Esse texto me foi enviado pela amiga Monica Valentim como comentário a uma postagem minha numa rede social sobre santidade. O texto é maravilhoso e merece ser lido e refletido. Na verdade parece que é mais completo que o que aparece no livro de mesmo nome do autor.
O meu agradecimento à Monica e ao Pe. Netto que não conheço, mas curto desde já o desejo de não só conhecê-lo, como poder manter boas conversas com ele.
P. José Antônio Netto de Oliveira, S.J.
Não é necessário um grande esforço de
observação para notar que muitos cristãos, e particularmente cristãos
consagrados, não vivem sua fé com alegria, não dão um testemunho existencial de
que o Evangelho é uma alvissareira Boa Notícia para todo ser humano, uma
libertação de todo medo diante da revelação, em Jesus Cristo, da inexplicável
misericórdia, do perdão, do amor incondicional de Deus para com suas criaturas.
Cristãos e cristãos consagrados parecem
viver um interminável sentimento de culpa diante de Deus, sempre sentindo-se em
dívida e conseqüentemente experimentando uma separação - ou pelo menos
distância e frieza - no relacionamento com Ele. O Pai de Nosso Senhor Jesus
Cristo, revelado como infinita ternura, misericórdia, amor, proximidade para
com o homem pecador não é então percebido como Pai, mas como um juiz mal
humorado, eternamente esquadrinhando nossa vida atrás de infidelidades,
desobediências e fraquezas. Em vez da intimidade, da proximidade e da alegria
que Jesus manifesta no seu relacionamento com o Pai, nós, como Adão no Paraíso,
sentimos medo de Deus e procuramos esconder-nos.
Nós, cristãos, nem sempre temos sabido
refletir em nossos próprios rostos a alegria de Deus: desde o escrúpulo até a
angústia, desde a estreiteza de espírito até a inimizade para com o corpo,
desde um ascetismo não integrado até um legalismo sem calor... damos demasiadas
vezes a impressão de que somos pessoas mais presas do que libertadas por nosso
Deus.
As causas desses sentimentos e
comportamentos dos cristãos, pouco reveladores da Boa Notícia de Jesus, podem
ser procuradas em múltiplas direções: no tipo de educação religiosa recebida,
na psicologia pessoal mais ou menos propensa a sentimentos de culpa e de
escrupulosidade, na experiência de se ter sido ou não amado com gratuidade, na
experiência pessoal de Deus, nas múltiplas camadas teológicas e ideológicas que
se foram superpondo, obscurecendo muitas vezes a experiência original do
cristianismo e, conseqüentemente, da alegria cristã.
Confundir santidade e perfeição, com a
conotação que a palavra perfeição tem aos nossos ouvidos, hoje, é condenar-nos
a uma eterna insatisfação conosco mesmos, a uma auto-condenação permanente, porque
percebemos que somos a cada dia mais imperfeitos, na medida mesmo em que
avançamos na vida. Passar desse sentimento à conclusão de que a santidade não é
para nós... é um pulo. Desistimos, então, da santidade, não ouvimos mais o
apelo de Deus -"sede santos porque eu sou santo"- e nos condenamos à
mediocridade na vida cristã.
A perfeição
A interpretação da santidade como
perfeição tem suas raízes no Evangelho de São Mateus: mais particularmente em
Mt 5,48: "Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito".
Examinemos rapidamente este texto.
Devemos notar, primeiramente, que a
perfeição, segundo o Antigo Testamento, não é um atributo de Deus. Em nenhuma
ocasião o Antigo Testamento chama Deus de "perfeito". Chama-o de
"Santo". Nos evangelhos, o adjetivo "perfeito" (teleios)
aparece somente duas vezes e ambas em Mateus: Mt 5,48 "Sede perfeitos como
vosso Pai celestial é perfeito" e Mt 19,21 "Se queres ser
perfeito" pergunta Jesus ao jovem rico.
Na mentalidade hebraica a perfeição é
antes um atributo humano que expressa a idéia de totalidade, aplicando-se ao
que é completo, intacto, àquilo que de nada carece. Quando em Mt 19,21, Jesus
diz: "Se queres ser perfeito", quer significar: se queres que nada te
falte, se queres não ter limite algum...
Ao afirmar "sede perfeitos como
vosso Pai Celestial é perfeito", Mateus estaria projetando em Deus uma
qualidade propriamente humana. Encontramo-nos diante de um antropomorfismo:
(Antropomorfismo é uma forma de pensamento que atribui características ou
aspectos humanos a Deus,elementos da natureza, animais e constituintes da
realidade em geral.)
Mateus nos convida a imitar em Deus uma
qualidade que não é propriamente divina, mas que é a projeção em Deus de um
ideal humano.A perspectiva de Mateus aparentemente parece ser mais moralista
que teológica: sua atenção está centrada no dever que se impõe ao homem, na
conduta que este deve adotar com relação a seus irmãos para cumprir
perfeitamente a vontade divina.
Verifica-se, pois, que neste texto de
Mateus, o ponto de partida da santidade já não seria Deus em primeiro lugar,
mas o que o homem deve fazer. A atenção se desloca da misericórdia de Deus -
como na versão de Lucas - "Sede misericordiosos como vosso Pai é
misericordioso", para a perfeição do homem, como um progresso no
desenvolvimento ontológico do ser humano. A santidade passa a ser vista como a
perfeição no cumprimento da lei, manifestação da vontade divina e na prática
das boas obras, frutos, basicamente, do esforço do homem.
Santidade, perfeição e pecado
Outra realidade que chama nossa atenção
é o fato de que os santos canonizados pela Igreja nunca terem se considerado
santos. Antes, muito pelo contrário, todos se confessaram grandes pecadores,
até o fim de suas vidas, e praticaram penitências por seus pecados que nos
assustam.
Apesar dessa consciência de serem
imperfeitos e pecadores, eram santos, e a Igreja reconheceu sua santidade,
canonizando-os. Não existe, pois, uma incompatibilidade radical entre santidade
e pecado. Pode-se ser simultaneamente santo e pecador.
Se passarmos à relação entre pecado e
perfeição aí encontraremos essa incompatibilidade: não se pode ser
simultaneamente perfeito e pecador uma vez que o pecado é a imperfeição por
excelência. A perfeição exclui necessariamente o pecado. Esta breve consideração
poderá ajudar a entender melhor as reflexões que se seguem.
Ter pecado e ser pecador
É igualmente importante para a
intelecção do que se segue captar a distinção entre ter pecado(s) e ser
pecador.
Ter pecado(s) é a consciência que temos
de ter falhado objetivamente no amor para com Deus, para conosco mesmos ou para
com o próximo. Antes de nos dirigirmos ao sacramento da penitência, costumamos
parar, fazer um exame de consciência perguntando-nos "quais os pecados que
tenho", quais minhas faltas objetivas de amor desde a última confissão.
Comunicamos, então, ao sacerdote, os pecados que "temos" e, se
estamos arrependidos, somos perdoados, Deus nos assegura o seu perdão. Saindo
da confissão, já não temos mais pecados.
Ser pecador é a consciência que temos de
nossa fragilidade. Saindo da confissão não temos mais pecado, mas reconhecemos
que estamos num estado de fraqueza, que somos vasos de barro, muito
quebradiços. O pecado atingiu, de certa maneira, algo de profundo em nós,
atingiu de algum modo o nosso ser, o nosso coração, como diz a Bíblia (é do
coração que saem os maus pensamentos, assassinatos etc.). Encontramo-nos todos
numa situação de vulnerabilidade. Cada um percebe no seu "coração"
certas tendências inatas para o mal e para o pecado que os teólogos chamam de
concupiscências: tendências para o orgulho, a avareza, a gula, a luxúria, a
preguiça etc.. É porque estamos neste estado de fragilidade, é porque somos
pecadores que voltamos novamente a cometer pecados e assim teremos de
confessar-nos uma e outra vez até o final de nossa vida.
Reconhecer não somente que temos pecado,
mas também que somos pecadores, é abrir-se para a verdade do próprio ser, é o
início do esvaziamento de si, é começar a descer à verdadeira humildade diante
de Deus e diante dos homens.
Impasses da perfeição
O conceito de perfeição que cada um tem
em sua própria cabeça não é puramente teórico, porque o conceito de perfeição
forma-se ao longo da vida, é existencial; Portanto, vem marcado por cargas
afetivas desde a primeira infância: os comportamentos corretos, perfeitos, eram
premiados; os imperfeitos, incorretos, eram punidos. O conceito de perfeição
foi-se formando em nós a partir de nossa educação, a partir de experiências
integradoras ou traumatizantes, de sentimentos de culpabilidade e castigo, ou
de libertação e perdão. Normalmente terminamos com um conceito de perfeição que
se identifica, no plano pessoal, com não ter defeitos, não ter vícios, não ter
traumas nem marcas psíquicas negativas, não ter nenhuma fraqueza, nenhuma falha,
nenhum pecado etc.
A busca da perfeição é um projeto do
homem, um ideal humano. Trata-se de um projeto fechado dentro do próprio eu
orgulhoso, que exige o máximo de si, o máximo de esforço para não falhar em
ponto algum, uma vez que o perfeccionista está convencido de que somente será
amado por Deus e pelos demais se for perfeito. Nesse esforço ele tende a contar
exclusivamente consigo mesmo, prescindindo de Deus e dos outros.
A perfeição estaria no fim do caminho
que traçamos para nós, do ideal que nos propusemos, ou então no topo de uma
escada que decidimos subir com nosso esforço, galgando degrau por degrau,
eliminando vícios e adquirindo virtudes numa busca tensa. A perfeição não
suporta o pecado, uma vez que o perfeccionista vê o pecado não como uma ruptura
de laços de amor, não algo em relação a um outro, mas como um problema pessoal
em relação ao próprio ideal: "falhei no meu ideal, no ideal que me havia
proposto". Esta verificação é sempre sentida como humilhação.
O perfeccionista procura viver apenas
com os melhores fragmentos de si mesmo, aqueles que estão conforme com as
normas, com o ideal buscado, com o que pensa que os outros esperam dele. O
resto, as fraquezas, as tendências obscuras, os fragmentos dos quais está menos
orgulhoso, ficam trancados para sempre nas margens da consciência. Eles são
recusados e negados. Desse modo, a chaga secreta que está fermentando,
supurando e contaminando a vida nunca é reconhecida, nunca vem à luz. A
perfeição, humilhada pelo pecado e pelas fraquezas, tende a fechar a pessoa
sobre si, e fechá-la para Deus e para os outros. O amor desaparece. O
perfeccionista tende a voltar-se sobre si, tornando-se seu próprio juiz e
autocondenando-se. Após certo tempo de luta, sua vida pode tornar-se
amargurada: amargurada consigo, com Deus, com os outros, com tudo.
Sede misericordiosos
A compaixão e a misericórdia são os mais
característicos atributos divinos na teologia de Israel. Lucas nos convida,
portanto, a imitar uma maneira de ser que é, antes de mais nada, a de Deus.
Mostrando-se misericordiosos, os discípulos de Jesus se assemelham ao exemplo
que Deus nos dá. A atenção aqui está voltada para a visão dos sentimentos da
misericórdia de Deus para com seus filhos, na solicitude do Senhor para com os
pecadores, os mais desamparados e necessitados. A conduta do homem deve se
regular, deve imitar a conduta de Deus.
O versículo 6,36 conclui de modo natural
à instrução sobre o amor aos inimigos. Lucas começa com uma recomendação: v. 27
"Amai os vossos inimigos..." Esta recomendação é reforçada por uma
primeira consideração em forma negativa: "não imiteis os pagãos e os
publicanos, que só amam aqueles que os amam" (v. 32). Finalmente uma
segunda consideração em forma positiva convida a imitar a Deus:
"mostrai-vos como filhos do Altíssimo... e sede misericordiosos como o
vosso Pai é misericordioso".
Os exegetas nos asseguram que esta
versão de Lucas reflete, mais exatamente que Mateus, o pensamento de Jesus, que
nos convida a assemelhar-nos a seu Pai reproduzindo em nossas vidas os
sentimentos de compaixão e misericórdia que Ele tem para com os homens. Por
meio dessa conduta com os irmãos aderimos a Deus, reforça-se nosso vínculo de
pertença a Ele e, nesse sentido, somos santos como Ele é santo.
O tema da santidade, por conseguinte,
deve ser reconduzido à interpretação que Jesus dá da misericórdia de Deus e ao
que, de tal imagem paterna deriva, como norma e caminho para a conduta do homem
e sua pertença a Deus.
A santidade
Em vez de optarmos pela perfeição,
podemos optar pela santidade, e santidade está relacionada com compaixão, com
misericórdia, com amor, com esse convite que Deus nos faz: "Sede santos
porque Eu sou santo". Deus é amor, e nisso consiste a santidade de Deus.
Santificar-se é, pois, abrir-se para o amor, dentro mesmo dessa nossa realidade
de criaturas limitadas, frágeis, pecadoras, “vasos de barro”, como diz São
Paulo. Ora, essa capacidade de amar nos é dada por Deus, é um dom de Deus.
A santidade, portanto, me é dada por
Deus e me é dada já, imediatamente: sou amado por Deus, sem condições, aqui e
agora, com todas as minhas imperfeições, pecados, fraquezas, debilidades,
limitações, traumas... e esse amor de Deus, sem condições, me torna capaz de
amar agora, de fazer o bem agora, de servir agora, de ser santo agora, apesar
de minhas imperfeições e fraquezas. A grande ilusão é pensar que só poderemos
amar, servir, fazer o bem quando formos perfeitos. Somos santos agora e devemos
amar agora, embora sejamos também pecadores: somos uma Igreja pecadora e santa.
A santidade nunca é humilhada pelo
pecado, porque a santidade é humilde. Somos humilhados quando pensamos ser
alguém, quando nos colocamos num pedestal, quando nos julgamos melhores do que
os outros... somos humildes quando aceitamos ser pobres, ser frágeis,
limitados, pecadores, mas amados na nossa pobreza e fragilidade.
A santidade é recusa de deixar-se fechar
no próprio pecado, é a capacidade de ultrapassar as próprias condenações porque
Outro nos acolhe e nos ama, apesar de nosso pecado. A superação da
auto-condenação está na entrega da vida a Deus, em saber-se amado como pecador,
porque pecadores seremos sempre até o fim da vida. Santidade é a certeza de não
podermos nos salvar a nós mesmos e acolher, na ação de graças, uma salvação que
nos é oferecida gratuitamente por Deus que nos ama. A santidade nunca leva ao
fechamento, antes se abre para Deus acolhendo sempre o seu perdão e abre-se
para os outros no amor, no serviço e no dom. Santidade é a recusa de ser o seu
próprio juiz, deixando o juízo para Alguém que nos ama e vela por nós com amor.
A santidade liberta, é confiante, é alegre; leva-nos a passar da recusa e
condenação de nós mesmos e dos outros para a descoberta de nós e dos outros.
Se a perfeição era colocada em termos de
uma subida laboriosa de uma escada, a santidade pode ser também representada
por esse símbolo da escada, somente que se trata agora de uma descida
progressiva a caminho de uma radical humildade. De fato, se meditamos
atentamente o evangelho, encontramos Jesus convidando continuamente seus
discípulos a uma descida: quem quiser ser o primeiro, seja o último, o servidor
de todos; quem se exalta será humilhado, quem se humilha será exaltado; se não
vos tornardes como crianças não entrareis no Reino; felizes os pobres porque
deles é o Reino.
Trata-se de um esvaziar-se progressivo
de toda auto-suficiência e orgulho, de toda ambição de riquezas, de prestígio e
projeção, de poder de dominação e opressão, no seguimento do Filho de Deus que
"esvaziou-se a si mesmo tomando nossa condição humana". O orgulho
fecha o homem sobre si e o impede de amar, de ser santo. A humildade é o
reconhecimento pacífico da própria condição de criatura pecadora e frágil, mas
amada por Deus, é a porta para a santidade, isto é, para poder amar os irmãos e
irmãs pecadores e frágeis como somos amados embora pecadores e frágeis.
Permanecer aí, no fundo do templo, como
o publicano da parábola, reconhecendo a própria pobreza, numa súplica
permanente: "tem piedade de mim, Senhor, porque sou um pecador",
celebrando a misericórdia de Deus para com todos os homens, é tornar-se
vulnerável à dor, ao sofrimento, à falta de vida e de sentido de muitos irmãos
no mundo, é começar a ter compaixão, misericórdia, é começar a amar, é caminhar
para a santidade: "sede santos porque eu sou santo".
Processo evolutivo
Terminemos com uma página de rara beleza
sobre a pureza do coração e conseqüentemente sobre a santidade, que se encontra
no livro Sabedoria de um pobre, de Elói Leclerc (Editorial Franciscana, Braga,
1975, pp.137-140).
"...Depois de um momento de
silêncio, Francisco perguntou a Leão: Irmão, sabes acaso o que é a pureza de
coração? - É não termos falta alguma de que nos acusemos, respondeu Leão sem
hesitar. - Então compreendo a tua tristeza, disse Francisco, porque temos
sempre alguma coisa de que nos acusar. - Sim, concordou Leão, e é precisamente
isso que faz com que eu perca a esperança de chegar um dia à pureza de coração.
Ah! Frei Leão, acredita-me, retorquiu
Francisco, não te preocupes tanto com a pureza de tua alma. Volta o olhar para
Deus. Regozija-te por Ele ser todo santidade. Dá-lhe graças por causa dele
mesmo. Isso é que é, irmãozinho, ter o coração puro. E quando estiveres voltado
para Deus, não voltes a debruçar-te sobre ti. Não perguntes a ti próprio em que
ponto estás em relação a Deus. A tristeza de não sermos perfeitos, de nos
descobrirmos pecadores é, ainda, um sentimento humano, demasiadamente humano. É
preciso que eleves o teu olhar mais alto, muito mais alto. Há Deus, a
imensidade de Deus e o seu inalterável esplendor. O coração puro é aquele que
não cessa de adorar o Senhor vivo e verdadeiro; o que toma um interesse
profundo pela própria vida de Deus e é capaz, no meio de todas as suas
misérias, de vibrar com a eterna inocência e a eterna alegria de Deus.
Semelhante coração é, há um tempo, despojado e cumulado. Basta-lhe que Deus
seja Deus. É mesmo nisso que ele encontra toda a sua paz, todo o seu amor. E
então, é o próprio Deus que é toda a sua santidade.
Deus, no entanto, exige o nosso esforço
e a nossa fidelidade, observou Leão.
Sim, sem dúvida, respondeu Francisco.
Mas a santidade não é uma realização do nosso eu, nem uma plenitude que nos
damos a nós mesmos. Acima de tudo ela é um vazio que descobrimos em nós, que
aceitamos e que Deus vem encher na medida em que nos abrimos à sua plenitude. O
nosso nada, compreendes, quando é aceito, transforma-se no espaço vazio onde
Deus pode, ainda, criar. O Senhor não deixa que ninguém lhe roube a sua glória.
Ele é o Senhor, o único, o Santo. Toma, porém o pobre pela mão, tira-o da lama
e fá-lo sentar no meio dos príncipes do seu povo a fim de que ele veja a sua
glória. Deus torna-se, então o céu da sua alma.
Contemplar a glória de Deus, Frei Leão,
descobrir que Deus é Deus, eternamente Deus para além do que nós somos ou
possamos ser, alegrar-se, em cheio, com aquilo que Ele é, extasiar-se diante de
sua eterna juventude e dar-lhe graças por causa da sua indefectível
misericórdia, eis a exigência mais profunda desse amor que o espírito do Senhor
não cessa de derramar em nossos corações. Ter o coração puro é isto. Mas esta
pureza não se obtém à força de punhos e de tensão.
Que fazer para a alcançar? perguntou
Leão.
Basta simplesmente nada guardar para si.
Nem sequer essa percepção aguda da nossa miséria. Desprender-se de tudo.
Aceitar ser pobre. Renunciar a tudo o que é pesado, inclusive ao peso das nossas
faltas. Já não ver senão a glória do Senhor e deixar-se iluminar por ela. Deus
é, isto basta. O coração como a cotovia ébria de espaço e de azul abandonou
todo e qualquer cuidado, toda e qualquer inquietação. O seu desejo de perfeição
mudou-se num simples e puro querer de Deus.
Leão escutava com ar grave, enquanto ia
caminhando adiante de seu pai. Porém, à medida que avançava, sentia que o
coração se lhe tornava leve e que uma grande paz o invadia".
_______________________________
P. José Antônio Netto de Oliveira, S.J.
Membro do Centro de Espiritualidade de Itaici. Atualmente, dedica-se à
orientação espiritual dos estudantes jesuítas brasileiros. Este é um trecho de
um artigo publicado na Revista de Espiritualidade Inaciana de Itaici
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