Texto da entrevista concedida pelo Papa
Francisco a bordo do avião que o levava de volta a Roma,
após sua visita pastoral à Coreia do Sul.
A entrevista está publicada no sítio espanhol Religión
Digital, 19-08-2014. A tradução é de André Langer.
1. As vítimas do afundamento do ferry sul-coreano Sewol e o risco de ser utilizado
Quando você se encontra diante da dor humana, tem que fazer
o que seu coração o leva a fazer. Então, dirão: fez porque tem alguma intenção
política. Pode-se dizer tudo, mas quando se pensa nestes homens e mulheres,
nestes pais e mães que perderam filhos, irmãos e irmãs... diante da dor tão
grande de uma catástrofe, meu coração – sou sacerdote, já sabe – me diz que
tenho que me fazer próximo.
Sinto-o dessa maneira. Sei que o consolo que posso dar com
uma palavra minha não é um remédio, não devolve a vida aos que morreram. Mas a
proximidade humana nestes momentos nos dá força, há solidariedade.
Recordo que, como arcebispo de Buenos Aires,
experimentei dois desastres: um era um incêndio em uma boate [a
boateCromañón], em que morreram 193 jovens. Outra vez foi um desastre
com os trens. Nesse momento senti a mesma necessidade de estar próximo. A dor
humana é forte e se nestes momentos tristes nos aproximamos, nos ajudamos
mutuamente. Tomei isto (assinalando para o arco amarelo na capa). Tomei-o para
me solidarizar com eles. Alguém me disse: “é melhor tirá-lo, você deve ser
neutro”. Mas quando senti o sofrimento humano dei-me conta de que não se pode
ser neutro.
2. Os ataques do Isis [Estado Islâmico do Iraque e do
Levante] contra as minorias cristãs no Iraque e as bombas estadunidenses
Nestes casos, nos quais há uma agressão injusta, só posso
dizer que é lícito “deter” o agressor injusto. Destaco o verbo “deter”, não
digo bombardear, fazer a guerra, mas detê-lo. Os meios com os quais se pode
deter deverão ser avaliados.Deter o agressor injusto é lícito. Mas devemos ter
memória: quantas vezes, sob o pretexto de deter o agressor injusto, as
potências se adonaram dos povos e fizeram a guerra de conquista. Uma só nação
não pode julgar como se detém um agressor injusto.
Depois da Segunda Guerra Mundial nasceu a ideia das Nações
Unidas; é ali onde se deve discutir e dizer: ‘Há um agressor injusto?
Parece que sim. Então, como vamos detê-lo?’ Só isto, nada mais. Em segundo
lugar, as minorias. Obrigado por ter usado esta palavra. Porque me falam de
cristãos, os que sofrem, os mártires. Sim, há muitos mártires. Mas aqui há
homens e mulheres, minorias religiosas, não são todos cristãos, e todos são
iguais perante Deus. Deter o agressor injusto é um direito que a humanidade
tem, mas também é um direito que o agressor tem de ser detido, para que não
faça mal.
3. A possibilidade de uma visita ao Iraque, na zona de
conflito
Estou disposto a ir ao Iraque e creio poder
dizê-lo: quando com meus colaboradores soubemos da notícia desta situação, das
minorias religiosas e também naquele momento que o Curdistão não
podia receber tanta gente, pensamos muitas coisas. A primeira coisa foi
escrever o comunicado feito pelo padre Federico Lombardi. Depois,
esse comunicado foi enviado a todas as Nunciaturas para que fosse transmitido
aos governos. Em seguida, escrevemos ao secretário-geral dasNações Unidas e
decidimos mandar um enviado pessoal, o cardeal Filoni, ao Iraque. Ao final, dissemos
que, se fosse necessário depois da viagem à Coreia, poderia ir para
lá; era uma das possibilidades. Estou disposto! Neste momento, não é a melhor
coisa a se fazer, mas estou disposto a isso.
4. As relações entre a Santa Sé e a China; a
possibilidade de uma viagem papal
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Quando, na ida, estávamos para sobrevoar o espaço aéreo
chinês, fui à cabine e um dos pilotos me mostrou um registro e me explicou que
faltavam apenas 10 minutos para entrar no espaço aéreo chinês e que tínhamos
que pedir autorização (uma coisa normal que é preciso fazer sempre com cada
país) e vi como pediam a autorização e como respondiam; fui testemunha desse
momento. O piloto disse: agora parte o telegrama, não sei como fez, mas o fez.
Depois me despedi dos pilotos e voltei a sentar-me e rezei tanto por esse belo
povo chinês: um povo sábio. Penso em todos os grandes sábios chineses, penso na
história de ciência, de sabedoria...
Também nós, os jesuítas, temos nossa história ali, como Matteo
Ricci... Se quero ir à China? Mas, claro! Amanhã! Nós respeitamos o povo
chinês. A Igreja pediu somente a liberdade para o seu ministério, para o seu
trabalho. Nenhuma outra condição. E depois não devemos esquecer a carta
fundamental para o problema chinês, aquela que o Papa Bento XVIenviou
aos chineses. Essa carta ainda hoje segue sendo atual. Faz bem voltar a lê-la.
A Santa Sé sempre esteve aberta aos contatos, sempre, porque
tem um verdadeiro afeto pelo povo chinês.
5. As próximas viagens e a esperança de vê-lo na Espanha,
em Ávila, em 2015
Este ano temos previsto a viagem para a Albânia. Vou por dois motivos importantes. Em
primeiro lugar, porque conseguiram fazer um governo (pensemos nos Bálcãs),
um governo de unidade nacional, entre muçulmanos, ortodoxos, católicos, com um
conselho inter-religioso que ajuda muito e que é equilibrado. Senti como se
minha presença fosse uma ajuda a esse nobre povo. O segundo motivo é este:
pensemos na história da Albânia, o único dos países comunistas que
em sua Constituição tinha o ateísmo prático. Se tu ias à missa, era
inconstitucional!
Além disso, me dizia um dos ministros, foram destruídas (e
quero ser preciso com o número) 1.820 igrejas, ortodoxas e católicas. Naquele
tempo muitas igrejas foram transformadas em cinemas, teatros, salões de festa.
Eu senti que tinha que ir, e um dia é preciso fazê-lo. Depois, no próximo ano,
quisera ir à Filadélfia, ao encontro das famílias, e também fui convidado pelo
presidente dos Estados Unidos para o parlamento estadunidense
e também pelo secretário das Nações Unidas a Nova York (talvez
as três cidades juntas: Filadélfia, Washington e Nova
York). Os mexicanos querem que vá nessa ocasião também à Virgem de
Guadalupe, e se poderia aproveitar, mas não está certo. E, finalmente, à Espanha.
Os reis me convidaram, o episcopado me convidou, mas ainda não decidimos.
6. A relação com Bento XVI
Encontramo-nos. Antes de partir fui visitá-lo. Duas semanas
antes, enviou-me um escrito interessante e pedia a minha opinião. Temos uma
relação normal. Porque ao redor desta ideia, que talvez não seja do agrado de
alguns teólogos (eu não sou teólogo), creio que o Papa emérito não é uma
exceção. Eu creio que o Papa emérito segue sendo uma instituição,
porque a nossa vida se alonga e a uma certa idade já não se tem a capacidade
para governar bem, porque o corpo se cansa... A saúde talvez seja boa, mas já
não se tem a capacidade de tratar e resolver todos os problemas de um governo
como o da Igreja... E se eu sentisse que já não posso continuar? Faria o mesmo. Rezarei, mas creio que faria o mesmo.
Somos irmãos, e já lhe disse que é como ter um avô em casa, por sua sabedoria.
É um homem de sabedoria. Faz-me bem escutá-lo. E ele me anima bastante.
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7. Como se sentiu quando saudou esta manhã as sete “confort women”? Ver-se-ão em Nagasaki no ano que vem?
Seria bonito, bonito! Fui convidado pelo governo, assim como
pelo episcopado. O sofrimento... Remonta-se a uma das primeiras perguntas. O
povo coreano é um povo que não perdeu a dignidade. Era um povo invadido,
humilhado. Sofreu guerras e se divide. Com tanto sofrimento. Ontem, quando fui
ao encontro com os jovens, visitei o museu dos mártires. É terrível o
sofrimento destas pessoas. (Mártires), simplesmente por não quererem pisotear a
cruz. É um sofrimento histórico. A capacidade de sofrer deste povo é parte da
sua dignidade. Houve inclusive atualmente estas mulheres idosas na frente, na missa. Pensar que
com a invasão foram levadas, quando crianças, aos quartéis, para serem
exploradas. Elas não perderam sua dignidade. Hoje, estavam ali as mulheres
idosas, mostrando seu rosto do passado vivido. É um povo forte em sua
dignidade. Mas voltamos a estas coisas dos mártires, do sofrimento, e destas
mulheres: estes são os frutos da guerra!
Hoje, nos vivemos em um mundo em guerra por todas as partes!
Alguém me dizia: ‘Você sabe, padre, que estamos na terceira guerra mundial, mas
em pedacinhos. Em capítulos’. É um mundo em guerra onde se cometem estas
crueldades. Uma vez se falava sobre a guerra convencional, agora já não conta.
Não digo que as guerras convencionais sejam algo bom, não. Mas hoje vai a bomba
e mata o inocente junto com o culpado, a criança junto com a mulher, com a mãe,
mata a todos. Mas, paremos para pensar um pouco no nível da crueldade: aonde
chegamos? Isto deveria nos espantar. Não é para dar medo. O nível de crueldade
da humanidade neste momento espanta um pouco.
Hoje, a tortura é um dos meios quase ordinários nos
comportamentos dos serviços de inteligência e em alguns processos judiciais. E
a tortura é um pecado contra a humanidade, um crime de lesa humanidade. Digo
aos católicos: torturar uma pessoa é um pecado mortal, é pecado
grave. Mas é muito mais: é um pecado contra a humanidade. A crueldade e a
tortura. Gostaria muito que vocês, em seus meios, fizessem uma reflexão sobre
qual é, hoje, o nível de crueldade da humanidade, e sobre o que pensam sobre a
tortura. Creio que faria bem a todos nós refletir sobre isto.
8. Você tem uma vida cheia de compromissos. Pouco
descanso, nada de férias. Viagens massacrantes. É preciso preocupar-se com o
ritmo que leva?
Sim, há quem já me alertou. Eu passei as férias em casa,
como faço normalmente. Uma vez li um livro, interessante, que se intitulava:
“Alegra-te por ser um neurótico’. Eu também tenho alguma neurose e é preciso
curá-la bem, eh? A minha é que sou um pouco apegado ao meu habitat. A última
vez que saí para fazer férias, com a comunidade jesuíta, foi em 1975. Sempre
faço férias, mas no meu habitat, mudança de ritmo: durmo mais, leio coisas que gosto,
ouço música, rezo mais. E isto me descansa. Em julho, fiz muito tudo isto. É
certo, no dia que tinha que ir ao Gemelli, até 10 minutos antes
tinha que ir, mas não pude. Foram dias muito cheios. Agora sei que tenho que
ser prudente. Tem razão...
9. Quando a multidão gritava Francisco!, no Rio,
respondia: Cristo! Cristo! Como vive a imensa popularidade de que goza?
Eu a vivo agradecendo ao Senhor de que seu povo seja feliz,
esperando o melhor para o povo. Vivo-a como generosidade do povo, do verdadeiro
povo... Internamente, procuro pensar em meus pecados, em meus erros, para não
me deixar levar por isso, porque sei que isto durará como eu, dois ou três
anos, e depois... a casa do Pai! Vivo-a como presença do Senhor no meio do seu
povo que usa o bispo, que é o pastor do povo, para manifestar muitas coisas.
Vivo-a com mais naturalidade que antes, porque ficava um pouco assustado.
10. Como vive no Vaticano, além do trabalho?
Procuro ser mais livre. Há reuniões de trabalho, mas a vida
para mim é o mais normal que pode ser. Gostaria de sair mais, mas não é
possível. E depois, em Santa Marta, levo a vida normal de trabalho,
de descanso, de conversas... Se me sinto prisioneiro? Não. No princípio, sim,
mas depois caíram alguns muros... Por exemplo (sorri): o Papa não podia usar o
elevador sozinho, imediatamente alguém vinha para acompanhá-lo! ‘Tu, vai para o
teu lugar, que eu desço sozinho!’ E se acabou a história. É assim... a
normalidade, a normalidade.
11. Seu time, o San Lorenzo, ficou campeão da
Libertadores pela primeira vez. Como está vivendo esta sensação?
É uma boa notícia, depois do segundo lugar no Brasil!
Fiquei sabendo em Seul, me disseram. E me disseram que na
quarta-feira estarão na audiência pública. Para mim, o San Lorenzo é
o time para quem toda a minha família torcia.
12. A próxima encíclica dedicada à defesa da criação
Conversei sobre esta encíclica com o cardeal Turkson e
também com os outros. E pedi a Turkson que reunisse todas as
contribuições que tivessem chegado. Antes da viagem, o cardeal me entregou o
primeiro rascunho. É desse tamanho, um terço a mais que a Evangelii
Gaudium. É o primeiro rascunho. Trata-se de um problema nada fácil, porque
se trata dacustódia da criação também da ecologia (há
ecologia humana); pode-se falar com certa segurança, mas até certo ponto. E
depois vêm todas as hipóteses científicas, algumas bastante seguras e outras
não. É uma encíclica que deve ser magistral e deve seguir em frente só com as
seguranças, com as coisas sobre as quais estamos seguros. Se o Papa diz que o
centro do universo é a Terra e não o Sol, se equivoca, porque está dizendo uma
coisa que cientificamente não está correta. É o que acontece agora; devemos
fazer um estudo parágrafo por parágrafo. Creio que será menor, porque é preciso
ater-se ao essencial, que é o que se pode afirmar com segurança. Pode-se
acrescentar nas notas de rodapé que sobre este ou aquele argumento há esta ou
aquela hipótese. Mas dá-lo como informação, não no corpo de uma encíclica, que
é doutrina e deve ser segura.
13. Uma nova pergunta sobre a divisão forçada, “confort
women” e sobre a divisão da Coreia
Atualmente, estas mulheres estavam ali porque apesar de
tudo o que sofreram têm dignidade e queriam mostrar o rosto. E pensei isto,
pensei na guerra e na crueldade das guerras, em que estas mulheres foram
exploradas, foram escravizadas com toda esta crueldade. Pensei na dignidade que
têm e também o muito que sofreram, e o sofrimento é um legado. Os primeiros
mártires da Igreja disseram que o sangue dos mártires é semente de cristãos.
Vocês, os coreanos, semearam muito, muito, por coerência. Vê-se agora o fruto
dessa semente dos mártires.
Sobre a Coreia do Norte, sei que é uma dor, sei
disso com certeza, que há alguns parentes, muitos parentes não podem se
encontrar, isto dói, isso é verdade. É uma dor que divide o país.
Hoje, na Catedral, no lugar em que coloquei as vestimentas
para a missa, havia um presente que me deram, uma coroa de espinhos de Cristo
feita com arame farpado que divide em dois lados a única Coreia. E
o levamos no avião, mas é um presente que levo... o sofrimento da divisão de
uma família dividida. Como disse ontem, em declarações aos bispos, e o recordo:
ainda temos esperança, as duas Coreias são irmãs e falam o
mesmo idioma. Quando falamos o mesmo idioma, é porque se tem a mesma mãe, e
isso nos dá esperança. O sofrimento da divisão é grande. Entendo e rezo para
que termine.
14. A beatificação do arcebispo salvadorenho Romero
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A causa estava bloqueada, dizia-se que por prudência, na Congregação
para a Doutrina da Fé. Agora já não. Passou à Congregação para os
Santos e segue o caminho normal de um processo; depende de como se
movam os postuladores. É muito importante fazê-lo rapidamente. Porque eu
gostaria que se esclarecesse quando há um martírio ‘in odium fidei’, por
confessar o Credo ou por fazer as obras que Jesus nos manda fazer com o
próximo. Este é um trabalho de teólogos, que o estão estudando. Por trás deRomero está Rutilio Grande e há outros. Outros que foram
assassinados e que não têm a mesma estatura de Romero; é preciso
distinguir teologicamente tudo isto. Para mim,Romero é um homem de
Deus. Deve-se continuar o processo, o Senhor deve dar um de seus sinais; se o
quer fazer, o fará. Agora os postuladores devem se mexer, porque já não há
impedimentos.
15. O fracasso da Oração pela Paz: imediatamente depois
os mísseis e bombas sobre Gaza
A oração pela paz não foi absolutamente nenhum
fracasso. Estes dois homens são homens de paz, são homens que acreditam em Deus
e que viveram muitas coisas feias, muitas coisas feias, e estão convencidos de
que a única via para resolver os problemas é a da negociação, do diálogo, da
paz. Foi um fracasso? Eu creio que a porta está aberta. A paz é um dom de Deus,
que merece o nosso trabalho, mas é um dom. E preciso dizer a toda a humanidade
que a mesa da negociação é importante, mas também o é a da oração. Mas isto é
conjuntural. Esse encontro não era uma conjuntura; é um passo fundamental da
atitude humana, uma oração. Agora, a fumaça das bombas e das guerras não deixa
ver essa porta, mas a porta permanece ali, aberta, desde aquele momento. Creio
que Deus, creio no Senhor, essa porta está aberta, e peçamos que nos ajude.
Fonte:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/534460-entrevista-coletiva-do-papa-a-bordo-do-aviao-de-volta-da-coreia
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