REINALDO JOSÉ LOPES
Se o ar prosaico dos sermões e discursos do papa Francisco
no Brasil até agora pode ter feito alguns acharem que o atual pontífice é um
"peso pena" intelectual perto dos "pesos pesados" João
Paulo 2º e Bento 16, a fala do sumo pontífice aos bispos do país desfaz
totalmente essa impressão.
O texto, longo, complexo e em tom apaixonado e programático,
soa como a Magna Carta de Francisco para a igreja brasileira. Traz uma visão ao
mesmo tempo mística e humanista do papel que o catolicismo deve ter na
sociedade do país e do que os pastores católicos precisam fazer para recuperar
o terreno perdido nos corações e nas mentes dos brasileiros. As palavras de
ordem são: humildade, diálogo e uma certa dose de teimosia.
Francisco usa como base desse "programa de
governo" a história da descoberta da imagem de Nossa Senhora Aparecida por
pescadores no século 18, talvez o "mito" (no sentido de narrativa
simbólica, não de fato inventado) mais importante do catolicismo brasileiro. Em
Aparecida, diz o papa, "Deus deu uma lição sobre o seu modo de ser e agir
(...). Uma lição sobre a humildade que pertence a Deus como um traço essencial:
ela está no DNA de Deus".
Ele lembra que a fé dos pescadores de Aparecida partiu de
sua fome, de sua falta de recursos, de suas carências. Destaca a simplicidade
da imagem de barro de Nossa Senhora e o simbolismo de que a estátua negra
apareceu inicialmente quebrada, assim como "o Brasil colonial estava
dividido pelo muro vergonhoso da escravatura".
O fato de os pescadores reconstituírem a imagem é sinal de
que "muros, abismos, distâncias ainda hoje existentes estão destinados a
desaparecer. A igreja não pode descurar desta lição: ser instrumento de
reconciliação". E sinal também, segundo ele, de que sem ter em mente a
simplicidade da fé das pessoas comuns e a simplicidade do Evangelho, o
catolicismo se perde.
CAMINHO DE EMAÚS
A segunda grande narrativa que, para o papa, serve de eixo
simbólico para o que os bispos brasileiros devem fazer é a dos chamados
discípulos de Emaús, presente no capítulo 24 do Evangelho de Lucas.
Nesse trecho do livro sagrado, Jesus já ressuscitou, foi
visto por suas seguidoras e Pedro chegou a visitar o sepulcro vazio, mas uma
dupla de discípulos de Jesus, que ainda não sabe de nada, está viajando de
Jerusalém para a aldeia de Emaús, a 11 km da capital judaica. Encontram um
misterioso viajante e comentam com ele sobre sua decepção e perda de fé com a
morte de Jesus na cruz. O viajante, então, usa as Escrituras judaicas para
explicar aos dois que o martírio de Cristo fora profetizado e, quando o grupo
faz uma parada para comer, os dois percebem que o homem era Jesus -
significativamente, quando Jesus divide o pão com eles.
Para Francisco, quem se afastou da Igreja e quem não sente
mais necessidade de Deus é como os discípulos de Emaús. E, para enfrentar essa
situação, "serve uma igreja que, na sua noite, não tenha medo de sair.
Serve uma Igreja capaz de interceptar o caminho deles. Serve uma Igreja capaz
de inserir-se na sua conversa. Serve uma igreja que saiba dialogar com aqueles
discípulos".
A igreja precisa "devolver a cidadania a muitos de seus
filhos que caminham como em um êxodo", arremata o papa. Durante todo o
discurso, fica claro o foco do pontífice na necessidade de a liderança católica
ter essa atitude mais ativa, sem colocar o peso da culpa por esse afastamento
nos fiéis.
Dois pontos menos elaborados por Francisco, mas que merecem
menção, foi sua citação dos marcos da adoção da Teologia da Libertação como uma
abordagem importante para a igreja latino-americana, lembrando a conferência
episcopal de Medellín, na Colômbia, em 1968; e a classificação da atuação
católica na Amazônia como "um teste decisivo, banco de prova para a igreja
e a sociedade brasileiras", destacando o papel dos católicos na luta pela
preservação ambiental.
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