por um lado e o recurso à analogia,
por outro, mostram a fragilidade da palavra sobre a Palavra. (interpretação
redutiva é só uma tentação? Se sim, seria possível um discurso interpretativo –
de qualquer genro, e não só da teologia – que não fosse redutivo. Mas, a
redução é a condição inescapável de toda teoria ou interpretação. O problema
não está na redução ou não, mas a “qualidade” da redução e no reconhecimento ou
não de que a teoria/interpretação, por ser redutiva, não é total e nem
definitiva.)
Não só a fé, mas a espiritualidade tem sido preocupação
recorrente, busca e refrigério de teólogos e teólogas da libertação. Há uma
contínua produção, desde os primeiros e os grandes pais da TdL até o presente,
em torno de uma espiritualidade sólida, fontal. Que esta espiritualidade, vida
no Espírito e segundo o Espírito, esteja indissoluvelmente ligada ao seguimento
de Cristo encontrado no lugar privilegiado do pobre, ainda vamos examinar.
No entanto, Clodovis elegeu com toda a energia intelectual,
seguindo uma admirável tradição repetida reiteradamente em seus textos, que
somente o intellectus fidei que se voltado para o Evento da Revelação do
Mistério é ato de acolhimento e compreensão da Revelação, e, portanto,
princípio epistemológico do edifício teológico. Bate-se com Sobrino negando
esta excelência ao que Sobrino chama de intellectus amoris ou também
intellectus justitiae, intellectus misericordiae, e que desemboca no “princípio
misericórdia” da existência cristã e de uma teologia realmente cristã[6]. Ora,
que o amor ou o coração vê e compreende o que a inteligência não consegue
compreender batendo-se em aporias, isso também tem longa e respeitável tradição
na Igreja. O que Sobrino acrescenta, seguindo Gutiérrez, é a sua dimensão de
práxis: verum faciendum: quem faz a vontade e não quem diz “Senhor” e senta-se
e come com o Senhor, realmente chega ao verdadeiro conhecimento e à verdade da
salvação. A verdade como fidelidade prática é atestada recorrentemente pela
Escritura, como ainda veremos.
A Revelação e a fé, como anota Clodovis, se manifestam em
linguagem: palavra de Revelação que se reconhece e se acolhe, e palavra em que
a fé se expressa. Não somente a radicalidade fiducial, última e abismsal, da
fides qua creditur¸ mas a fides quae creditur, fé com conteúdo, acontecimento e
palavra. Ora esse conteúdo e essa linguagem são exemplificadas por Jesus ao
doutor que queria saber como conseguir a “vida eterna”, a vida verdadeira, a
salvação: Jesus conta a sua pequena pérola narrativa do Samaritano que se
compadeceu do caído, arriscou com ele a impureza que os sacerdotes não se
permitiram, aproximando-se, tendo compaixão, usando de misericórdia. Só isso.
Não é ainda teologia ocidental, mas é um princípio de toda real teologia
cristã. Aqui o princípio lógico e grande da salvação está “dentro”, não “acima”
do princípio existencial e humilde da libertação. Parece, então, ser necessário
reconhecer uma circularidade entre salvação e libertação. Não basta, portanto,
como o faz Clodovis dizer que “para se obter realmente a libertação é preciso
mais que apenas a libertação: é preciso – digamo-lo sem medo - Salvação!”
Somente a Transcendência redime a imanência”(p.1008). Parodiando Kant, poderia
reconhecer-se o vazio da transcendência sem a imanência. Mas não é preciso
chegar a tanto. Basta ler 1 Jo 4,20: quem diz amar a Deus a quem não vê, mas
não ama ao irmão a quem vê, é um mentiroso! Jesus, com sua historinha do
Samaritano e do caído, ensinou ao doutor da Lei que, para se obter realmente a
Salvação, é preciso mais que apenas a Salvação: é preciso – digamo-lo sem medo
– libertação! Somente na humilde imanência se dá a transcendência. (acho que
seria bom explicar melhor o que se entende por “se dá a transcendência”. Eu
penso que a metáfora de “baixo” e “cima” para se referir a imanência e
transcendência, pois é muito espacial e estático e não dá conta do mistério da
manifestação de Deus (transcendente) no interior da história quando o “amor se
realiza” entre os irmãos/pobres. Como o parágrafo lida com a parábola do
samaritano e 1 Jo, eu penso que deveria insistir que na abertura ao
necessitado, no amor-solidário, o Deus se faz presente, como diz 1 Jo 4, 12:
“Ninguém jamais contemplou a Deus. Se nos amarmos uns aos outros, Deus
permanece em nós e seu amor é realizado.” Eu penso que uma outra forma de
expressar a sua idéia de “somente na humilde imanência se dá a transcendência”
poderia ser a noção de Deus se fazendo presente no interior da vida humana, ou
a transcendência que se revela no interior da imanência, aceitando se “reduzir”
(Fil 2,6) às condições do mundo humano para que possa se conhecido por seres
humanos, sem deixar de ser transcendente, isto é, uma redução necessária para
ser conhecido e experienciado pela humanidade (a revelação), mas que se sabe
que não se reduz à essa redução, é transcendência irredutível. Essa dialética
da imanência-transcendência reforçaria também a dialética da redução teológica
e o mistério de Deus. (aliás, eu li nas férias um livro muito interessante de
uma jovem teóloga latina nos Estados Unidos sobre o tema da transcendência de
Deus: RIVERA, Mayra. The Touch of Transcendence. A Postcolonial Theology of
God. Louisville: Westminster Kohn Knox Press, 2007.)
[Desenvolver o tema do amor condescendente]
O destino da linguagem, exatamente quando é relevante – e
quanto mais relevante - é sua utilização sem possibilidade de controle em todos
os seus percursos. A filosofia da existência, por exemplo, deu em curiosas
formas de terapia. Assim, também em teologia: na produção de “vulgatas”
militantes falou-se da Bíblia como “ferramenta” e da “construção” do Reino de
Deus: uma linguagem de sabor “neopelagiano”, quando isolada de um nível mais
profundo de encontro e de graça, mas que atualmente pode ser considerada
superada por expressões menos “fabricadas” e mais justas. Por exemplo: leitura
orante da Palavra de Deus, dom e responsabilidade do Reino de Deus.No entanto,
mesmo com sua fragilidade, a expressão em sua totalidade - “construir o Reino
ou Reinado de Deus” - mantém uma relacionalidade que rompe a tentação de
construir apenas a si mesmo ou cristalizar instituições centradas no próprio
ego. Mesmo a compreensão da Bíblia como ferramenta, não deixa de ser um valor
bíblico, na medida em que é útil (ôphélimos) para o ensino e educação na
justiça (cf. 2 Tm 3,16). Como texto, possui uma reserva de sentido sempre maior
do que sua leitura paradigmática. (Penso que esta parte
destacada poderia ser substituída por uma reflexão sobre a “construção de uma
sociedade mais justa, mais livre”, que se busca e constrói iluminado pelo
horizonte do RD e é um sinal da presença do RD entre nós (a transcendência de
Deus no interior da história), o RD que só será pleno e definitivo na parusia)
2. Fé e círculos hermenêuticos ou pericoréticos.
Clodovis é um grande apaixonado pelo “único fundamento” que
dá identidade cristã à teologia. Se não for assim, resvala-se na ambigüidade.
Mas Cristo – e Deus nele – se dá com uma pluralidade de acessos, e uma vez
encontrado, remete para além de si: Cristo é encruzilhada, chegada de muitos
caminhos e partida para muitas presenças: o Pai, o Espírito, os irmãos, a
comunidade, as criaturas, o vasto mundo... e privilegiadamente o pobre, como
ainda queremos acentuar. A identidade cristã é aberta, fundada e marcada por
alteridades. E isso nos faz dançar numa complexa dialética circular destas
alteridades. Para nossa surpresa, Cristo nos conduz à pluralidade na simbólica
trinitária da imagem cristã de Deus: cada pessoa remete à outra, pois é desde a
outra, para a outra – é pericorese. Ora, a pericorese é uma boa imagem do
círculo hermenêutico da teologia cristã. Que isso corra riscos de resvalões, de
tatear flutuando a meio caminho, enfim de ambigüidades e falta de clareza,
parecem-nos riscos menores do que uma identidade clara e circunscrita sobre um
princípio único ao qual tudo se reduz, que pode esconder em sua sombra um
fundamentalismo afinal perigoso.
Clodovis conhece bem e cita com propriedade em seus textos
grandes nomes da hermenêutica do século XX: Heidegger, Althusser, Ricoeur,
Foucault, Rorty. Lembra com freqüência o trabalho dialético, os princípios em
pólos e sua relação recíproca, mas nega com todo cuidado a simetria dos pólos e
dos princípios, insistindo sempre no princípio “regente” mesmo quando modificado
ou enriquecido pelos princípios “de segunda ordem” que retornam sobre o pólo
regente. Ilustra reiteradamente com Aristóteles. O filósofo grego, em sua
Metafísica, conduz não só a lógica, mas também a ontologia, ao Unum princeps
citando sintomaticamente a Ilíada de Homero e seu personagem Agamenon ao reunir
os chefes para a guerra contra Tróia: “Que um só comande sobre nós”.
Moltmann[7], lembrando o Monoteísmo como problema político de Erik Peterson[8],
nos deixa inquietos com este procedimento.
Talvez por necessidade de afirmação e de redução ao
fundamento único Clodovis não dá especial significado ao círculo hermenêutico.
Ora, o círculo hermenêutico tem algumas vantagens sem se reduzir a uma
dialética de pólos simétricos e menos ainda a um dualismo: pode-se partir de
qualquer ponto chegar bem a outro ponto compreendendo cada ponto em seu real e
devido lugar. A teologia trinitária é uma boa demonstração. Nela, o primeiro
lógico é o Pai, mas existencialmente é o Filho que revelou historicamente,
desde sua humanidade, quem seja realmente Deus Trindade. Por isso o triênio
para o Ano Jubilar começou pelo Filho, seguindo o axioma metodológico de
Boaventura: Incipiendum est a médio quod est Christus. Assim também quanto à
condição humana e divina de Cristo, e quanto aos diversos lugares teológicos em
que se revela. Seguimos aqui uma indicação de grande sensibilidade bíblica de
Christian Duquoc: em primeiro lugar não se deve perguntar pela essência de
Deus, mas pelo lugar desde onde ele se revela! Assim, pode-se partir de Cristo
para chegar ao pobre, mas pode-se partir do pobre para chegar a Cristo – e à
compreensão realmente cristã de Deus. Há riscos: não nos parece ser verdadeira
a afirmação de Clodovis de que de Cristo sempre se chega ao pobre mas do pobre
nem sempre se chega a Cristo. Se não se chega a um ponto é porque não se
compreendeu bem também o outro, e isso vale para ambos: uma má compreensão de
Cristo não leva necessariamente para o pobre – e temos exemplos constrangedores
- enquanto uma compreensão real do pobre nos remete sempre para o Mistério
feito carne e dor de Cristo.
Clodovis prefere uma epistemologia e uma metodologia
linearmente lógicas, de corte aristotélico e escolástico, para manter as rédeas
através da clareza. Uma hermenêutica circular complica (não seria melhor
“complexifica”) e parece que banaliza. Para complicar ainda mais: a imagem mais
contemporânea desta circularidade foi a “rede” e depois a “teia”. Em tudo isso
não há um “centro” ou fundamento único ao qual se inclinam os demais pontos,
mas todo lugar é centro (mesmo em uma rede ou teia, há pontos mais fundamentais
do que outros, por isso, nem tudo é centro – pois isto negaria o próprio
conceito e o sistema seria indiferenciado, isto é, não formaria um sistema–,
mas há vários centros) e, sobretudo, ex-cêntrico: remete para além de si, até
Deus. Do ponto de vista cristão, tal imagem pode ser surpreendentemente bem
vinda: o Deus bíblico, cristão, não é narcisista, não é ídolo, não precisa
propriamente de nossos aplausos ainda; ama gratuitamente e que se dê se dá a
paciência de nos escutar e socorrer com o Espírito a nossa fraqueza, de vez que
“não sabemos o que pedir como convém” (cf. Rm 8,26). Remete, assim, para além
de si. Que, no nosso caso, é “para aquém”: A transcendência de Deus consiste em
transcender-se em direção a nós, às criaturas e às mais frágeis, uma
transcendência de transcondescendência. Modificando um pouco os termos polares
de Santo Ireneu: Gloria hominis visio Dei, gloria autem Dei homo vivens!
Por isso é tão preciosa a categoria circular de Reino de
Deus, que reúne Deus e além-de-Deus: a criação, a humanidade, e a prova máxima
de inclusão: as vítimas, os frágeis, os pobres. Se o Reino está à disposição
dos pobres, estamos todos salvos. Se Deus se faz carne no lugar do mais pobre,
então estamos todos assumidos. Mas a categoria de Reino de Deus como categoria
teológica necessária para que a teologia seja cristã, categoria holística (Uma
reflexão: o conceito de holístico se refere mais à totalidade, enquanto que
holograma/hologramático usado por teóricos de sistemas complexos faz referência
explícita à totalidade, mas também às partes: “as partes estão no todo e o todo
está nas partes”. Eu sei que não dá para desenvolver este tipo de reflexão
neste artigo, mas penso que o conceito de holograma pode ser mais interessante
para falar do RD porque a totalidade do RD também está presente nos espaçoes e
relações micro. Por ex., no caso do bom samaritano, podemos dizer, usando a
noção de holograma, que o todo do RD, entendido como o reinado de Deus, no
sentido macro, já está presente nesse pequeno âmbito das relações de
solidariedade, mesmo que ela não seja a totalidade do RD.) , saída da boca de
Jesus, sua epistemologia por excelência, parece não ter peso suficiente na
metodologia de Clodovis. Tudo o que é recíproco, redondo, com a complexidade da
multirreferencialidade, incomoda uma construção analítica com lógica
extremamente linear: com um primeiro, um segundo - teologia de primeira ordem,
teologia de segunda ordem, teologia como tal e teologia particular. Isso
francamente, do ponto de vista epistemológico, não nos parece adequado.
Uma dificuldade essencial do pensamento de Clodovis é a não
consideração dos pressupostos atuantes em todas as teologias. De fato, a
chamada “Teologia 1” ou “Momento 1” da Teologia, é tão pouco isenta de
pressupostos quanto outra Teologia qualquer. As constantes referências a
Aristóteles mostram sua filiação epistemológica, supondo, quem sabe numa
hiperinterpretação do realismo estagirita, que os conceitos expressem a
realidade de forma insuperável. Ora, isso seria visio beatifica, e não
corresponde à condição peregrina do conhecer que se dá como em enigmas (cf. 1
Cor 13,12). Deve-se lembrar que mesmo os maiores teólogos escolásticos nunca
tiveram a presunção de serem a Sacra Doctrina ou a Theologia. Pelos contrário,
foi no debate das Escolas que a própria Igreja se orientou.[9]
Numa hierarquização adequada o que para Clodovis é Teologia
1 ou Momento 1 agora deve ser entendido como Fé. Em sua tese de doutorado esse
conceito fazia um certo sentido enquanto substituto para a Teologia clássica ou
mesmo escolástica ou européia. No entanto, pensar que exista a Teologia que
funcione como gênero “teologia de primeira ordem” em relação a outras “de
segunda ordem” que seria espécie[10] é confundir o gênero de discurso
religioso, chamado Teologia, uma abstração das muitas elaborações das razões da
fé. Há uma Teologia no Novo Testamento, uma Teologia patrística, uma teologia
oriental, uma Teologia Ocidental; da Idade Média conhecemos uma Teologia
Dominicana, Franciscana, e assim por diante; na Modernidade existem uma Escola
de Tübingen e uma Escola Romana, com uma entrada da Teologia Jesuítica,
por exemplo. O que dificulta e muda a situação atual, é o pluralismo geográfico
e cultural da Teologia, além das opções ideológicas em jogo. É inegável um
certo compromisso político de fundo em todas as teologias vigentes, mesmo as
mais oficiais. A tarefa da boa teologia não está na isenção e presunção de uma
neutralidade, de fato utópicas, mas é submeter-se à crítica da realidade e da
fé. Assim, tanto para a TdL, como qualquer outra Teologia, seria um anacronismo
manter as óticas dos tempos da guerra fria e do socialismo soviético. Teologia,
portanto, seja T1 ou T2 ou T3, é sempre uma teologia e nunca a Teologia. (eu
penso que vale a pena manter esses 2 parágrafos destacados em verde. Uma
sugestão: ao falar de vários tipos de teologia, você deu ênfase às divisões de
tempo e lugar, mas não fez nenhuma referência às teologias (substantivas) que
se diferenciam pela perspectiva, por ex., a teologia da cruz de Lutero, que é o
caso também da própria TL.)
A questão do círculo hermenêutico, da pericorese do Reino de
Deus, dos lugares teológicos da realidade viva, no caso da Teologia da Libertação,
faz com que a dialética, as reciprocidades, incluam também conflitos e
“interesses” (Foucault), sobretudo, lembrando uma enfática expressão de
Clodovis em nossos círculos de debates, “os altos interesses dos pobres”. É que
teologia não é só oração, poesia, “teologia bonita” como a de Urs Von
Balthasar. Ele é um perfeito dialético, desenvolveu a teologia hegeliana do
Cristo como universal concreto de maneira gloriosa inclusive e principalmente
na cruz. Encontrou uma inclusão da realidade no sistema de sua Herrlichkeit com
tal poesia e coerência que não se consegue colocar uma agulha entre as pedras.
Não lhe falta a descida aos infernos na meditação dos Três Dias. E tudo se
resolve numa imensa, e abstrata, mística pascal. A alteridade das multidões de
pobres de carne e osso parece um resto negligenciável em teologia, sem
relevância para compreender a Revelação e a Salvação.. Diferentemente, o
“concreto” na TdL não se consegue sistematizar: o Cristo vivo hoje é justamente
o que está expulso do sistema, que vive na carne a fé e a esperança no Pai e
seu tremendo mistério – é o Cristo identificado com o pobre de hoje, a vítima,
o “esmagado” (sentido etimológico do “pequenino” de Mt 25). A Europa está com
um surto de “teologia da beleza” de inspiração balthasariana, que parece
acompanhar a vida como estética, inclusive uma estética eclesiástica
correspondente (com retorno lento e seguro das “lingeries litúrgicas” – Thomas
Merton). Assim, o sistema em que tudo fica resolvido ao invés de revelar, na
verdade “encobre” a realidade cruel da favelização crescente do sul do mundo
onde Cristo está identificado com os crucificados.
Mas se o Verbo realmente se fez carne frágil e mortal, é
esta (este) o lugar teológico para compreender Deus. Paulo VI encerrou o
Concílio com uma afirmação retomada em seu discurso de Medellín, 1968, e
assumida na introdução do documento: “Para conhecer Deus é necessário conhecer
o homem”. Supõe-se que sejam homens e mulheres de carne e osso, reais em suas
alegrias e angustias, “especialmente os pobres e sofredores”, segundo a
abertura de GS. Carne humana não é só subjetividade: é alteridade plural que
provoca sacerdotes e samaritanos ao longo dos encontros e desencontros do
caminho. A abertura do Concílio sofre agora a desconfiança de que por ele
entrou o antropocentrismo da modernidade no pensamento da Igreja,
antropocentrismo que na verdade esqueceu os pobres. Estes, hoje, são vítimas da
modernidade e a atenção ao seu “potencial evangelizador” é um teste de
fidelidade ao Concílio. A TdL tem hoje a melhor palavra de aggiornamento
querido pelo Concílio, que é também palavra de incômoda profecia em confronto
com a modernidade.
3. O fantasma no porão
Quando acena para a virada antropológica de Rahner, Clodovis
parece desconfiar da dissolução do transcendente no imanente, o que, para o
esforço de superação feito pela Nouvelle Théologie e para o próprio Rahner se
tratava de superar o dualismo e a superposição “natural-sobrenatural”,
natureza-graça, etc. sem cair no antropocentrismo da modernidade. Pelo
contrário, sabemos sobejamente que o “Mistério” sempre transcendente é
categoria central da teologia de Rahner, e que sua antropologia poderia ser
resumida em “Ouvinte da Palavra”, em seqüência à sua tese sobre o Espírito no
Mundo. É claro que Clodovis sabe disso, mas no artigo aqui em debate ele só
realça as sombras da modernidade e do esforço de responder honestamente a ela.
A primeira grande vítima teológica na área católica foi, como se sabe, Alfred
Loisy. Querendo se confrontar com a teologia liberal, buscou mostrar que, se a
Igreja não é propriamente o Reino de Deus, no entanto, é mediação necessária
para o Reino. (não está muito claro.) A pedrada, no entanto, veio do lado da
Igreja, que desencadeou o anti-modernismo e “reduziu a cemitério o pensamento
católico”. Foi necessário o Concílio, depois da morte amargurada de Loisy, para
encontrar o equilíbrio: “Jesus iniciou sua Igreja pregando a boa nova, isto é,
o advento do Reino de Deus” (LG 5). Graças, inclusive, a Rahner e à Nouvelle
Théologie, como se desprende do diário de Congar.
A contraposição entre Reinado de Deus, Igreja e Cristo,
ignora o significado bíblico da tradição do Reinado. Ao menos segundo os
sinóticos, toda existência de Jesus gira em torno do anúncio e prática do
Reinado, que deve ser entendido como sendo o do Pai. Daí também a íntima
relacionalidade entre Jesus e o Pai. Quando Orígenes identifica Jesus como a
“autobasiléia thou theou”, exprime essa relacionalidade mediadora. Jesus
proclama o Reinado e vincula sua pessoa com seu advento, como deixa clara a
ceia de despedida. O Reinado, no entanto, é para os pobres como as pesquisas
exegéticas têm mostrado desde o final do século XIX e ao longo de todo século
XX em diferentes abordagens, desde os estudos histórico-críticos passando pelos
sociológicos e antropológicos das antigas civilizações do Mediterrâneo e do
Crescente Fértil.
Esta longa volta é para chegar a este ponto: depois das
intervenções da Congregação para a Doutrina da Fé da década de oitenta, houve
uma conspiração para reduzir o pensamento teológico da América Latina a um novo
cemitério: acabou, está morta, etc. Ironicamente a Notificação a Sobrino chega
no centenário da Pascendi de Pio X. É impressionante, e Libânio anotou num
parágrafo incisivo de seu artigo na mesma REB do nosso artigo em questão que,
tendo falado de tudo, o documento passa em absoluto silêncio a teologia
latino-americana e a sua contribuição, mesmo que ela exista em muita substância
do documento (p839). Basta lembrar que “discípulos e missionários” são duas
palavras chaves da cristologia de Sobrino: “seguimento e missão”. Porque a
teologia latino-americana incomoda tanto? Porque os bispos têm tanto pudor a
respeito deste ministério na Igreja? “Como vencer o oceano se é livre a
navegação, mas proibido fazer barcos?” - reclamava o poeta Carlos Drumond[11].
É que a “virada” do pensamento teológico da América Latina é
ainda mais profunda e traumatizante. Por isso se falou de “ruptura
epistemológica” inclusive com a metodologia da Europa central, tão coroada pelo
Concílio. Apesar da riqueza e herança recebida de além-mar, mesmo as mais
próximas como a de Metz, com sua teologia como memoria passionis, ou de
Moltmann com Deus Crucificado, aqui há um lugar teológico incontornável para
uma teologia minimamente honesta: a realidade grande, clamorosa, atual e não só
memória, dos pobres num mundo em que a pobreza não é simplesmente natural, mas
social, produzida por relações e estruturas sociais injustas, portanto pobres
como vítimas de um sistema social, aos quais se juntam situações especiais em
seu duplo significado enquanto negativamente “vítimas” mas positivamente
“outros” com suas afirmações e resistências próprias: afrodescendentes,
indígenas, mulheres em realidade patriarcal, etc. Antes de tratar de “enfoques”
e mesmo de óticas, como fazem Libânio e Clodovis, parece mais mordente falar de
lugares teológicos, lugares atualmente privilegiados. Estes lugares se tornam,
então óticas. Talvez certo vazio da teologia européia e do Atlântico norte seja
exatamente por não conseguir se assentar mais em lugares teológicos reais,
vivos, trabalhando preferentemente com lugares textuais e com memórias. Pode
ser uma teologia bonita, mas sem refletir a fé real – ou ao menos a crise de fé
que assola o Ocidente. E com a quase exclusividade do método histórico-crítico,
a teologia da Europa e do Atlântico norte, em sua busca de afirmação acadêmica,
tende a se transformar em “ciência da religião” deixando de ser teologia viva,
sabedoria e fonte de sentido.
Uma pergunta que se pode dirigir ao nosso mestre em
metodologia é esta: porque não deu atenção à lição de Melchior Cano sobre os
loci theologici? Ele já intuía que a história, os tempos humanos, como se
mostrou visceralmente no século XX, é um lugar teológico. O Dicionário de Teologia
Fundamental organizado pelo próprio Rino Fisichella, bispo auxiliar de Roma que
viu sua apostila de teologia fundamental lecionada na Universidade Gregoriana
se transformar na Fides et Ratio, [Garantir essa informação] anota ainda que
novos lugares teológicos podem surgir, como a vida das Igrejas Locais – quanto
mais continentais!
O “lugar” torna-se decisivo na hermenêutica do século XX: o
tempo, a cultura, os eventos, são lugares vivos. A Escritura e a Tradição são
lugares categoriais, textuais, mas a realidade viva é o lugar substancial, seja
aquela realidade que a Escritura e a Tradição lembram, seja aquela que é vivida
hoje, que está de face para a Escritura. Por isso os contextos também são tão
decisivos, não somente os contextos que estão “por trás” dos textos, mas os que
estão “na frente”, ou seja, os contextos dos atuais leitores, segundo uma lição
de Paul Ricoeur. Por isso a fé apostólica transmitida pela Igreja não pode ser
contraposta à Igreja dos pobres que olham para a Escritura e encontram Cristo:
há uma continuidade de sensus fidei e de reconhecimento. Ao invés de dar razão
à Notificação a Sobrino, sobretudo à Nota Explicativa da mesma, como faz
Clodovis, parece-nos necessário debater tais afirmações da Congregação, porque
causa espanto que a Nota Explicativa faça uma contraposição – este e não aquele
- de lugares teológicos quando os contextos os unem.
4. O pobre como lugar teológico privilegiado
Clodovis, recorrendo a Heidegger, nos lembra, ao tratar da
fé como instância determinante do método teológico, que “o modo de acesso a uma
esfera do ente – no caso Deus – depende do modo de sua manifestação – no caso:
a Revelação”[12]. Afirma que “é necessário pensar dialeticamente a
reciprocidade de pólos em confronto, no caso, o pólo da fé e o pólo
método”[13]. E finalmente anota:
Pensando agora no concreto do método teológico, há que
dizer: se o caminho, ou seja precisamente, o meta-hodos, para Deus é o caminho
de Deus em nossa direção, poderíamos perguntar como se deu concretamente tal caminho
no processo histórico-salvífico. Ora, Deus veio a nós pelo caminho da quenose,
isto é, da humildade, da pobreza e da perseguição. Logo – e essa conclusão foi
tirada e sublinhada pela teologia latino-americana e caribenha – os pobres e
sofredores, além de sujeitos epistemológicos, são os mediadores privilegiados
(não exclusivos) do conhecimento do Deus vivo e verdadeiro. De fato, a Bíblia
atesta que os “pequenos” são os confidentes mais íntimos dos segredos de Deus,
ou seja, dos mistérios do Reino (cf. Mt 11, 26; 1Cor 1, 26-29). Nessa linha,
têm, no fundo, razão os teólogos da libertação em dizer que o seu método era a
sua espiritualidade, precisamente o “encontro com Deus no pobre”. Pois, como
vimos, o evento da fé determina o método teológico, de vez que a natureza do
objeto determina o modo de seu acesso cognitivo[14].
Nesta citação Clodovis reconhece que o modo da Revelação do
Mistério transcendente se deu – e se dá – no caminho de Deus em nossa direção,
e se dá como quenose, encontrado na humildade, na pobreza e na perseguição –
Deus das vítimas, dos “diminuídos”. Opção preferencial ou “eleição” que tem uma
lógica somente explicada por um amor “justo”, ao estilo da pergunta sobre “quem
é o preferido da mãe?” cuja resposta, no ensinamento árabe, é: “o menor até que
cresça, o distante até que chegue, o doente até que cure”. Ou seja, para amar a
todos com justiça e igualdade é necessário dar preferências. E este é o ponto
de vista de Deus – desde Abel até Jesus - como um fio dourado que atravessa a memória
bíblica. E cabe à teologia a perigosa ousadia de assumir “o ponto de vista de
Deus”. Se não assumir o ponto de vista de Deus e, mais ousado do que o
ensinamento árabe sobre o amor preferencial da mãe, o lugar desde onde Deus se
revela e se dá a conhecer em carne humana viva hoje, então sim andará por
ambigüidades teóricas e práticas, deslocando-se para outros lugares – o lugar
da ordem, do poder, da sacralização da instituição e da lei, que levará para
uma paganização e uma idolatrização do Deus vivo, petrificando-o. No entanto,
essas coisas sim são “de segunda ordem”. Ainda que tenha muito charme, muita
beleza litúrgica e poética, muita palavra augusta como “transcendência” e
“mistério”. É o lugar do pobre, de carne e osso, lugar de uma alteridade ao mesmo
tempo incontornável e irredutível, que se mantém a reserva de transcendência e
mistério. Isso, mais que paradoxo, é escândalo. Ora, o escândalo deve integrar
a epistemologia teológica cristã: o que a cabeça não resolve, resolve o
coração. É que a transcendência, na revelação tipicamente cristã, é de Deus
para nós não “em geral”, mas para o lugar dos mais humildes e frágeis. Isso faz
com que o seu Mistério não seja apenas um “excesso além”, mas um “excesso
aquém”, loucura e escândalo, mas paradoxal poder e sabedoria de Deus, etc.,
segundo a comparação que, no início da primeira carta aos corintos, Paulo faz
entre a memória escandalosa de Cristo crucificado e a comunidade viva de gente
sem qualificações segundo o mundo – pobres, mais uma vez, ad nauseam!
O “lugar teológico do pobre” privilegiado cristãmente está
intrinsecamente conectado com o pobre como “sujeito eclesial”. Que o pobre
mereça atenção, seja objeto de cuidado e amor pastoral, etc., nisso sempre se
esteve de acordo em toda a Igreja de todos os tempos e tendências. É o pobre
como objeto preferencial de amor e até de inspiração[15]. No documento de
Aparecida, a opção preferencial pelos pobres e excluídos foi parar na terceira
parte, na promoção da dignidade humana (8.3). É tão forte a impressão de que se
trata de destinatários da missão, que o comentário de Stefano Raschietti, na
mesma REB de nosso artigo em discussão, tem um subtítulo de seu artigo “O envio
ad extra aos pobres e aos outros para comunicar vida plena”(p.944). Este ad
extra chega a doer, mas parece coerente com a estrutura do documento. Convida a
ir pelo caminho da quenose e da compaixão. Está de acordo com a já famosa
afirmação de Bento XVI: a opção preferencial pelos pobres é decorrência
intrínseca da cristologia. E, no entanto, o que sustentamos aqui é que há algo
mais radical: é “lugar cristológico”, e por isso é lugar teológico: não se
encontra Deus cristãmente falando se não no campo dos pastores, naquele que vem
de Nazaré, no lugar dos malfeitores crucificados, etc. reais, de hoje, que têm
rosto e nome, e não só textuais, tecidos de memórias. Os pobres surgem, assim,
como escandoloso sujeito magisterial na Igreja e na sua teologia, portando um
testemunho que se torna uma prova nas tentações da Igreja e da teologia: para
continuar a ser teologia “cristã”, este reconhecimento e esta conversão ao
lugar privilegiado do pobre sem graça e nem mérito é articulum stantis vel
cadentis[16].
Clodovis, em seu rico e saboroso texto básico Teoria do
Método Teológico compara a teologia da Europa à raposa – sabe muitas coisas – e
a teologia da América Latina ao porco-espinho – sabe uma coisa só, mas
importante. Embora tenhamos teólogos e teólogas que são correspondem a ambas as
metáforas, até porque são europeus que aqui fizeram sua ruptura epistemológica
e inculturação ou são latino-americanos que foram se carregar de muitas coisas
por lá ou mesmo por aqui, a comparação e o discurso ad nauseam insistindo no
fio dourado condutor que ajuda a teologia a permanecer cristã tem algo do
oráculo obsessivo dos profetas. Bastam duas citações aqui: “Eu sou o Altíssimo,
mas habito junto ao humilde e ao abatido”(Isaias 57, 15 –VERIFICAR tradução)
“Fazia justiça ao pobre e ao infeliz (...) não era isso conhecer-me?” (Jeremias
22,16 IDEM). Is 58; Tg.
Finalmente, para não alongar nossa parte no debate, vale
recordar a gênese histórica da opção preferencial pelos pobres como categoria
teológica, portanto teórica e não só pastoral ou prática ou ad extra, na década
entre Medellín e Puebla. Desde então até hoje talvez o maior porco-espinho
tenha sido Sobrino. Ele, como todos os demais, teólogos e teólogas, tem uma
biografia por trás da bibliografia. Sua convicção firme é de que o discurso
teórico da Igreja, com legítima busca de universalidade, na verdade voa para a
abstração, e esta acaba servindo de nevoeiro para realidades eclesiais menos
evangélicas. Contra o discurso abstrato, loquaz, que em Roma é chamado pelo povo
leigo de “curialista”, Sobrino tem insistido tenazmente na “parcialidade”
concreta dos pobres em um mundo de interesses em conflito. É ridículo rotular
esta ótica como leitura marxista, bastando ler o evangelho para adquirir
sensibilidade e para ler inclusive pastoralmente tais parcialidades em
conflito, como fazem os documentos mesmos dos bispos latino-americanos. Sobrino
aprofunda teoricamente, aproveitando a crítica que já Hegel fazia ao
universalismo abstrato de Kant, exigindo uma parcialidade concreta e aberta à
realização dialética da universalidade. Se já Hegel viu tudo isso em Cristo,
Sobrino e a TdL nada mais fazem que buscar por onde passa Cristo não em uma
universalidade abstrata que se atém ao discurso, mas viva hoje: na parte dos
pobres, a única parcialidade que realmente pode abrir-se para a inclusão e a
universalização escatológica do Reino de Deus e das bem-aventuranças[17].
A pluralidade de enfoques ou de óticas em teologias de
libertação tornou a árvore frondosa: teologia índia, feminista, afro,
ecológica. São teologias críticas e, sobretudo, afirmativas: seu lado positivo
e construtivo ajuda a reconhecer sinais ou sacramentos do Reino de Deus. Podem
ser chamadas de “teologias para o Reino de Deus”. Mas o tronco continua a ser a
intuição nascida durante o Concílio, regada em Medellín, amadurecida entre
Medellín e Puebla: a teologia que parte do lugar do pobre, da quenose, revela o
Deus do Reino (a expressão “a teologia que ... revela o Deus do Reino” pode ser
mal-interpretada como algo pretensioso, como a TL pretendendo ter o monopólio
da revelação. Sugiro que encontre uma outra palavra ou expressão para “revela”,
algo como: “a teologia que ... , tem como o seu objeto central o Deus do
Reino). E, por isso, pode ser chamada de “teologia do Deus do Reino”.
Afinal, é o próprio Clodovis quem afirma que toda teologia,
para ser cristã, deve levar a sério a dimensão libertadora da fé:
Pois, se há uma teologia que não assume esse desafio,
pode-se questionar se é bastante ‘cristã’ ou se não é também ‘neoliberal’ (...)
não ponho mais a teologia da libertação como uma corrente entre outras,
brigando por um lugar ao sol e disputando a hegemonia cultural no campo
teológico e pastoral. Ponho sim, a libertação social como dimensão constitutiva
de toda teologia cristã. Desse modo, o que se requer não é tanto uma opção
particular por uma corrente quanto uma opção pela vocação da própria teologia,
caso se queira ainda cristã[18].
Parece-nos justo e apropriado reafirmar, depois de tudo, que
o pobre não está no lugar de Cristo ou de Deus como um substitutivo, mas que
Cristo – Deus mesmo - se encontra privilegiadamente no lugar do pobre, sub
specie contraris (VERIFICAR GENITIVO). Isso não é só regime de urgência, é
regime de excelência: escândalo e loucura, ruptura epistemológica, sabedoria e
teologia verdadeiramente cristã.
Sobre a relação entre Deus e o pobre
Certamente Clodovis não diria que entre Deus e os pobres
prefere Deus, mas que prefere Deus porque fica tanto com os pobres como com
Deus. No entanto, dificilmente poderá negar que seu interesse real são os
pobres. Ora, se o interesse real são os pobres, então não buscará um Deus sem
os pobres. E é exatamente a isso que se chama de perspectiva. Ou seja, não se
busca simplesmente a Deus, como um físico busca um primeiro princípio e nem
como Aristóteles buscava o primeiro motor, um princípio de explicação da
contingência. Caso os seus interesses não fossem os pobres, buscaria um Deus
que o mantivesse afastado e de consciência em paz. Não basta ler a Bíblia e nem
a Tradição e nem Magistério para esse vínculo. Ou se parte dos pobres e se
encontra ao Mistério Divino fragilizado nas fissuras de suas vidas, ou não se
encontram os pobres, porque a idolatria é capaz de suprir os arquétipos
religiosos sem as irmãs e os irmãos. Ao propor uma Igreja Samaritana, Aparecida
qualifica um modo de ser capaz de manter a fidelidade à presença divina em meio
à fragilidade histórica e humana.
Uma questão que foi mencionada rapidamente, na discussão
sobre se de Cristo necessariamente chega ao pobre, é como o pobre é visto
quando se parte de Cristo para chegar ao pobre. O pobre pode ser visto como um
mero objeto de assistência ou de evangelização. A história do cristianismo está
cheia de pessoas de fé que a partir da sua fé trabalham em prol dos pobres, mas
na perspectiva de levar a eles a “libertação” ou melhores condições de vida.
Eles são sempre objetos da ação da Igreja. A TL é mais do que trabalhar em prol
dos pobres, mas compreende os pobres como co-participantes ou como agentes principais
(essa é uma questão polêmica no interior da TL) na luta pela libertação.
Os pobres não devem ser somente objetos da ação solidária da
Igreja e da evangelização, mas também como “portadores” da revelação da
presença de Cristo entre nós. Além disso, é preciso enfatizar que os pobres
podem e devem ser também agentes das lutas (não sujeitos históricos, pois esse
conceito é questionável), sujeitos lutando para a afirmação da sua dignidade e
sua subjetividade. A TL se destaca por assumir os 2 último pontos, e não
somente por se preocupar com os pobres.
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[1] Cf. Teologia e Prática. Petrópolis: Vozes, 1993. 2ª
edição, com prefácio autocrítico, em que prefere substituir “Teologia 1” e
“Teologia 2” por “Momento 1” e “Momento 2” da Teologia. Teoria do Método
Teológico. Petrópolis: Vozes, 1998.
[2] Cf. In: SUSIN Luiz Carlos, O mar se abriu. São Paulo:
Soter/Loyola, pp.79-95.
[3] Cf. In: SUSIN Luiz Carlos, Sarça Ardente. Teologia na
América Latina: Prospectivas. São Paulo: Soter/Paulinas, 2000. pp.145-187.
[4] Cf. In: ELLACURÍA Ignacio & SOBRINO Jon, Mysterium
Liberationis. Madrid: Trotta, 1990, tomo I, pp. 81-82.
[5] O oranizador é o prof. Pe. Ney de Souza, e reúne textos
de professores da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção,
de São Paulo, e da Faculdade de Teologia da Universidade Católica de Campinas.
São Paulo: Paulinas, 2007.
[6] Cf. Teoria do Método Teológico. Petrópolis: Vozes, 1998.
p.119-123.
[7] Cf. Teologia trinitária............
[8] O livro de Peterson é de 1935, sob o impacto da ascensão
do fascismo e do nazismo.
[9] Clodovis Boff vê nesse período o risco de “usurpar a
função magisterial dos Pastores” (cf. Justificação da Teologia ontem e hoje”,
Studium 1 [2007] p. 111-120, aqui, 112). Que também os Pastores estejam
sujeitos a usurpações, não se menciona e talvez não fosse pertinente.
[10] Cf. p. 1006. Em outro lugar é ainda mais explícito ao
afirmar ser “a Teologia que arranca daí [ponto de partida ou perspectiva
do pobre], como é a TdL, só pode ser ‘um discurso de segunda ordem’, que supõe
em sua base uma ‘teologia primeira’ (p. 1004).
[11] Apud ALTEMEYER JÚNIOR Fernando, A arte de construir
remos: sobre a polêmica Teologia da Libertação. In: ...............revista
Puc/Paulinas
[12] Em Retorno à Arché da Teologia. In: SUSIN Luiz Carlos,
Sarça Ardente. Opus cit. P154.
[13] Ibid. p.156.
[14] Ibid. p.156-157.
[15] Cf. VIGIL José Maria, Opção preferencial pelos pobres
(CERTIFICAR) In: SUSIN Luiz Carlos, Sarça ardente. Op. Cit. P........
[16] Cf. SOBRINO Jon, La autoridad doctrinal del pueblo de
Dios. Concilium 200 (1985) pp. 71-81.
[17] Cf, para não sobrecarregar com toda a bibliografia de
sobrino, a última publicação: Fuera de los pobres no hay salvación...........
[18] BOFF Clodovis, Como vejo a teologia trinta anos depois.
In: SUSIN Luiz Carlos, O mar se abriu. Op.cit. p90.
Publicado em:
http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_canal=29&cod_noticia=11383
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