No primeiro ano de seu serviço pastoral, na Festa de
Corpus Christi, o arcebispo chega pontualmente à catedral para iniciar a
missa e depois a procissão na qual deve carregar pelas ruas o ostensório
dourado com o Santíssimo Sacramento. Começa a missa. Na oração da coleta, não
consegue ler o que está no missal. Com os olhos marejados de lágrimas e a voz
tomada pela emoção, ora:
“Senhor, é mais fácil reconhecer a tua presença na hóstia
consagrada do que nos milhares de irmãos e irmãs miseráveis que sofrem e penam
pelas ruas e cortiços do mundo. Como poderemos passar pelas ruas, com o pão,
sinal da tua presença para um mundo novo e de partilha, indiferentes aos
adultos e crianças que jazem abandonados no chão?
Dá-nos a graça de adorar a tua presença no pão da
Eucaristia, de modo que possamos te reconhecer e honrar em cada ser humano,
especialmente nos irmãos e irmãs mais marginalizados”.
Dom Marcelo Barros
[Barros, Dom Marcelo. Dom Helder, profeta do
macroecumenismo
(Reflexão em estilo de testemunho). Em: Rocha, Zildo (organizador). Helder, o dom. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 179.]
(Reflexão em estilo de testemunho). Em: Rocha, Zildo (organizador). Helder, o dom. – Petrópolis, RJ: Vozes, 1999, p. 179.]
Nesse entardecer de quinta-feira, festa de Corpus
Christi, peguei na estante um livro adquirido há alguns anos e que há
tempos eu não lia. É um livro que foi organizado por Zildo Rocha e publicado em
1999, em homenagem aos noventa anos de Dom Helder Camara. Queria ler um texto
escrito pelo monge beneditino Dom Marcelo Barros. Dom Marcelo teve o privilégio
de trabalhar com Dom Helder Camara, além de, como ele próprio afirma, ter tido
“a graça de ser ordenado diácono e padre por Dom Helder”.
Pois bem, quis ler este texto hoje porque ele começa
exatamente com um relato que Dom Marcelo faz de uma celebração de Corpus
Christi, a primeira presidida por Dom Helder depois dele ter sido sagrado
arcebispo da Arquidiocese de Olinda e Recife. O relato, posto como
epígrafe a este texto, nos fala muito da mística do arcebispo cearense que, de
Pernambuco, influenciaria decisivamente os rumos da Igreja Católica no
continente latino-americano.
Dom Helder foi um homem profundamente místico, disso não
tenho dúvidas. Mas sua mística era a mística da ação, embora tenha sido,
simultaneamente, um homem que vivenciou uma relação íntima com Deus na
Oração. Mas, diferentemente daquele tipo de místico que precisa ficar a sós
para falar com Cristo, ele prescindia de tal estratégia porque sua forma de
encontrar o Mestre a quem amava e a quem dedicou sua vida era estar com os
muitos Cristos com os quais cruzava diariamente nas ruas, praças, avenidas
e bairros pobres da cidade.
Para um homem da estirpe de Dom Helder Camara, Cristo
assomava em cada esquina, esperando apenas um aceno para que se manifestasse em
busca de um gesto de acolhimento, de um olhar misericordioso, de quem lhe
estendesse a mão. Talvez essa experiência, a de quem é capaz de ver
Cristo transfigurado no irmão que sofre por sentir-se excluído e desamparo,
seja a mais autêntica experiência espiritual a que alguém possa aspirar.
Não é coisa fácil. Não se trata apenas de dar um pedaço de
pão ou um prato de comida ao irmão faminto, embora isso não esteja excluído.
Viver a experiência do Cristo transfigurado que se manifesta no
quotidiano de cada um de nós implica, mais que ajudar a matar a fome por
um dia, cuidar para que as condições sejam tais que não haja mais fome e,
portanto, não seja mais necessário sair rua a fora distribuindo o alimento aos
necessitados. Foi isso o que fez Dom Helder. É isso o que raramente conseguimos
fazer.
Então, me pergunto: eu ousaria celebrar a festa de Corpus
Christi como Dom Helder a celebrava? Não sei se eu poderia
responder afirmativamente esta pergunta. Seguir um cortejo capitaneado por um
padre que leva à frente um ostensório é fácil. Difícil é seguir aquele Cristo
que assoma bem ali à minha frente à espera de que eu lhe estenda a mão.
Quero concluir este texto com uma observação feita por Dom
Marcelo a propósito da profunda compaixão e respeito que Dom Helder tinha
por todas as pessoas, mesmo por aquelas que ele mais teria motivos para
antipatizar ou rejeitar. São palavras que têm muito a nos ensinar, pois fazem
ver o Cristo transfigurado em todos os irmãos, mesmo nos mais antipatizados.
Escreve Dom Marcelo:
“No Recife, Dom Helder encontrou um clero no qual havia
padres conhecidos por suas posições conservadoras. Nunca, ninguém pôde dizer
que foi preterido ou marginalizado pelo arcebispo. Ele gostava de repetir:
- Se você concorda comigo, me confirma. Mas, se discorda, me
ajuda mais porque me obriga a aprofundar o meu ponto de vista”
A autoria do Texto é do Psicólogo Vasco Arruda
Psicólogo e professor de História das Religiões e Psicologia da
Religião
Em http://blog.opovo.com.br/
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