O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

9 de agosto de 2013

Perfeição ou santidade

Esse texto me foi enviado pela amiga  Monica Valentim  como comentário a uma postagem minha numa rede social sobre santidade. O texto é maravilhoso e merece ser lido e refletido. Na verdade parece que é mais completo que o  que aparece no livro de mesmo nome do autor.
O meu agradecimento à Monica e ao Pe. Netto que não conheço, mas curto desde já o desejo de não só conhecê-lo, como poder manter boas conversas com ele.



 P. José Antônio Netto de Oliveira, S.J. 

 Não é necessário um grande esforço de observação para notar que muitos cristãos, e particularmente cristãos consagrados, não vivem sua fé com alegria, não dão um testemunho existencial de que o Evangelho é uma alvissareira Boa Notícia para todo ser humano, uma libertação de todo medo diante da revelação, em Jesus Cristo, da inexplicável misericórdia, do perdão, do amor incondicional de Deus para com suas criaturas.
Cristãos e cristãos consagrados parecem viver um interminável sentimento de culpa diante de Deus, sempre sentindo-se em dívida e conseqüentemente experimentando uma separação - ou pelo menos distância e frieza - no relacionamento com Ele. O Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, revelado como infinita ternura, misericórdia, amor, proximidade para com o homem pecador não é então percebido como Pai, mas como um juiz mal humorado, eternamente esquadrinhando nossa vida atrás de infidelidades, desobediências e fraquezas. Em vez da intimidade, da proximidade e da alegria que Jesus manifesta no seu relacionamento com o Pai, nós, como Adão no Paraíso, sentimos medo de Deus e procuramos esconder-nos.
Nós, cristãos, nem sempre temos sabido refletir em nossos próprios rostos a alegria de Deus: desde o escrúpulo até a angústia, desde a estreiteza de espírito até a inimizade para com o corpo, desde um ascetismo não integrado até um legalismo sem calor... damos demasiadas vezes a impressão de que somos pessoas mais presas do que libertadas por nosso Deus.
As causas desses sentimentos e comportamentos dos cristãos, pouco reveladores da Boa Notícia de Jesus, podem ser procuradas em múltiplas direções: no tipo de educação religiosa recebida, na psicologia pessoal mais ou menos propensa a sentimentos de culpa e de escrupulosidade, na experiência de se ter sido ou não amado com gratuidade, na experiência pessoal de Deus, nas múltiplas camadas teológicas e ideológicas que se foram superpondo, obscurecendo muitas vezes a experiência original do cristianismo e, conseqüentemente, da alegria cristã.
Confundir santidade e perfeição, com a conotação que a palavra perfeição tem aos nossos ouvidos, hoje, é condenar-nos a uma eterna insatisfação conosco mesmos, a uma auto-condenação permanente, porque percebemos que somos a cada dia mais imperfeitos, na medida mesmo em que avançamos na vida. Passar desse sentimento à conclusão de que a santidade não é para nós... é um pulo. Desistimos, então, da santidade, não ouvimos mais o apelo de Deus -"sede santos porque eu sou santo"- e nos condenamos à mediocridade na vida cristã.
A perfeição
A interpretação da santidade como perfeição tem suas raízes no Evangelho de São Mateus: mais particularmente em Mt 5,48: "Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito". Examinemos rapidamente este texto.
Devemos notar, primeiramente, que a perfeição, segundo o Antigo Testamento, não é um atributo de Deus. Em nenhuma ocasião o Antigo Testamento chama Deus de "perfeito". Chama-o de "Santo". Nos evangelhos, o adjetivo "perfeito" (teleios) aparece somente duas vezes e ambas em Mateus: Mt 5,48 "Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito" e Mt 19,21 "Se queres ser perfeito" pergunta Jesus ao jovem rico.
Na mentalidade hebraica a perfeição é antes um atributo humano que expressa a idéia de totalidade, aplicando-se ao que é completo, intacto, àquilo que de nada carece. Quando em Mt 19,21, Jesus diz: "Se queres ser perfeito", quer significar: se queres que nada te falte, se queres não ter limite algum...
Ao afirmar "sede perfeitos como vosso Pai Celestial é perfeito", Mateus estaria projetando em Deus uma qualidade propriamente humana. Encontramo-nos diante de um antropomorfismo: (Antropomorfismo é uma forma de pensamento que atribui características ou aspectos humanos a Deus,elementos da natureza, animais e constituintes da realidade em geral.)
Mateus nos convida a imitar em Deus uma qualidade que não é propriamente divina, mas que é a projeção em Deus de um ideal humano.A perspectiva de Mateus aparentemente parece ser mais moralista que teológica: sua atenção está centrada no dever que se impõe ao homem, na conduta que este deve adotar com relação a seus irmãos para cumprir perfeitamente a vontade divina.
Verifica-se, pois, que neste texto de Mateus, o ponto de partida da santidade já não seria Deus em primeiro lugar, mas o que o homem deve fazer. A atenção se desloca da misericórdia de Deus - como na versão de Lucas - "Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso", para a perfeição do homem, como um progresso no desenvolvimento ontológico do ser humano. A santidade passa a ser vista como a perfeição no cumprimento da lei, manifestação da vontade divina e na prática das boas obras, frutos, basicamente, do esforço do homem.
Santidade, perfeição e pecado
Outra realidade que chama nossa atenção é o fato de que os santos canonizados pela Igreja nunca terem se considerado santos. Antes, muito pelo contrário, todos se confessaram grandes pecadores, até o fim de suas vidas, e praticaram penitências por seus pecados que nos assustam.
Apesar dessa consciência de serem imperfeitos e pecadores, eram santos, e a Igreja reconheceu sua santidade, canonizando-os. Não existe, pois, uma incompatibilidade radical entre santidade e pecado. Pode-se ser simultaneamente santo e pecador.
Se passarmos à relação entre pecado e perfeição aí encontraremos essa incompatibilidade: não se pode ser simultaneamente perfeito e pecador uma vez que o pecado é a imperfeição por excelência. A perfeição exclui necessariamente o pecado. Esta breve consideração poderá ajudar a entender melhor as reflexões que se seguem.
Ter pecado e ser pecador
É igualmente importante para a intelecção do que se segue captar a distinção entre ter pecado(s) e ser pecador.
Ter pecado(s) é a consciência que temos de ter falhado objetivamente no amor para com Deus, para conosco mesmos ou para com o próximo. Antes de nos dirigirmos ao sacramento da penitência, costumamos parar, fazer um exame de consciência perguntando-nos "quais os pecados que tenho", quais minhas faltas objetivas de amor desde a última confissão. Comunicamos, então, ao sacerdote, os pecados que "temos" e, se estamos arrependidos, somos perdoados, Deus nos assegura o seu perdão. Saindo da confissão, já não temos mais pecados.
Ser pecador é a consciência que temos de nossa fragilidade. Saindo da confissão não temos mais pecado, mas reconhecemos que estamos num estado de fraqueza, que somos vasos de barro, muito quebradiços. O pecado atingiu, de certa maneira, algo de profundo em nós, atingiu de algum modo o nosso ser, o nosso coração, como diz a Bíblia (é do coração que saem os maus pensamentos, assassinatos etc.). Encontramo-nos todos numa situação de vulnerabilidade. Cada um percebe no seu "coração" certas tendências inatas para o mal e para o pecado que os teólogos chamam de concupiscências: tendências para o orgulho, a avareza, a gula, a luxúria, a preguiça etc.. É porque estamos neste estado de fragilidade, é porque somos pecadores que voltamos novamente a cometer pecados e assim teremos de confessar-nos uma e outra vez até o final de nossa vida.
Reconhecer não somente que temos pecado, mas também que somos pecadores, é abrir-se para a verdade do próprio ser, é o início do esvaziamento de si, é começar a descer à verdadeira humildade diante de Deus e diante dos homens.
Impasses da perfeição
O conceito de perfeição que cada um tem em sua própria cabeça não é puramente teórico, porque o conceito de perfeição forma-se ao longo da vida, é existencial; Portanto, vem marcado por cargas afetivas desde a primeira infância: os comportamentos corretos, perfeitos, eram premiados; os imperfeitos, incorretos, eram punidos. O conceito de perfeição foi-se formando em nós a partir de nossa educação, a partir de experiências integradoras ou traumatizantes, de sentimentos de culpabilidade e castigo, ou de libertação e perdão. Normalmente terminamos com um conceito de perfeição que se identifica, no plano pessoal, com não ter defeitos, não ter vícios, não ter traumas nem marcas psíquicas negativas, não ter nenhuma fraqueza, nenhuma falha, nenhum pecado etc.
A busca da perfeição é um projeto do homem, um ideal humano. Trata-se de um projeto fechado dentro do próprio eu orgulhoso, que exige o máximo de si, o máximo de esforço para não falhar em ponto algum, uma vez que o perfeccionista está convencido de que somente será amado por Deus e pelos demais se for perfeito. Nesse esforço ele tende a contar exclusivamente consigo mesmo, prescindindo de Deus e dos outros.
A perfeição estaria no fim do caminho que traçamos para nós, do ideal que nos propusemos, ou então no topo de uma escada que decidimos subir com nosso esforço, galgando degrau por degrau, eliminando vícios e adquirindo virtudes numa busca tensa. A perfeição não suporta o pecado, uma vez que o perfeccionista vê o pecado não como uma ruptura de laços de amor, não algo em relação a um outro, mas como um problema pessoal em relação ao próprio ideal: "falhei no meu ideal, no ideal que me havia proposto". Esta verificação é sempre sentida como humilhação.
O perfeccionista procura viver apenas com os melhores fragmentos de si mesmo, aqueles que estão conforme com as normas, com o ideal buscado, com o que pensa que os outros esperam dele. O resto, as fraquezas, as tendências obscuras, os fragmentos dos quais está menos orgulhoso, ficam trancados para sempre nas margens da consciência. Eles são recusados e negados. Desse modo, a chaga secreta que está fermentando, supurando e contaminando a vida nunca é reconhecida, nunca vem à luz. A perfeição, humilhada pelo pecado e pelas fraquezas, tende a fechar a pessoa sobre si, e fechá-la para Deus e para os outros. O amor desaparece. O perfeccionista tende a voltar-se sobre si, tornando-se seu próprio juiz e autocondenando-se. Após certo tempo de luta, sua vida pode tornar-se amargurada: amargurada consigo, com Deus, com os outros, com tudo.
Sede misericordiosos
A compaixão e a misericórdia são os mais característicos atributos divinos na teologia de Israel. Lucas nos convida, portanto, a imitar uma maneira de ser que é, antes de mais nada, a de Deus. Mostrando-se misericordiosos, os discípulos de Jesus se assemelham ao exemplo que Deus nos dá. A atenção aqui está voltada para a visão dos sentimentos da misericórdia de Deus para com seus filhos, na solicitude do Senhor para com os pecadores, os mais desamparados e necessitados. A conduta do homem deve se regular, deve imitar a conduta de Deus.
O versículo 6,36 conclui de modo natural à instrução sobre o amor aos inimigos. Lucas começa com uma recomendação: v. 27 "Amai os vossos inimigos..." Esta recomendação é reforçada por uma primeira consideração em forma negativa: "não imiteis os pagãos e os publicanos, que só amam aqueles que os amam" (v. 32). Finalmente uma segunda consideração em forma positiva convida a imitar a Deus: "mostrai-vos como filhos do Altíssimo... e sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso".
Os exegetas nos asseguram que esta versão de Lucas reflete, mais exatamente que Mateus, o pensamento de Jesus, que nos convida a assemelhar-nos a seu Pai reproduzindo em nossas vidas os sentimentos de compaixão e misericórdia que Ele tem para com os homens. Por meio dessa conduta com os irmãos aderimos a Deus, reforça-se nosso vínculo de pertença a Ele e, nesse sentido, somos santos como Ele é santo.
O tema da santidade, por conseguinte, deve ser reconduzido à interpretação que Jesus dá da misericórdia de Deus e ao que, de tal imagem paterna deriva, como norma e caminho para a conduta do homem e sua pertença a Deus.
A santidade
Em vez de optarmos pela perfeição, podemos optar pela santidade, e santidade está relacionada com compaixão, com misericórdia, com amor, com esse convite que Deus nos faz: "Sede santos porque Eu sou santo". Deus é amor, e nisso consiste a santidade de Deus. Santificar-se é, pois, abrir-se para o amor, dentro mesmo dessa nossa realidade de criaturas limitadas, frágeis, pecadoras, “vasos de barro”, como diz São Paulo. Ora, essa capacidade de amar nos é dada por Deus, é um dom de Deus.
A santidade, portanto, me é dada por Deus e me é dada já, imediatamente: sou amado por Deus, sem condições, aqui e agora, com todas as minhas imperfeições, pecados, fraquezas, debilidades, limitações, traumas... e esse amor de Deus, sem condições, me torna capaz de amar agora, de fazer o bem agora, de servir agora, de ser santo agora, apesar de minhas imperfeições e fraquezas. A grande ilusão é pensar que só poderemos amar, servir, fazer o bem quando formos perfeitos. Somos santos agora e devemos amar agora, embora sejamos também pecadores: somos uma Igreja pecadora e santa.
A santidade nunca é humilhada pelo pecado, porque a santidade é humilde. Somos humilhados quando pensamos ser alguém, quando nos colocamos num pedestal, quando nos julgamos melhores do que os outros... somos humildes quando aceitamos ser pobres, ser frágeis, limitados, pecadores, mas amados na nossa pobreza e fragilidade.
A santidade é recusa de deixar-se fechar no próprio pecado, é a capacidade de ultrapassar as próprias condenações porque Outro nos acolhe e nos ama, apesar de nosso pecado. A superação da auto-condenação está na entrega da vida a Deus, em saber-se amado como pecador, porque pecadores seremos sempre até o fim da vida. Santidade é a certeza de não podermos nos salvar a nós mesmos e acolher, na ação de graças, uma salvação que nos é oferecida gratuitamente por Deus que nos ama. A santidade nunca leva ao fechamento, antes se abre para Deus acolhendo sempre o seu perdão e abre-se para os outros no amor, no serviço e no dom. Santidade é a recusa de ser o seu próprio juiz, deixando o juízo para Alguém que nos ama e vela por nós com amor. A santidade liberta, é confiante, é alegre; leva-nos a passar da recusa e condenação de nós mesmos e dos outros para a descoberta de nós e dos outros.
Se a perfeição era colocada em termos de uma subida laboriosa de uma escada, a santidade pode ser também representada por esse símbolo da escada, somente que se trata agora de uma descida progressiva a caminho de uma radical humildade. De fato, se meditamos atentamente o evangelho, encontramos Jesus convidando continuamente seus discípulos a uma descida: quem quiser ser o primeiro, seja o último, o servidor de todos; quem se exalta será humilhado, quem se humilha será exaltado; se não vos tornardes como crianças não entrareis no Reino; felizes os pobres porque deles é o Reino.
Trata-se de um esvaziar-se progressivo de toda auto-suficiência e orgulho, de toda ambição de riquezas, de prestígio e projeção, de poder de dominação e opressão, no seguimento do Filho de Deus que "esvaziou-se a si mesmo tomando nossa condição humana". O orgulho fecha o homem sobre si e o impede de amar, de ser santo. A humildade é o reconhecimento pacífico da própria condição de criatura pecadora e frágil, mas amada por Deus, é a porta para a santidade, isto é, para poder amar os irmãos e irmãs pecadores e frágeis como somos amados embora pecadores e frágeis.
Permanecer aí, no fundo do templo, como o publicano da parábola, reconhecendo a própria pobreza, numa súplica permanente: "tem piedade de mim, Senhor, porque sou um pecador", celebrando a misericórdia de Deus para com todos os homens, é tornar-se vulnerável à dor, ao sofrimento, à falta de vida e de sentido de muitos irmãos no mundo, é começar a ter compaixão, misericórdia, é começar a amar, é caminhar para a santidade: "sede santos porque eu sou santo".
Processo evolutivo
Terminemos com uma página de rara beleza sobre a pureza do coração e conseqüentemente sobre a santidade, que se encontra no livro Sabedoria de um pobre, de Elói Leclerc (Editorial Franciscana, Braga, 1975, pp.137-140).
"...Depois de um momento de silêncio, Francisco perguntou a Leão: Irmão, sabes acaso o que é a pureza de coração? - É não termos falta alguma de que nos acusemos, respondeu Leão sem hesitar. - Então compreendo a tua tristeza, disse Francisco, porque temos sempre alguma coisa de que nos acusar. - Sim, concordou Leão, e é precisamente isso que faz com que eu perca a esperança de chegar um dia à pureza de coração.
Ah! Frei Leão, acredita-me, retorquiu Francisco, não te preocupes tanto com a pureza de tua alma. Volta o olhar para Deus. Regozija-te por Ele ser todo santidade. Dá-lhe graças por causa dele mesmo. Isso é que é, irmãozinho, ter o coração puro. E quando estiveres voltado para Deus, não voltes a debruçar-te sobre ti. Não perguntes a ti próprio em que ponto estás em relação a Deus. A tristeza de não sermos perfeitos, de nos descobrirmos pecadores é, ainda, um sentimento humano, demasiadamente humano. É preciso que eleves o teu olhar mais alto, muito mais alto. Há Deus, a imensidade de Deus e o seu inalterável esplendor. O coração puro é aquele que não cessa de adorar o Senhor vivo e verdadeiro; o que toma um interesse profundo pela própria vida de Deus e é capaz, no meio de todas as suas misérias, de vibrar com a eterna inocência e a eterna alegria de Deus. Semelhante coração é, há um tempo, despojado e cumulado. Basta-lhe que Deus seja Deus. É mesmo nisso que ele encontra toda a sua paz, todo o seu amor. E então, é o próprio Deus que é toda a sua santidade.
Deus, no entanto, exige o nosso esforço e a nossa fidelidade, observou Leão.
Sim, sem dúvida, respondeu Francisco. Mas a santidade não é uma realização do nosso eu, nem uma plenitude que nos damos a nós mesmos. Acima de tudo ela é um vazio que descobrimos em nós, que aceitamos e que Deus vem encher na medida em que nos abrimos à sua plenitude. O nosso nada, compreendes, quando é aceito, transforma-se no espaço vazio onde Deus pode, ainda, criar. O Senhor não deixa que ninguém lhe roube a sua glória. Ele é o Senhor, o único, o Santo. Toma, porém o pobre pela mão, tira-o da lama e fá-lo sentar no meio dos príncipes do seu povo a fim de que ele veja a sua glória. Deus torna-se, então o céu da sua alma.
Contemplar a glória de Deus, Frei Leão, descobrir que Deus é Deus, eternamente Deus para além do que nós somos ou possamos ser, alegrar-se, em cheio, com aquilo que Ele é, extasiar-se diante de sua eterna juventude e dar-lhe graças por causa da sua indefectível misericórdia, eis a exigência mais profunda desse amor que o espírito do Senhor não cessa de derramar em nossos corações. Ter o coração puro é isto. Mas esta pureza não se obtém à força de punhos e de tensão.
Que fazer para a alcançar? perguntou Leão.
Basta simplesmente nada guardar para si. Nem sequer essa percepção aguda da nossa miséria. Desprender-se de tudo. Aceitar ser pobre. Renunciar a tudo o que é pesado, inclusive ao peso das nossas faltas. Já não ver senão a glória do Senhor e deixar-se iluminar por ela. Deus é, isto basta. O coração como a cotovia ébria de espaço e de azul abandonou todo e qualquer cuidado, toda e qualquer inquietação. O seu desejo de perfeição mudou-se num simples e puro querer de Deus.
Leão escutava com ar grave, enquanto ia caminhando adiante de seu pai. Porém, à medida que avançava, sentia que o coração se lhe tornava leve e que uma grande paz o invadia".
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P. José Antônio Netto de Oliveira, S.J. Membro do Centro de Espiritualidade de Itaici. Atualmente, dedica-se à orientação espiritual dos estudantes jesuítas brasileiros. Este é um trecho de um artigo publicado na Revista de Espiritualidade Inaciana de Itaici


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