Entrevista do Papa Francisco ao jornal La Stampa
"O Natal para mim é esperança e ternura...Francisco relata
ao La Stampa o seu primeiro Natal como bispo de Roma.
Casa Santa Marta, terça-feira, 10 de dezembro,
12h50min. O papa nos acolhe em uma sala ao lado do refeitório. O encontro
duraria uma hora e meia. Por duas vezes, durante a conversa, desaparece do
rosto de Francisco a serenidade que todo o mundo aprendeu a
conhecer, quando ele se refere ao sofrimento inocente das crianças e fala da
tragédia da fome no mundo.
Na entrevista, o papa também fala das relações com as outras
confissões cristãs e do "ecumenismo de sangue" que as une na
perseguição. Ele se refere às questões do casamento e da família que serão
abordadas pelo próximo Sínodo, responde aos que o criticaram nos EUA definindo-o
como “um marxista” e fala da relação entre Igreja e política.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no
jornal La Stampa, 15-12-2013. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
Eis a entrevista.
O que significa o Natal para o senhor?
É o encontro com Jesus. Deus sempre procurou o
seu povo, conduziu-o, conservou-o, prometeu estar sempre perto dele. No livro
do Deuteronômio, lemos que Deus caminha conosco, nos conduz pela
mão como um pai faz com o filho. Isso é bonito. O Natal é o encontro de Deus
com o seu povo. E é também uma consolação, um mistério de consolação. Muitas
vezes, depois da missa da meia-noite, eu passei algumas horas sozinho, na capela,
antes de celebrar a missa da aurora. Com esse sentimento de profunda consolação
e paz. Lembro uma vez aqui em Roma, acho que era o Natal de 1974, uma noite de
oração depois da missa na residência do Centro Astalli. Para mim, o Natal sempre foi isto: contemplar a
visita de Deus ao seu povo.
O que o Natal diz ao homem de hoje?
Ele nos fala da ternura e da esperança. Deus,
encontrando-nos, nos diz duas coisas. A primeira é: tenham esperança. Deus
sempre abre as portas, nunca as fecha. Ele é o pai que abre as portas. Segundo:
não tenham medo da ternura. Quando os cristãos se esquecem da esperança e da
ternura, tornam-se uma Igreja fria, que não sabe para onde ir e se refreia nas
ideologias, nas atitudes mundanas. Enquanto a simplicidade de Deus te diz:
segue em frente, eu sou um Pai que te acaricia. Tenho medo quando os cristãos
perdem a esperança e a capacidade de abraçar e acariciar. Talvez por isso, olhando
para o futuro, eu falo muitas vezes das crianças e dos idosos, isto é, dos mais
indefesos. Na minha vida de padre, indo à paróquia, eu sempre tentei transmitir
essa ternura, especialmente às crianças e aos idosos. Me faz bem e me faz
pensar na ternura que Deus tem por nós.
Como se pode acreditar que Deus, considerado pelas
religiões como infinito e onipotente, se faz tão pequeno?
Os Padres gregos chamavam isso de synkatabasis,
condescendência divina. Deus que desce e está conosco. É um dos mistérios de
Deus. Em Belém, no ano 2000, João Paulo II disse
que Deus se tornou uma criança totalmente dependente dos cuidados de um pai e
de uma mãe. Por isso, o Natal nos dá tanta alegria. Não nos sentimos mais
sozinhos, Deus desceu para estar conosco. Jesus se fez um de nós e sofreu por
nós na cruz, o fim mais horrível, o de um criminoso.
O Natal é apresentado muitas vezes como uma fábula
açucarada. Mas Deus nasce em um mundo onde há também muito sofrimento e
miséria.
O que lemos nos Evangelhos é um anúncio de alegria. Os
evangelistas descreveram uma alegria. Não se fazem considerações sobre o mundo
injusto, sobre como Deus faz para nascer em um mundo assim. Tudo isso é fruto
de uma contemplação nossa: os pobres, a criança que deve nascer na
precariedade. O Natal não foi a denúncia da desigualdade social, da pobreza,
mas sim um anúncio de alegria. Todo o resto são consequências que nós tiramos.
Algumas certas, algumas menos certas, outras ainda ideologizadas. O Natal é
alegria, alegria religiosa, alegria de Deus, interior, de luz e de paz. Quando
não se tem a capacidade ou se está em uma situação humana que não permite
compreender essa alegria, vive-se a festa com a alegria mundana. Mas, entre a
alegria profunda e a alegria mundana, há diferença.
É o seu primeiro Natal [como papa], em um mundo onde não
faltam conflitos e guerras...
Deus nunca dá um dom a quem não é capaz de recebê-lo. Se Ele
nos oferece o dom do Natal é porque todos nós temos a capacidade de
compreendê-lo e recebê-lo. Todos, desde o mais santo ao mais pecador, do mais
limpo ao mais corrupto. O corrupto também tem essa capacidade: pobrezinho,
talvez a tenha um pouco enferrujada, mas a tem. O Natal, neste tempo de
conflitos, é um chamado de Deus, que nos dá esse dom. Queremos recebê-lo ou
preferimos outros presentes? Este Natal, em um mundo conturbado pelas guerras,
me faz pensar na paciência de Deus. A principal virtude de Deus explicitada na
Bíblia é que Ele é amor. Ele nos espera, nunca se cansa de nos esperar. Ele dá
o dom e depois nos espera. Isso também acontece na vida de cada um de nós. Há aqueles
que o ignoram. Mas Deus é paciente, e a paz, a serenidade da noite de Natal é
um reflexo da paciência de Deus conosco.
Em janeiro, serão 50 anos da histórica viagem de Paulo VI
à Terra Santa. O senhor também irá?
O Natal sempre nos faz pensar em Belém, e Belém
está um ponto preciso, na Terra Santa, onde Jesus viveu.
Na noite de Natal, eu penso acima de tudo nos cristãos que vivem lá, naqueles
que têm dificuldades, em muitos deles que tiveram de deixar aquela terra por
vários problemas. Mas Belém continua sendo Belém. Deus veio em um ponto
determinado, em uma terra determinada, lá apareceu a ternura de Deus, a graça
de Deus. Não podemos pensar no Natal sem pensar na Terra Santa.
Cinquenta anos atrás, Paulo VI teve a coragem de sair para ir
lá, e assim começou a época das viagens papais. Eu também desejo ir até lá,
para encontrar o meu irmão Bartolomeu, patriarca de Constantinopla,
e com ele comemorar esse cinquentenário, renovando o abraço entre o Papa
Montini e Atenágoras, ocorrido em Jerusalém em
1964. Estamos nos preparando para isso.
O senhor encontrou-se várias vezes com crianças
gravemente doentes. O que se pode dizer diante desse sofrimento inocente?
Um mestre de vida para mim foi Dostoievsky, e aquela
sua pergunta, explícita e implícita, sempre girou no meu coração: por que as
crianças sofrem? Não há explicação. Vem-me esta imagem: em um certo ponto da
sua vida, a criança se "desperta", não entende muitas coisas, se
sente ameaçada, começa a fazer perguntas ao pai ou à mãe. É a idade dos
"porquês". Mas, quando o filho pergunta, ele não ouve tudo o que você
tem a dizer. Ele logo pressiona você com novos "porquês". O que ele
busca, mais do que a explicação, é o olhar do pai que dá segurança. Diante de
uma criança sofredora, a única oração que me vem é a oração do porquê.
"Senhor, por quê?" Ele não me explica nada. Mas eu sinto que Ele me
olha. E assim eu posso dizer: "Tu sabes o porquê, eu não sei, e Tu não me
o dizes. Mas Tu me olhas, e eu confio em Ti, Senhor, confio no teu olhar".
Falando do sofrimento das crianças, não podemos esquecer
a tragédia daqueles que passam fome. Com a comida que sobra e jogamos
fora, poderíamos dar de comer a muitos. Se conseguíssemos não desperdiçar,
reciclar a comida, a fome no mundo diminuiria muito. Fiquei impressionado ao
ler uma estatística que fala de 10 mil crianças mortas de fome a cada dia no
mundo. Há muitas crianças que choram porque têm fome. Outro dia, na
audiência da quarta-feira, atrás de uma barreira, havia uma jovem mãe com o seu
bebê de poucos meses. Quando eu passei, a criança chorava muito. A mãe o
acariciava. Eu lhe disse: "Senhora, acho que o pequeno tem fome". Ela
respondeu: "Sim, já está na hora"... Eu respondi: "Mas dê-lhe de
comer, por favor!" Ela tinha pudor, não queria amamentá-lo em público,
enquanto o papa passava. Eis, eu gostaria de dizer o mesmo para a humanidade:
deem de comer! Aquela mulher tinha leite para o seu bebê. No mundo, temos
comida suficiente para saciar a todos. Se trabalharmos com as organizações
humanitárias e conseguirmos estar todos de acordo em não desperdiçar comida,
fazendo com que ela chegue a quem dela precisa, daremos uma grande contribuição
para resolver a tragédia da fome no mundo. Gostaria de repetir à humanidade o
que eu disse àquela mãe: deem de comer a quem tem fome! Que a esperança e a
ternura do Natal do Senhor nos sacudam da indiferença.
Alguns trechos da Evangelli Gaudiun atraíram-lhe
as acusações dos ultraconservadores norte-americanos. Qual é a sensação de um
papa ao ouvir que é definido como "marxista"?
A ideologia marxista é equivocada. Mas, na minha vida, eu
conheci muitos marxistas bons como pessoas, e por isso eu não me sinto
ofendido.
As palavras que mais chamaram a atenção são aquelas sobre
a economia que “mata”...
Na exortação, não há nada que não se encontre na Doutrina
Social da Igreja. Eu não falei de um ponto de vista técnico. Eu tentei
apresentar uma fotografia do que acontece. A única citação específica foi sobre
as teorias da "recaída favorável", segundo as quais todo crescimento
econômico, favorecido pelo livre mercado, consegue produzir por si só uma maior
equidade e inclusão social no mundo. Havia a promessa de que, quando o copo
estivesse cheio, ele transbordaria, e os pobres seriam beneficiados com isso. O
que acontece, ao invés, é que, quando está cheio, o copo magicamente se engrandece,
e assim nunca sai nada para os pobres. Essa foi a única referência a uma teoria
específica. Repito, eu não falei como técnico, mas segundo a doutrina social da
Igreja. E isso não significa ser marxista.
O senhor anunciou uma “conversão do papado”. Os
encontros com os patriarcas ortodoxos lhe sugeriram algum caminho concreto?
João Paulo II falara de modo ainda mais
explícito de uma forma de exercício do primado que se abra a uma situação nova.
Mas não só do ponto de vista das relações ecumênicas, mas também nas relações
com a Cúria e com as Igrejas locais. Nesses primeiros nove meses, eu recebi a
visita de muitos irmãos ortodoxosBartolomeu, Hilario, o teólogoZiziolulas, o
copta Tawadros: este último é um místico, entrava na capela, tirava os
sapatos e ia rezar. Senti-me seu irmão. Eles têm a sucessão apostólica. Eu os
recebi como irmãos bispos. É uma dor ainda não poder celebrar a Eucaristia
juntos, mas a amizade existe. Acredito que o caminho é este: amizade, trabalho
comum e rezar pela unidade. Abençoamo-nos uns aos outros, um irmão abençoa o
outro, um irmão se chama Pedro, e o outro se chama André,Marcos, Tomás...
A unidade dos cristãos é uma prioridade para o senhor?
Sim, para mim o ecumenismo é prioritário. Hoje, existe o
ecumenismo do sangue. Em alguns países, matam os cristãos porque carregam uma
cruz ou têm uma Bíblia, e, antes de matá-los, não lhes perguntam se são anglicanos,
luteranos, católicos ou ortodoxos. O sangue é misturado. Para aqueles que
matam, somos cristãos. Unidos no sangue, embora entre nós ainda não consigamos
dar os passos necessários rumo à unidade, e talvez o tempo ainda não chegou. A
unidade é uma graça, que deve ser pedida. Eu conhecia um pároco em Hamburgo que
acompanhava a causa de beatificação de um padre católico guilhotinado pelos
nazistas porque ensinava o catecismo às crianças. Depois dele, nas filas dos
condenados, havia um pastor luterano, morto pelo mesmo motivo. O sangue deles
se misturou. Aquele pároco me contava que tinha ido ao encontro do bispo e lhe
dissera: "Eu continuo acompanhando a causa, mas de todos os dois, e não só
do católico". Esse é o ecumenismo do sangue. Ele também existe hoje, basta
ler os jornais. Aqueles que matam os cristãos não pedem para você a carteira de
identidade para saber em qual Igreja você foi batizado. Devemos levar em
consideração essa realidade.
Na exortação, o senhor convidou a escolhas pastorais
prudentes e audazes com relação aos sacramentos. A que o senhor se referia?
Quando eu falo de prudência, não penso em uma atitude
paralisante, mas sim em uma virtude de quem governa. A prudência é uma virtude
de governo. A audácia também é. Deve-se governar com audácia e com prudência.
Eu falei do batismo e da comunhão como alimento espiritual para seguir em
frente, a serem considerados como um remédio, e não como um prêmio. Alguns logo
pensaram nos sacramentos para os divorciados em segunda união, mas eu não entrei
em casos particulares: eu só queria indicar um princípio. Devemos buscar
facilitar a fé das pessoas, mais do que controlá-la. No ano passado, na Argentina,
eu havia denunciado a atitude de alguns padres que não batizavam os filhos das
mães solteiras. É uma mentalidade doente.
E quanto aos divorciados em segunda união?
A exclusão da comunhão para os divorciados que vivem uma
segunda união não é uma sanção. É bom lembrar disso. Mas eu não falei disso na
exortação.
O próximo Sínodo dos Bispos irá tratar disso?
A sinodalidade na
Igreja é importante: falaremos sobre o matrimônio em seu conjunto nas reuniões
do consistório em fevereiro. Depois, o tema será abordado no Sínodo
Extraordinário de outubro de 2014 e, novamente, durante o Sínodo
Ordinário do ano seguinte. Nesses âmbitos, muitas coisas serão aprofundadas e
se esclarecerão.
Como procede o trabalho dos seus oito “conselheiros”para
a reforma da Cúria?
O trabalho é longo. Quem queria fazer propostas ou enviar
ideias o fez. O cardeal Bertello recolheu os pareceres de todos
os dicastérios vaticanos. Recebemos sugestões dos bispos de todo o mundo. Na
última reunião, os oito cardeais disseram que chegamos ao momento de fazer
propostas concretas, e no próximo encontro, em fevereiro, eles me entregarão as
suas primeiras sugestões. Eu sempre estou presente nos encontros, exceto na
manhã da quarta-feira, por causa da audiência. Mas eu não falo, apenas ouço, e
isso me faz bem. Um cardeal idoso, há alguns meses, me disse: "O senhor já
começou a reforma da Cúria com a missa cotidiana em Santa Marta".
Isso me fez pensar: a reforma começa sempre com iniciativas espirituais e
pastorais, antes que com mudanças estruturais.
Qual é a relação certa entre a Igreja e a política?
A relação deve ser ao mesmo tempo paralela e convergente.
Paralela, porque cada um tem o seu caminho e as suas diversas tarefas.
Convergente, apenas em ajudar o povo. Quando as relações convergem primeiro,
sem o povo, ou não se importando com o povo, começa aquele conúbio com o poder
político que acaba apodrecendo a Igreja: os negócios, os compromissos... É
preciso prosseguir paralelamente, cada um com o seu próprio método, as suas
próprias tarefas, a sua própria vocação. Convergentes só no bem comum. A política
é nobre, é uma das formas mais altas de caridade, como dizia Paulo VI.
Nós a sujamos quando a usamos para os negócios. A relação entre a Igreja
e o poder político também pode ser corrupta, se não converge no bem comum.
Posso perguntar-lhe se teremos mulheres cardeais?
É uma brincadeira que saiu não sei de onde. As mulheres na
Igreja devem ser valorizadas, e não "clericalizadas". Quem pensa nas
mulheres cardeais sofre um pouco de clericalismo.
Como está o trabalho de limpeza do IOR?
As comissões referentes estão trabalhando bem. O Moneyval nos
deu um relatório bom, estamos no caminho certo. Sobre o futuro do IOR,
veremos. Por exemplo, o "banco central" do Vaticano seria a APSA [Administração
do Patrimônio da Sé Apostólica]. O IOR foi instituído para
ajudar as obras de religião, missões, as Igrejas pobres. Depois se tornou como
é agora.
Há um ano, o senhor podia imaginar que celebraria o Natal
de 2013 em São Pedro?
Absolutamente não.
Esperava ser eleito?
Não esperava. Eu não perdi a paz enquanto os votos
aumentavam. Permaneci tranquilo. E essa paz ainda existe agora, eu a considero
um dom do Senhor. Terminado o último escrutínio, levaram-me ao centro da Capela
Sistina e me perguntaram se eu aceitava. Eu respondi que sim, disse
que me chamaria Francisco. Apenas então me afastei. Eles me levaram
para a sala adjacente para trocar de hábito. Depois, pouco antes de me assomar,
me ajoelhei para rezar por alguns minutos, juntamente com os cardeais Vallini e Hummes,
na Capela Paulina.
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