O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

30 de junho de 2012

A teologia da Libertação e seu(s) fundamento(s): Em debate com Clodovis Boff “sed contra...”



A Teologia da Libertação, a mais original contribuição da teologia latino-americana, possui uma ambigüidade epistemológica acerca do fundamento, ou seja: colocou o pobre no lugar de Cristo. Isso aconteceu através de uma confusão e de um nevoeiro epistemológico, uma indecisão a respeito do “princípio regente” que deslizou para a inversão e instrumentalizou a fé e Deus. Este equívoco levou a conseqüências graves: esvaziamento da identidade, sociologia e ideologia no lugar de teologia, tagarelice ad nauseam, percepção da Igreja como uma ONG etc. A Teologia da Libertação cedeu ao espírito da modernidade, absorveu da modernidade o seu antropocentrismo expressando-o em termos de pauperocentrismo. Conseqüências últimas: a libertação pode devorar a teologia, e “o pobre não agüentará por muito tempo nas costas o edifício de uma teologia que o escolheu por base: cederá antes de ser esmagado por ela, como a história não cansa de mostrar” (p.1022).
Este é um “rude resumo” do artigo de fr. Clodovis Boff, conhecido por sua atenção e por seus méritos nas questões de método em Teologia da Libertação (TdL). É autoridade “desde dentro”, que escreve um artigo crítico e, portanto, autocrítico. Afirmar que a TdL colocou o pobre no lugar de Deus e, sobretudo, Deus no lugar do pobre, poderia soar como uma santa e sábia ambigüidade cristã. Mas Clodovis afirma que o pobre, desta forma, substitui Deus e a ambigüidade é funesta.
Publicado nesta prestigiosa Revista Eclesiástica Brasileira, em número especial dedicado ao evento e ao documento de Aparecida – REB n.67, de outubro 2007, p.1001-1022 – Clodovis faz uma confrontação do caminho “desviante” da Teologia da Libertação com a “surpresa do Espírito” e o “milagre de Nossa Senhora (Aparecida)” que é o documento de Aparecida: correta relação entre fé e ação libertadora, não do pobre a Cristo, mas de Cristo ao pobre.
Evidentemente, os dois parágrafos acima não fazem justiça aos matizes cuidadosos de um teólogo tão rigoroso e exigente em termos de epistemologia e de método. É necessário lê-lo com atenção para ser justo. No entanto, parece-nos que o artigo de Clodovis, ainda assim, no desenrolar do artigo, tem afirmações ex abrupto, sem aprofundamentos. Talvez seja de alguém que já advertiu também ad nauseam anteriormente, em seus textos mestres, sobre o problema, e aqui atalha caminhos. Resume para a sua intenção: acentuar o dom de Aparecida para a arquitetura e a engenharia da TdL. Não faltam, é claro, afirmações de que a TdL é ou foi oportuna, importante, mas “a prova dos frutos mostra que necessita de uma oportuna pulverização crítico-epistemológica e, mais ainda, de adubar suas raízes”(p.1007). Por isso Clodovis aposta tanto no documento de Aparecida – evidentemente por amor à TdL que ele mesmo ajudou a parir e a criar.
Para compreender melhor a crítica sem açúcar de Clodovis, convém cotejar este artigo contundente com outros textos dele no passado recente. As suas duas obras maiores sobre método[1] podem ser encontradas de forma mais resumidas sem perda de rigor nos seus artigos: Como vejo a teologia latino-americana trinta anos depois[2], que tem caráter autobiográfico, e Retorno à Arché da Teologia[3]. Além destes dois elucidativos textos, pode ser útil o seu verbete Epistemología y Metodología de la Teología de la Liberación[4]. Somente assim se p0de levar adiante um debate objetivo e fecundo a partir de uma provocação sem rodeios a colegas e novas gerações de teólogos e teólogas latino-americanos.
No artigo em debate, Clodovis menciona autores como Sobrino e Rahner de forma curta e cortante, mas deve-se fazer a mesma justiça a estes dois grandes teólogos, considerando suas elaborações teológicas de forma estrutural e completa. Sobre Rahner, Clodovis se atém à “vulgata rahneriana que subjaz à TdL”(p.1007), em que a teologia, no contexto da “virada antropológica”, fica reduzida a uma “hermenêutica da existência humana”, repercutindo por aqui como hermenêutica da existência pobre. Na verdade, Rahner foi considerado “o engenheiro da teologia católica do século XX” (J.Moltmann). Clodovis reclama, em seus textos, o respeito à fonte originária da fé e da teologia, que é o “Mistério” transcendental de Deus. E o faz citando Rahner, o teólogo que insistiu no Mistério não manipulável de Deus que, no entanto – aqui a originalidade espantosa do cristianismo – habita o humano e o mundo. Quanto a Sobrino, podemos parodiar Moltmann: é o engenheiro da mais criativa e madura cristologia entre nós, inclusive depois de considerar a Notificação da Congregação para a Doutrina da Fé.
Com a atual facilidade de comunicação, teólogos e teólogas, Brasil afora, se perguntaram uns aos outros como interpretar adequadamente o artigo de Clodovis. Não por esprit de corps, mas como trabalho e responsabilidade comum, como comunidade teológica, abrimos em muitas mãos este debate. Somos membros da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião, e/ou da Equipe de Reflexão Teológica da Conferência dos Religiosos do Brasil, e/ou da Ameríndia, rede latino-americana de reflexão teológica, diversos de nós presentes em Aparecida. Diante de uma provocação tão “de repente”, debater vai fazer bem a todos, sobretudo à verdade e ao Povo de Deus.


1.      Razões indiscutíveis: a fé como princípio referente, mas ela se constitui de diversos aspectos e manifestações.

Convém dizer o óbvio ululante, que de tão óbvio, como lembra Clodovis, pode ser um pressuposto esquecido no fragor das batalhas de libertação: numa dialética de fé e prática cristã, a fé é o princípio referente, enquanto outros princípios são “referidos”, ganham da fé a sua autoridade. Não conseguimos encontrar e nem imaginar que teólogos da libertação tenham escrito ou pensado diferentemente. Clodovis põe a salvo os “pais” da TdL, nossos mestres. Nós [quem? Parágrafo acima] somos a segunda geração pós-conciliar na teologia latino-americana. Ela buscou um método que realmente refletisse o rosto e a alma do cristianismo latino-americano e não fosse mero “reflexo da reflexão” européia. Sem pretensões de originalidade narcisista, ainda que com impulsos de adolescência, mas em obediência a Medellín: buscando fidelidade pós-conciliar num continente com tremendo anseio de transformação onde a fé cristã é conatural à se tornou cultura popular.
Clodovis, em outros textos, refere-se à sua experiência com alunos, portanto com teólogos em formação e suas peculiaridades, que nós também conhecemos. Sabemos também de sua grande experiência com militância de fé e política e com lideranças de pastoral popular e de massa, que frequentemente transformam a teologia em “ferramenta de luta” e slogans. E toda a teologia arrisca ser julgada pelo sucesso dos slogans, pela impaciência da sede de justiça, por um lado, e, por outro lado, pelo cinismo de quem não leu e não gostou porque aberta ou disfarçadamente tem posição oposta. Tudo isso é realmente risco de possíveis efeitos colaterais de um caminho novo. No entanto, de longe – é o nosso protesto – isso não diz respeito à produção propriamente teológica no espírito e no método da TdL. Pode-se comprovar com escritos recentíssimos, de grande qualidade, como, apenas a título de exemplo, o livro Temas de Teologia Latino-americana[5], com artigos que incidem exatamente sobre cristologia e eclesiologia da TdL e sua epistemologia. É bom lembrar também que interpretações redutivas não são privilégio da TdL, mas acompanham como tentação, hybris, todo e qualquer discurso humano a respeito do Mistério Divino. A tradição da Teologia apofática, por um lado e o recurso à analogia, por outro, mostram a fragilidade da palavra sobre a Palavra. (interpretação redutiva é só uma tentação? Se sim, seria possível um discurso interpretativo – de qualquer genro, e não só da teologia – que não fosse redutivo. Mas, a redução é a condição inescapável de toda teoria ou interpretação. O problema não está na redução ou não, mas a “qualidade” da redução e no reconhecimento ou não de que a teoria/interpretação, por ser redutiva, não é total e nem definitiva.)
Não só a fé, mas a espiritualidade tem sido preocupação recorrente, busca e refrigério de teólogos e teólogas da libertação. Há uma contínua produção, desde os primeiros e os grandes pais da TdL até o presente, em torno de uma espiritualidade sólida, fontal. Que esta espiritualidade, vida no Espírito e segundo o Espírito, esteja indissoluvelmente ligada ao seguimento de Cristo encontrado no lugar privilegiado do pobre, ainda vamos examinar.
No entanto, Clodovis elegeu com toda a energia intelectual, seguindo uma admirável tradição repetida reiteradamente em seus textos, que somente o intellectus fidei que se voltado para o Evento da Revelação do Mistério é ato de acolhimento e compreensão da Revelação, e, portanto, princípio epistemológico do edifício teológico. Bate-se com Sobrino negando esta excelência ao que Sobrino chama de intellectus amoris ou também intellectus justitiae, intellectus misericordiae, e que desemboca no “princípio misericórdia” da existência cristã e de uma teologia realmente cristã[6]. Ora, que o amor ou o coração vê e compreende o que a inteligência não consegue compreender batendo-se em aporias, isso também tem longa e respeitável tradição na Igreja. O que Sobrino acrescenta, seguindo Gutiérrez, é a sua dimensão de práxis: verum faciendum: quem faz a vontade e não quem diz “Senhor” e senta-se e come com o Senhor, realmente chega ao verdadeiro conhecimento e à verdade da salvação. A verdade como fidelidade prática é atestada recorrentemente pela Escritura, como ainda veremos.
A Revelação e a fé, como anota Clodovis, se manifestam em linguagem: palavra de Revelação que se reconhece e se acolhe, e palavra em que a fé se expressa. Não somente a radicalidade fiducial, última e abismsal, da fides qua creditur¸ mas a fides quae creditur, fé com conteúdo, acontecimento e palavra. Ora esse conteúdo e essa linguagem são exemplificadas por Jesus ao doutor que queria saber como conseguir a “vida eterna”, a vida verdadeira, a salvação: Jesus conta a sua pequena pérola narrativa do Samaritano que se compadeceu do caído, arriscou com ele a impureza que os sacerdotes não se permitiram, aproximando-se, tendo compaixão, usando de misericórdia. Só isso. Não é ainda teologia ocidental, mas é um princípio de toda real teologia cristã. Aqui o princípio lógico e grande da salvação está “dentro”, não “acima” do princípio existencial e humilde da libertação. Parece, então, ser necessário reconhecer uma circularidade entre salvação e libertação. Não basta, portanto, como o faz Clodovis dizer que “para se obter realmente a libertação é preciso mais que apenas a libertação: é preciso – digamo-lo sem medo - Salvação!” Somente a Transcendência redime a imanência”(p.1008). Parodiando Kant, poderia reconhecer-se o vazio da transcendência sem a imanência. Mas não é preciso chegar a tanto. Basta ler 1 Jo 4,20: quem diz amar a Deus a quem não vê, mas não ama ao irmão a quem vê, é um mentiroso! Jesus, com sua historinha do Samaritano e do caído, ensinou ao doutor da Lei que, para se obter realmente a Salvação, é preciso mais que apenas a Salvação: é preciso – digamo-lo sem medo – libertação! Somente na humilde imanência se dá a transcendência. (acho que seria bom explicar melhor o que se entende por “se dá a transcendência”. Eu penso que a metáfora de “baixo” e “cima” para se referir a imanência e transcendência, pois é muito espacial e estático e não dá conta do mistério da manifestação de Deus (transcendente) no interior da história quando o “amor se realiza” entre os irmãos/pobres. Como o parágrafo lida com a parábola do samaritano  e 1 Jo, eu penso que deveria insistir que na abertura ao necessitado, no amor-solidário, o Deus se faz presente, como diz 1 Jo 4, 12: “Ninguém jamais  contemplou a Deus. Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e seu amor é realizado.” Eu penso que uma outra forma de expressar a sua idéia de “somente na humilde imanência se dá a transcendência” poderia ser a noção de Deus se fazendo presente no interior da vida humana, ou a transcendência que se revela no interior da imanência, aceitando se “reduzir” (Fil 2,6) às condições do mundo humano para que possa se conhecido por seres humanos, sem deixar de ser transcendente, isto é, uma redução necessária para ser conhecido e experienciado pela humanidade (a revelação), mas que se sabe que não se reduz à essa redução, é transcendência irredutível. Essa dialética da imanência-transcendência reforçaria também a dialética da redução teológica e o mistério de Deus. (aliás, eu li nas férias um livro muito interessante de uma jovem teóloga latina nos Estados Unidos sobre o tema da transcendência de Deus: RIVERA, Mayra. The Touch of Transcendence. A Postcolonial Theology of God. Louisville: Westminster Kohn Knox Press, 2007.)

[Desenvolver o tema do amor condescendente]

O destino da linguagem, exatamente quando é relevante – e quanto mais relevante - é sua utilização sem possibilidade de controle em todos os seus percursos. A filosofia da existência, por exemplo, deu em curiosas formas de terapia. Assim, também em teologia: na produção de “vulgatas” militantes falou-se da Bíblia como “ferramenta” e da “construção” do Reino de Deus: uma linguagem de sabor “neopelagiano”, quando isolada de um nível mais profundo de encontro e de graça, mas que atualmente pode ser considerada superada por expressões menos “fabricadas” e mais justas. Por exemplo: leitura orante da Palavra de Deus, dom e responsabilidade do Reino de Deus.No entanto, mesmo com sua fragilidade, a expressão em sua totalidade - “construir o Reino ou Reinado de Deus” - mantém uma relacionalidade que rompe a tentação de construir apenas a si mesmo ou cristalizar instituições centradas no próprio ego. Mesmo a compreensão da Bíblia como ferramenta, não deixa de ser um valor bíblico, na medida em que é útil (ôphélimos) para o ensino e educação na justiça (cf. 2 Tm 3,16). Como texto, possui uma reserva de sentido sempre maior do que sua leitura paradigmática.     (Penso que esta parte destacada poderia ser substituída por uma reflexão sobre a “construção de uma sociedade mais justa, mais livre”, que se busca e constrói iluminado pelo horizonte do RD e é um sinal da presença do RD entre nós (a transcendência de Deus no interior da história), o RD que só será pleno e definitivo na parusia)

2. Fé e círculos hermenêuticos ou pericoréticos.

Clodovis é um grande apaixonado pelo “único fundamento” que dá identidade cristã à teologia. Se não for assim, resvala-se na ambigüidade. Mas Cristo – e Deus nele – se dá com uma pluralidade de acessos, e uma vez encontrado, remete para além de si: Cristo é encruzilhada, chegada de muitos caminhos e partida para muitas presenças: o Pai, o Espírito, os irmãos, a comunidade, as criaturas, o vasto mundo... e privilegiadamente o pobre, como ainda queremos acentuar. A identidade cristã é aberta, fundada e marcada por alteridades. E isso nos faz dançar numa complexa dialética circular destas alteridades. Para nossa surpresa, Cristo nos conduz à pluralidade na simbólica trinitária da imagem cristã de Deus: cada pessoa remete à outra, pois é desde a outra, para a outra – é pericorese. Ora, a pericorese é uma boa imagem do círculo hermenêutico da teologia cristã. Que isso corra riscos de resvalões, de tatear flutuando a meio caminho, enfim de ambigüidades e falta de clareza, parecem-nos riscos menores do que uma identidade clara e circunscrita sobre um princípio único ao qual tudo se reduz, que pode esconder em sua sombra um fundamentalismo afinal perigoso.
Clodovis conhece bem e cita com propriedade em seus textos grandes nomes da hermenêutica do século XX: Heidegger, Althusser, Ricoeur, Foucault, Rorty. Lembra com freqüência o trabalho dialético, os princípios em pólos e sua relação recíproca, mas nega com todo cuidado a simetria dos pólos e dos princípios, insistindo sempre no princípio “regente” mesmo quando modificado ou enriquecido pelos princípios “de segunda ordem” que retornam sobre o pólo regente. Ilustra reiteradamente com Aristóteles. O filósofo grego, em sua Metafísica, conduz não só a lógica, mas também a ontologia, ao Unum princeps citando sintomaticamente a Ilíada de Homero e seu personagem Agamenon ao reunir os chefes para a guerra contra Tróia: “Que um só comande sobre nós”. Moltmann[7], lembrando o Monoteísmo como problema político de Erik Peterson[8], nos deixa inquietos com este procedimento.
Talvez por necessidade de afirmação e de redução ao fundamento único Clodovis não dá especial significado ao círculo hermenêutico. Ora, o círculo hermenêutico tem algumas vantagens sem se reduzir a uma dialética de pólos simétricos e menos ainda a um dualismo: pode-se partir de qualquer ponto chegar bem a outro ponto compreendendo cada ponto em seu real e devido lugar. A teologia trinitária é uma boa demonstração. Nela, o primeiro lógico é o Pai, mas existencialmente é o Filho que revelou historicamente, desde sua humanidade, quem seja realmente Deus Trindade. Por isso o triênio para o Ano Jubilar começou pelo Filho, seguindo o axioma metodológico de Boaventura: Incipiendum est a médio quod est Christus. Assim também quanto à condição humana e divina de Cristo, e quanto aos diversos lugares teológicos em que se revela. Seguimos aqui uma indicação de grande sensibilidade bíblica de Christian Duquoc: em primeiro lugar não se deve perguntar pela essência de Deus, mas pelo lugar desde onde ele se revela! Assim, pode-se partir de Cristo para chegar ao pobre, mas pode-se partir do pobre para chegar a Cristo – e à compreensão realmente cristã de Deus. Há riscos: não nos parece ser verdadeira a afirmação de Clodovis de que de Cristo sempre se chega ao pobre mas do pobre nem sempre se chega a Cristo. Se não se chega a um ponto é porque não se compreendeu bem também o outro, e isso vale para ambos: uma má compreensão de Cristo não leva necessariamente para o pobre – e temos exemplos constrangedores - enquanto uma compreensão real do pobre nos remete sempre para o Mistério feito carne e dor de Cristo.
Clodovis prefere uma epistemologia e uma metodologia linearmente lógicas, de corte aristotélico e escolástico, para manter as rédeas através da clareza. Uma hermenêutica circular complica (não seria melhor “complexifica”) e parece que banaliza. Para complicar ainda mais: a imagem mais contemporânea desta circularidade foi a “rede” e depois a “teia”. Em tudo isso não há um “centro” ou fundamento único ao qual se inclinam os demais pontos, mas todo lugar é centro (mesmo em uma rede ou teia, há pontos mais fundamentais do que outros, por isso, nem tudo é centro – pois isto negaria o próprio conceito e o sistema seria indiferenciado, isto é, não formaria um sistema–, mas há vários centros) e, sobretudo, ex-cêntrico: remete para além de si, até Deus. Do ponto de vista cristão, tal imagem pode ser surpreendentemente bem vinda: o Deus bíblico, cristão, não é narcisista, não é ídolo, não precisa propriamente de nossos aplausos ainda; ama gratuitamente e que se dê se dá a paciência de nos escutar e socorrer com o Espírito a nossa fraqueza, de vez que “não sabemos o que pedir como convém” (cf. Rm 8,26). Remete, assim, para além de si. Que, no nosso caso, é “para aquém”: A transcendência de Deus consiste em transcender-se em direção a nós, às criaturas e às mais frágeis, uma transcendência de transcondescendência. Modificando um pouco os termos polares de Santo Ireneu: Gloria hominis visio Dei, gloria autem Dei homo vivens!
Por isso é tão preciosa a categoria circular de Reino de Deus, que reúne Deus e além-de-Deus: a criação, a humanidade, e a prova máxima de inclusão: as vítimas, os frágeis, os pobres. Se o Reino está à disposição dos pobres, estamos todos salvos. Se Deus se faz carne no lugar do mais pobre, então estamos todos assumidos. Mas a categoria de Reino de Deus como categoria teológica necessária para que a teologia seja cristã, categoria holística (Uma reflexão: o conceito de holístico se refere mais à totalidade, enquanto que holograma/hologramático usado por teóricos de sistemas complexos faz referência explícita à totalidade, mas também às partes: “as partes estão no todo e o todo está nas partes”. Eu sei que não dá para desenvolver este tipo de reflexão neste artigo, mas penso que o conceito de holograma pode ser mais interessante para falar do RD porque a totalidade do RD também está presente nos espaçoes e relações micro. Por ex., no caso do bom samaritano, podemos dizer, usando a noção de holograma, que o todo do RD, entendido como o reinado de Deus, no sentido macro, já está presente nesse pequeno âmbito das relações de solidariedade, mesmo que ela não seja a totalidade do RD.) , saída da boca de Jesus, sua epistemologia por excelência, parece não ter peso suficiente na metodologia de Clodovis. Tudo o que é recíproco, redondo, com a complexidade da multirreferencialidade, incomoda uma construção analítica com lógica extremamente linear: com um primeiro, um segundo - teologia de primeira ordem, teologia de segunda ordem, teologia como tal e teologia particular. Isso francamente, do ponto de vista epistemológico, não nos parece adequado.
Uma dificuldade essencial do pensamento de Clodovis é a não consideração dos pressupostos atuantes em todas as teologias. De fato, a chamada “Teologia 1” ou “Momento 1” da Teologia, é tão pouco isenta de pressupostos quanto outra Teologia qualquer. As constantes referências a Aristóteles mostram sua filiação epistemológica, supondo, quem sabe numa hiperinterpretação do realismo estagirita, que os conceitos expressem a realidade de forma insuperável. Ora, isso seria visio beatifica, e não corresponde à condição peregrina do conhecer que se dá como em enigmas (cf. 1 Cor 13,12). Deve-se lembrar que mesmo os maiores teólogos escolásticos nunca tiveram a presunção de serem a Sacra Doctrina ou a Theologia. Pelos contrário, foi no debate das Escolas que a própria Igreja se orientou.[9] 
Numa hierarquização adequada o que para Clodovis é Teologia 1 ou Momento 1 agora deve ser entendido como Fé. Em sua tese de doutorado esse conceito fazia um certo sentido enquanto substituto para a Teologia clássica ou mesmo escolástica ou européia. No entanto, pensar que exista a Teologia que funcione como gênero “teologia de primeira ordem” em relação a outras “de segunda ordem” que seria espécie[10] é confundir o gênero de discurso religioso, chamado Teologia, uma abstração das muitas elaborações das razões da fé. Há uma Teologia no Novo Testamento, uma Teologia patrística, uma teologia oriental, uma Teologia Ocidental; da Idade Média conhecemos uma Teologia Dominicana, Franciscana, e assim por diante; na Modernidade existem uma Escola de Tübingen e uma Escola Romana, com uma entrada da Teologia Jesuítica,  por exemplo. O que dificulta e muda a situação atual, é o pluralismo geográfico e cultural da Teologia, além das opções ideológicas em jogo. É inegável um certo compromisso político de fundo em todas as teologias vigentes, mesmo as mais oficiais. A tarefa da boa teologia não está na isenção e presunção de uma neutralidade, de fato utópicas, mas é submeter-se à crítica da realidade e da fé. Assim, tanto para a TdL, como qualquer outra Teologia, seria um anacronismo manter as óticas dos tempos da guerra fria e do socialismo soviético. Teologia, portanto, seja T1 ou T2 ou T3, é sempre uma teologia e nunca a Teologia. (eu penso que vale a pena manter esses 2 parágrafos destacados em verde. Uma sugestão: ao falar de vários tipos de teologia, você deu ênfase às divisões de tempo e lugar, mas não fez nenhuma referência às teologias (substantivas) que se diferenciam pela perspectiva, por ex., a teologia da cruz de Lutero, que é o caso também da própria TL.)
A questão do círculo hermenêutico, da pericorese do Reino de Deus, dos lugares teológicos da realidade viva, no caso da Teologia da Libertação, faz com que a dialética, as reciprocidades, incluam também conflitos e “interesses” (Foucault), sobretudo, lembrando uma enfática expressão de Clodovis em nossos círculos de debates, “os altos interesses dos pobres”. É que teologia não é só oração, poesia, “teologia bonita” como a de Urs Von Balthasar. Ele é um perfeito dialético, desenvolveu a teologia hegeliana do Cristo como universal concreto de maneira gloriosa inclusive e principalmente na cruz. Encontrou uma inclusão da realidade no sistema de sua Herrlichkeit com tal poesia e coerência que não se consegue colocar uma agulha entre as pedras. Não lhe falta a descida aos infernos na meditação dos Três Dias. E tudo se resolve numa imensa, e abstrata, mística pascal. A alteridade das multidões de pobres de carne e osso parece um resto negligenciável em teologia, sem relevância para compreender a Revelação e a Salvação.. Diferentemente, o “concreto” na TdL não se consegue sistematizar: o Cristo vivo hoje é justamente o que está expulso do sistema, que vive na carne a fé e a esperança no Pai e seu tremendo mistério – é o Cristo identificado com o pobre de hoje, a vítima, o “esmagado” (sentido etimológico do “pequenino” de Mt 25). A Europa está com um surto de “teologia da beleza” de inspiração balthasariana, que parece acompanhar a vida como estética, inclusive uma estética eclesiástica correspondente (com retorno lento e seguro das “lingeries litúrgicas” – Thomas Merton). Assim, o sistema em que tudo fica resolvido ao invés de revelar, na verdade “encobre” a realidade cruel da favelização crescente do sul do mundo onde Cristo está identificado com os crucificados.
Mas se o Verbo realmente se fez carne frágil e mortal, é esta (este) o lugar teológico para compreender Deus. Paulo VI encerrou o Concílio com uma afirmação retomada em seu discurso de Medellín, 1968, e assumida na introdução do documento: “Para conhecer Deus é necessário conhecer o homem”. Supõe-se que sejam homens e mulheres de carne e osso, reais em suas alegrias e angustias, “especialmente os pobres e sofredores”, segundo a abertura de GS. Carne humana não é só subjetividade: é alteridade plural que provoca sacerdotes e samaritanos ao longo dos encontros e desencontros do caminho. A abertura do Concílio sofre agora a desconfiança de que por ele entrou o antropocentrismo da modernidade no pensamento da Igreja, antropocentrismo que na verdade esqueceu os pobres. Estes, hoje, são vítimas da modernidade e a atenção ao seu “potencial evangelizador” é um teste de fidelidade ao Concílio. A TdL tem hoje a melhor palavra de aggiornamento querido pelo Concílio, que é também palavra de incômoda profecia em confronto com a modernidade.

3.     O fantasma no porão

Quando acena para a virada antropológica de Rahner, Clodovis parece desconfiar da dissolução do transcendente no imanente, o que, para o esforço de superação feito pela Nouvelle Théologie e para o próprio Rahner se tratava de superar o dualismo e a superposição “natural-sobrenatural”, natureza-graça, etc. sem cair no antropocentrismo da modernidade. Pelo contrário, sabemos sobejamente que o “Mistério” sempre transcendente é categoria central da teologia de Rahner, e que sua antropologia poderia ser resumida em “Ouvinte da Palavra”, em seqüência à sua tese sobre o Espírito no Mundo. É claro que Clodovis sabe disso, mas no artigo aqui em debate ele só realça as sombras da modernidade e do esforço de responder honestamente a ela. A primeira grande vítima teológica na área católica foi, como se sabe, Alfred Loisy. Querendo se confrontar com a teologia liberal, buscou mostrar que, se a Igreja não é propriamente o Reino de Deus, no entanto, é mediação necessária para o Reino. (não está muito claro.) A pedrada, no entanto, veio do lado da Igreja, que desencadeou o anti-modernismo e “reduziu a cemitério o pensamento católico”. Foi necessário o Concílio, depois da morte amargurada de Loisy, para encontrar o equilíbrio: “Jesus iniciou sua Igreja pregando a boa nova, isto é, o advento do Reino de Deus” (LG 5). Graças, inclusive, a Rahner e à Nouvelle Théologie, como se desprende do diário de Congar.
A contraposição entre Reinado de Deus, Igreja e Cristo, ignora o significado bíblico da tradição do Reinado. Ao menos segundo os sinóticos, toda existência de Jesus gira em torno do anúncio e prática do Reinado, que deve ser entendido como sendo o do Pai. Daí também a íntima relacionalidade entre Jesus e o Pai. Quando Orígenes identifica Jesus como a “autobasiléia thou theou”, exprime essa relacionalidade mediadora. Jesus proclama o Reinado e vincula sua pessoa com seu advento, como deixa clara a ceia de despedida. O Reinado, no entanto, é para os pobres como as pesquisas exegéticas têm mostrado desde o final do século XIX e ao longo de todo século XX em diferentes abordagens, desde os estudos histórico-críticos passando pelos sociológicos e antropológicos das antigas civilizações do Mediterrâneo e do Crescente Fértil.
Esta longa volta é para chegar a este ponto: depois das intervenções da Congregação para a Doutrina da Fé da década de oitenta, houve uma conspiração para reduzir o pensamento teológico da América Latina a um novo cemitério: acabou, está morta, etc. Ironicamente a Notificação a Sobrino chega no centenário da Pascendi de Pio X. É impressionante, e Libânio anotou num parágrafo incisivo de seu artigo na mesma REB do nosso artigo em questão que, tendo falado de tudo, o documento passa em absoluto silêncio a teologia latino-americana e a sua contribuição, mesmo que ela exista em muita substância do documento (p839). Basta lembrar que “discípulos e missionários” são duas palavras chaves da cristologia de Sobrino: “seguimento e missão”. Porque a teologia latino-americana incomoda tanto? Porque os bispos têm tanto pudor a respeito deste ministério na Igreja? “Como vencer o oceano se é livre a navegação, mas proibido fazer barcos?” - reclamava o poeta Carlos Drumond[11].
É que a “virada” do pensamento teológico da América Latina é ainda mais profunda e traumatizante. Por isso se falou de “ruptura epistemológica” inclusive com a metodologia da Europa central, tão coroada pelo Concílio. Apesar da riqueza e herança recebida de além-mar, mesmo as mais próximas como a de Metz, com sua teologia como memoria passionis, ou de Moltmann com Deus Crucificado, aqui há um lugar teológico incontornável para uma teologia minimamente honesta: a realidade grande, clamorosa, atual e não só memória, dos pobres num mundo em que a pobreza não é simplesmente natural, mas social, produzida por relações e estruturas sociais injustas, portanto pobres como vítimas de um sistema social, aos quais se juntam situações especiais em seu duplo significado enquanto negativamente “vítimas” mas positivamente “outros” com suas afirmações e resistências próprias: afrodescendentes, indígenas, mulheres em realidade patriarcal, etc. Antes de tratar de “enfoques” e mesmo de óticas, como fazem Libânio e Clodovis, parece mais mordente falar de lugares teológicos, lugares atualmente privilegiados. Estes lugares se tornam, então óticas. Talvez certo vazio da teologia européia e do Atlântico norte seja exatamente por não conseguir se assentar mais em lugares teológicos reais, vivos, trabalhando preferentemente com lugares textuais e com memórias. Pode ser uma teologia bonita, mas sem refletir a fé real – ou ao menos a crise de fé que assola o Ocidente. E com a quase exclusividade do método histórico-crítico, a teologia da Europa e do Atlântico norte, em sua busca de afirmação acadêmica, tende a se transformar em “ciência da religião” deixando de ser teologia viva, sabedoria e fonte de sentido.
Uma pergunta que se pode dirigir ao nosso mestre em metodologia é esta: porque não deu atenção à lição de Melchior Cano sobre os loci theologici? Ele já intuía que a história, os tempos humanos, como se mostrou visceralmente no século XX, é um lugar teológico. O Dicionário de Teologia Fundamental organizado pelo próprio Rino Fisichella, bispo auxiliar de Roma que viu sua apostila de teologia fundamental lecionada na Universidade Gregoriana se transformar na Fides et Ratio, [Garantir essa informação] anota ainda que novos lugares teológicos podem surgir, como a vida das Igrejas Locais – quanto mais continentais!
O “lugar” torna-se decisivo na hermenêutica do século XX: o tempo, a cultura, os eventos, são lugares vivos. A Escritura e a Tradição são lugares categoriais, textuais, mas a realidade viva é o lugar substancial, seja aquela realidade que a Escritura e a Tradição lembram, seja aquela que é vivida hoje, que está de face para a Escritura. Por isso os contextos também são tão decisivos, não somente os contextos que estão “por trás” dos textos, mas os que estão “na frente”, ou seja, os contextos dos atuais leitores, segundo uma lição de Paul Ricoeur. Por isso a fé apostólica transmitida pela Igreja não pode ser contraposta à Igreja dos pobres que olham para a Escritura e encontram Cristo: há uma continuidade de sensus fidei e de reconhecimento. Ao invés de dar razão à Notificação a Sobrino, sobretudo à Nota Explicativa da mesma, como faz Clodovis, parece-nos necessário debater tais afirmações da Congregação, porque causa espanto que a Nota Explicativa faça uma contraposição – este e não aquele - de lugares teológicos quando os contextos os unem.


4. O pobre como lugar teológico privilegiado

Clodovis, recorrendo a Heidegger, nos lembra, ao tratar da fé como instância determinante do método teológico, que “o modo de acesso a uma esfera do ente – no caso Deus – depende do modo de sua manifestação – no caso: a Revelação”[12]. Afirma que “é necessário pensar dialeticamente a reciprocidade de pólos em confronto, no caso, o pólo da fé e o pólo método”[13]. E finalmente anota:
Pensando agora no concreto do método teológico, há que dizer: se o caminho, ou seja precisamente, o meta-hodos, para Deus é o caminho de Deus em nossa direção, poderíamos perguntar como se deu concretamente tal caminho no processo histórico-salvífico. Ora, Deus veio a nós pelo caminho da quenose, isto é, da humildade, da pobreza e da perseguição. Logo – e essa conclusão foi tirada e sublinhada pela teologia latino-americana e caribenha – os pobres e sofredores, além de sujeitos epistemológicos, são os mediadores privilegiados (não exclusivos) do conhecimento do Deus vivo e verdadeiro. De fato, a Bíblia atesta que os “pequenos” são os confidentes mais íntimos dos segredos de Deus, ou seja, dos mistérios do Reino (cf. Mt 11, 26; 1Cor 1, 26-29). Nessa linha, têm, no fundo, razão os teólogos da libertação em dizer que o seu método era a sua espiritualidade, precisamente o “encontro com Deus no pobre”. Pois, como vimos, o evento da fé determina o método teológico, de vez que a natureza do objeto determina o modo de seu acesso cognitivo[14].
Nesta citação Clodovis reconhece que o modo da Revelação do Mistério transcendente se deu – e se dá – no caminho de Deus em nossa direção, e se dá como quenose, encontrado na humildade, na pobreza e na perseguição – Deus das vítimas, dos “diminuídos”. Opção preferencial ou “eleição” que tem uma lógica somente explicada por um amor “justo”, ao estilo da pergunta sobre “quem é o preferido da mãe?” cuja resposta, no ensinamento árabe, é: “o menor até que cresça, o distante até que chegue, o doente até que cure”. Ou seja, para amar a todos com justiça e igualdade é necessário dar preferências. E este é o ponto de vista de Deus – desde Abel até Jesus - como um fio dourado que atravessa a memória bíblica. E cabe à teologia a perigosa ousadia de assumir “o ponto de vista de Deus”. Se não assumir o ponto de vista de Deus e, mais ousado do que o ensinamento árabe sobre o amor preferencial da mãe, o lugar desde onde Deus se revela e se dá a conhecer em carne humana viva hoje, então sim andará por ambigüidades teóricas e práticas, deslocando-se para outros lugares – o lugar da ordem, do poder, da sacralização da instituição e da lei, que levará para uma paganização e uma idolatrização do Deus vivo, petrificando-o. No entanto, essas coisas sim são “de segunda ordem”. Ainda que tenha muito charme, muita beleza litúrgica e poética, muita palavra augusta como “transcendência” e “mistério”. É o lugar do pobre, de carne e osso, lugar de uma alteridade ao mesmo tempo incontornável e irredutível, que se mantém a reserva de transcendência e mistério. Isso, mais que paradoxo, é escândalo. Ora, o escândalo deve integrar a epistemologia teológica cristã: o que a cabeça não resolve, resolve o coração. É que a transcendência, na revelação tipicamente cristã, é de Deus para nós não “em geral”, mas para o lugar dos mais humildes e frágeis. Isso faz com que o seu Mistério não seja apenas um “excesso além”, mas um “excesso aquém”, loucura e escândalo, mas paradoxal poder e sabedoria de Deus, etc., segundo a comparação que, no início da primeira carta aos corintos, Paulo faz entre a memória escandalosa de Cristo crucificado e a comunidade viva de gente sem qualificações segundo o mundo – pobres, mais uma vez, ad nauseam!
O “lugar teológico do pobre” privilegiado cristãmente está intrinsecamente conectado com o pobre como “sujeito eclesial”. Que o pobre mereça atenção, seja objeto de cuidado e amor pastoral, etc., nisso sempre se esteve de acordo em toda a Igreja de todos os tempos e tendências. É o pobre como objeto preferencial de amor e até de inspiração[15]. No documento de Aparecida, a opção preferencial pelos pobres e excluídos foi parar na terceira parte, na promoção da dignidade humana (8.3). É tão forte a impressão de que se trata de destinatários da missão, que o comentário de Stefano Raschietti, na mesma REB de nosso artigo em discussão, tem um subtítulo de seu artigo “O envio ad extra aos pobres e aos outros para comunicar vida plena”(p.944). Este ad extra chega a doer, mas parece coerente com a estrutura do documento. Convida a ir pelo caminho da quenose e da compaixão. Está de acordo com a já famosa afirmação de Bento XVI: a opção preferencial pelos pobres é decorrência intrínseca da cristologia. E, no entanto, o que sustentamos aqui é que há algo mais radical: é “lugar cristológico”, e por isso é lugar teológico: não se encontra Deus cristãmente falando se não no campo dos pastores, naquele que vem de Nazaré, no lugar dos malfeitores crucificados, etc. reais, de hoje, que têm rosto e nome, e não só textuais, tecidos de memórias. Os pobres surgem, assim, como escandoloso sujeito magisterial na Igreja e na sua teologia, portando um testemunho que se torna uma prova nas tentações da Igreja e da teologia: para continuar a ser teologia “cristã”, este reconhecimento e esta conversão ao lugar privilegiado do pobre sem graça e nem mérito é articulum stantis vel cadentis[16].
Clodovis, em seu rico e saboroso texto básico Teoria do Método Teológico compara a teologia da Europa à raposa – sabe muitas coisas – e a teologia da América Latina ao porco-espinho – sabe uma coisa só, mas importante. Embora tenhamos teólogos e teólogas que são correspondem a ambas as metáforas, até porque são europeus que aqui fizeram sua ruptura epistemológica e inculturação ou são latino-americanos que foram se carregar de muitas coisas por lá ou mesmo por aqui, a comparação e o discurso ad nauseam insistindo no fio dourado condutor que ajuda a teologia a permanecer cristã tem algo do oráculo obsessivo dos profetas. Bastam duas citações aqui: “Eu sou o Altíssimo, mas habito junto ao humilde e ao abatido”(Isaias 57, 15 –VERIFICAR tradução) “Fazia justiça ao pobre e ao infeliz (...) não era isso conhecer-me?” (Jeremias 22,16 IDEM). Is 58; Tg.
Finalmente, para não alongar nossa parte no debate, vale recordar a gênese histórica da opção preferencial pelos pobres como categoria teológica, portanto teórica e não só pastoral ou prática ou ad extra, na década entre Medellín e Puebla. Desde então até hoje talvez o maior porco-espinho tenha sido Sobrino. Ele, como todos os demais, teólogos e teólogas, tem uma biografia por trás da bibliografia. Sua convicção firme é de que o discurso teórico da Igreja, com legítima busca de universalidade, na verdade voa para a abstração, e esta acaba servindo de nevoeiro para realidades eclesiais menos evangélicas. Contra o discurso abstrato, loquaz, que em Roma é chamado pelo povo leigo de “curialista”, Sobrino tem insistido tenazmente na “parcialidade” concreta dos pobres em um mundo de interesses em conflito. É ridículo rotular esta ótica como leitura marxista, bastando ler o evangelho para adquirir sensibilidade e para ler inclusive pastoralmente tais parcialidades em conflito, como fazem os documentos mesmos dos bispos latino-americanos. Sobrino aprofunda teoricamente, aproveitando a crítica que já Hegel fazia ao universalismo abstrato de Kant, exigindo uma parcialidade concreta e aberta à realização dialética da universalidade. Se já Hegel viu tudo isso em Cristo, Sobrino e a TdL nada mais fazem que buscar por onde passa Cristo não em uma universalidade abstrata que se atém ao discurso, mas viva hoje: na parte dos pobres, a única parcialidade que realmente pode abrir-se para a inclusão e a universalização escatológica do Reino de Deus e das bem-aventuranças[17]. 
A pluralidade de enfoques ou de óticas em teologias de libertação tornou a árvore frondosa: teologia índia, feminista, afro, ecológica. São teologias críticas e, sobretudo, afirmativas: seu lado positivo e construtivo ajuda a reconhecer sinais ou sacramentos do Reino de Deus. Podem ser chamadas de “teologias para o Reino de Deus”. Mas o tronco continua a ser a intuição nascida durante o Concílio, regada em Medellín, amadurecida entre Medellín e Puebla: a teologia que parte do lugar do pobre, da quenose, revela o Deus do Reino (a expressão “a teologia que ... revela o Deus do Reino” pode ser mal-interpretada como algo pretensioso, como a TL pretendendo ter o monopólio da revelação. Sugiro que encontre uma outra palavra ou expressão para “revela”, algo como: “a teologia que ... , tem como o seu objeto central o Deus do Reino). E, por isso, pode ser chamada de “teologia do Deus do Reino”.
Afinal, é o próprio Clodovis quem afirma que toda teologia, para ser cristã, deve levar a sério a dimensão libertadora da fé:
Pois, se há uma teologia que não assume esse desafio, pode-se questionar se é bastante ‘cristã’ ou se não é também ‘neoliberal’ (...) não ponho mais a teologia da libertação como uma corrente entre outras, brigando por um lugar ao sol e disputando a hegemonia cultural no campo teológico e pastoral. Ponho sim, a libertação social como dimensão constitutiva de toda teologia cristã. Desse modo, o que se requer não é tanto uma opção particular por uma corrente quanto uma opção pela vocação da própria teologia, caso se queira ainda cristã[18].
Parece-nos justo e apropriado reafirmar, depois de tudo, que o pobre não está no lugar de Cristo ou de Deus como um substitutivo, mas que Cristo – Deus mesmo - se encontra privilegiadamente no lugar do pobre, sub specie contraris (VERIFICAR GENITIVO). Isso não é só regime de urgência, é regime de excelência: escândalo e loucura, ruptura epistemológica, sabedoria e teologia verdadeiramente cristã.
Sobre a relação entre Deus e o pobre
Certamente Clodovis não diria que entre Deus e os pobres prefere Deus, mas que prefere Deus porque fica tanto com os pobres como com Deus. No entanto, dificilmente poderá negar que seu interesse real são os pobres. Ora, se o interesse real são os pobres, então não buscará um Deus sem os pobres. E é exatamente a isso que se chama de perspectiva. Ou seja, não se busca simplesmente a Deus, como um físico busca um primeiro princípio e nem como Aristóteles buscava o primeiro motor, um princípio de explicação da contingência. Caso os seus interesses não fossem os pobres, buscaria um Deus que o mantivesse afastado e de consciência em paz. Não basta ler a Bíblia e nem a Tradição e nem Magistério para esse vínculo. Ou se parte dos pobres e se encontra ao Mistério Divino fragilizado nas fissuras de suas vidas, ou não se encontram os pobres, porque a idolatria é capaz de suprir os arquétipos religiosos sem as irmãs e os irmãos. Ao propor uma Igreja Samaritana, Aparecida qualifica um modo de ser capaz de manter a fidelidade à presença divina em meio à fragilidade histórica e humana.

Uma questão que foi mencionada rapidamente, na discussão sobre se de Cristo necessariamente chega ao pobre, é como o pobre é visto quando se parte de Cristo para chegar ao pobre. O pobre pode ser visto como um mero objeto de assistência ou de evangelização. A história do cristianismo está cheia de pessoas de fé que a partir da sua fé trabalham em prol dos pobres, mas na perspectiva de levar a eles a “libertação” ou melhores condições de vida. Eles são sempre objetos da ação da Igreja. A TL é mais do que trabalhar em prol dos pobres, mas compreende os pobres como co-participantes ou como agentes principais (essa é uma questão polêmica no interior da TL) na luta pela libertação.
Os pobres não devem ser somente objetos da ação solidária da Igreja e da evangelização, mas também como “portadores” da revelação da presença de Cristo entre nós. Além disso, é preciso enfatizar que os pobres podem e devem ser também agentes das lutas (não sujeitos históricos, pois esse conceito é questionável), sujeitos lutando para a afirmação da sua dignidade e sua subjetividade. A TL se destaca por assumir os 2 último pontos, e não somente por se preocupar com os pobres.


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[1] Cf. Teologia e Prática. Petrópolis: Vozes, 1993. 2ª edição, com prefácio autocrítico, em que prefere substituir “Teologia 1” e “Teologia 2” por “Momento 1” e “Momento 2” da Teologia. Teoria do Método Teológico. Petrópolis: Vozes, 1998.
[2] Cf. In: SUSIN Luiz Carlos, O mar se abriu. São Paulo: Soter/Loyola, pp.79-95.
[3] Cf. In: SUSIN Luiz Carlos, Sarça Ardente. Teologia na América Latina: Prospectivas. São Paulo: Soter/Paulinas, 2000. pp.145-187.
[4] Cf. In: ELLACURÍA Ignacio & SOBRINO Jon, Mysterium Liberationis. Madrid: Trotta, 1990, tomo I, pp. 81-82.
[5] O oranizador é o prof. Pe. Ney de Souza, e reúne textos de professores da Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, de São Paulo, e da Faculdade de Teologia da Universidade Católica de Campinas. São Paulo: Paulinas, 2007.
[6] Cf. Teoria do Método Teológico. Petrópolis: Vozes, 1998. p.119-123.
[7] Cf. Teologia trinitária............
[8] O livro de Peterson é de 1935, sob o impacto da ascensão do fascismo e do nazismo.
[9] Clodovis Boff vê nesse período o risco de “usurpar a função magisterial dos Pastores” (cf. Justificação da Teologia ontem e hoje”, Studium 1 [2007] p. 111-120, aqui, 112). Que também os Pastores estejam sujeitos a usurpações, não se menciona e talvez não fosse pertinente.
[10] Cf. p. 1006. Em outro lugar é ainda mais explícito ao afirmar ser “a Teologia  que arranca daí [ponto de partida ou perspectiva do pobre], como é a TdL, só pode ser ‘um discurso de segunda ordem’, que supõe em sua base uma ‘teologia primeira’ (p. 1004).
[11] Apud ALTEMEYER JÚNIOR Fernando, A arte de construir remos: sobre a polêmica Teologia da Libertação. In: ...............revista Puc/Paulinas
[12] Em Retorno à Arché da Teologia. In: SUSIN Luiz Carlos, Sarça Ardente. Opus cit. P154.
[13] Ibid. p.156.
[14] Ibid. p.156-157.
[15] Cf. VIGIL José Maria, Opção preferencial pelos pobres (CERTIFICAR) In: SUSIN Luiz Carlos, Sarça ardente. Op. Cit. P........
[16] Cf. SOBRINO Jon, La autoridad doctrinal del pueblo de Dios. Concilium 200 (1985) pp. 71-81.
[17] Cf, para não sobrecarregar com toda a bibliografia de sobrino, a última publicação: Fuera de los pobres no hay salvación...........
[18] BOFF Clodovis, Como vejo a teologia trinta anos depois. In: SUSIN Luiz Carlos, O mar se abriu. Op.cit. p90.


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