O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

8 de janeiro de 2011

Natal herético


"Imaginemos então o que ocorreria se uma multidão de cristãos começasse a tomar decisões como estas: no natal não vamos consumir nada, não porque não possa ter sentido materializar o gozo interno, senão para compensar a unilateralidade na qual caímos. Nem vamos jogar na loteria porque não queremos enriquecer-nos precisamente nos mesmos dias em que Deus empobrece. Nem damos presentes às pessoas queridas senão somente àquelas com as quais nos encontramos inimizados ou a quem necessitamos perdoar. Nem plantaremos Beléns transbordantes de figuras caras, senão um simples presépio desvencilhado e vazio".
A opinião é do teólogo jesuíta José Ignacio González Faus, publicada no blog pessoal do teólogo, Miradas Cristianas, 05-01-2010. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o texto.
Que nosso natal está bastante desfigurado, edulcorado ou paganizado, é voz comum entre muitos cristãos e a cada ano voltamos a senti-lo quando ele chega e a lamentá-lo quando já se foi. Por que, pois, não tentar analisar, embora já seja tarde, em que consiste essa deformação? Para acercar-se ao mistério do Natal (contração de natividade: nascimento) basta acercar-se ao nascimento de uma criança.
Um escritor cristão do século III escreve: “começa descrevendo toda a baixeza de elementos que servem para gerar um ser vivo: sangue, líquidos e esse coágulo repulsivo de carne que durante nove meses se alimentará de todo aquele barro”. Para acrescentar em seguida: recorda que tu nasceste da mesma maneira. (E, entre parêntesis: é neste contexto no qual Tertuliano acrescenta aquilo de “eu creio por ser absurdo” – credo quia absurdum -, que alguns lêem fora de contexto como resposta ao problema das relações entre fé e razão. Não! O que é absurdo para nós é a solidariedade de Deus. Porém cremos nela).
Neste mesmo sentido o pintor Cortés, visceral como sempre, fez correr um desenho de Maria trocando as fraldas ao bebê e cujo título reza: “E o verbo se fez xixi”. A vinheta certamente escandalizará a mais de dois e até hão de considerá-la blasfema. E caberia responder-lhes parodiando Tertuliano: “eu o creio por ser blasfemo”. Porque, efetivamente, a encarnação de Deus é uma blasfêmia para uma piedade centrada em torno da idéia religiosa geral de Deus.
Mas, sigamos com a criancinha. A criancinha inspira sorriso e ternura quando dorme, mas o sorriso some quando o bebê chora, quando se suja e é preciso limpá-lo, quando não dorme e é preciso embalá-lo. Em sua doce pequenez o humano está reduzido, sim, a uma promessa, mas também à impotência física, à incapacidade expressiva e à necessidade de tudo: de ser alimentado, de ser limpo, etc. Nosso natal eliminou todos estes aspectos negativos para ficar somente com os positivos. De modo que, na dialética Deus-miséria a primeira palavra apagou a segunda, em lugar de redimi-la passando por ela. Onde são João escreve: “a Palavra se fez escravidão [carne] e nisso vimos a glória de Deus”, nós lemos que a Palavra se fez bem-estar e aí vemos sua glória.
Assim, em nossos Beléns as palhas são de plástico, a gruta não evoca nenhum estábulo, nem o berço sugere um presépio [uma manjedoura] de animais. Nossos pastores se parecem mais aos das éclogas de Garcilaso do que aos da Palestina de 2000 anos atrás. Os vilancetes que num princípio pretendiam descobrir e cantar a glória de Deus escondida em tanta humilhação (e esse era seu encanto), acabaram por olvidar toda essa miséria: quando muito nos encontraremos com que “Josep encen um foc” [José acende um fogo], mas há de ser um grande fogo, como se já não soubéssemos o que custaria acender fogo numa cova miserável de um povoado perdido de vinte séculos atrás. E em seguida aparecem anjinhos cantando e alecrins florescendo; de modo que os anjos deixam de ser “mensageiros” para serem apenas comparsas da grande orquestra do consumo: porque já não cantam que a glória de Deus está nos homens reconciliados, senão que a glória de Deus brilha nesta falsa paz que brota da injustiça.
Assim esquecemos todo o lado polêmico da mensagem natalina: que Deus não nasceu no Templo de Jerusalém, nem sequer numa pousada decente, senão num estábulo. O que, com palavras de hoje, significa: Deus não nasce na catedral de Barcelona, nem na igreja Sagrada Família, senão no [rio] Besós [Barcelona] ou no Raval [nos arredores de Barcelona, ndt]; nem nasce na Catedral de Nossa Senhora daAlmudena, senão na Canadá real; nem nasce na Corte inglesa, senão numa favela, nem nasce no Vaticano, senão na Faixa de Gaza, nem em Manhattan, senão noHaiti... E seu sinal não são as luzes em nossas ruas senão a falta de luz nos subúrbios.
O perigo desta deformação natalina é que acabamos falsificando a idéia cristã do ser humano: ficamos com a idéia “o homem”, própria do Renascimento ou da mentalidade grega (que reservam a dignidade humana somente para os ricos e não para os escravos) e não com a noção bíblica de todo ser humano como imagem de Deus. Deste modo, falsificamos também a idéia cristã de Deus por muito que cantemos“gloria in excelsis Deo” em latim e tudo. E, a partir daí, falsificamos a solidariedade. E acabamos fechando os olhos para imaginar, em vez de abri-los para contemplar a realidade.
Um exemplo desta falsificação parece-me poder encontrá-lo na teologia (ou na forma como é lida a teologia) do grande escritor que foi Urs von Balthasar: que fala muito da “teo-dramática” porém de maneira tal que a palavra Deus acaba edulcorando o drama em lugar de redimi-lo ao entrar nele até o fundo, e a beleza da Glória de Deus fica mais na consideração da dor do que na assunção amorosa da dor. Uma espécie de contemplação indolor do Deus sofredor: porque parece sofrer como a gata borralheira do conto ou como as crianças maltratadas da vida real. Assim permanecemos com um Deus que planeja sobre a história, porém nunca chega a aterriçar verdadeiramente nela. E assim chegamos ao final do processo pelo qual celebramos hoje o nascimento do deus mercado ou do deus consumo, porém não o nascimento do Deus aniquilado ou nulificado.
Imaginemos então o que ocorreria se uma multidão de cristãos, mais conscientes de todo este significado, começasse a tomar decisões como estas: no natal não vamos consumir nada, não porque não possa ter sentido materializar o gozo interno, senão para compensar a unilateralidade na qual caímos. Nem vamos jogar na loteria porque não queremos enriquecer-nos precisamente nos mesmos dias em que Deus empobrece. Nem damos presentes às pessoas queridas senão somente àquelas com as quais nos encontramos inimizados ou a quem necessitamos perdoar. Nem plantaremos beléns transbordantes de figuras caras, senão um simples presépio desvencilhado e vazio, da mesma forma como aquela cadeira daquele prêmio Nobel da paz que esteve vazia durante a cerimônia: como que simbolizando que a Deus igualmente não deixamos vir hoje porque é um dissidente deste mundo, como Liu Xiaobo.
O que não se armaria! E, sem embargo, seria tudo tão cristão e tão evangélico! E a esquisita Maria cantaria com tanto gozo exultante que Deus derruba do trono os poderosos e dignifica os humilhados, que despede vazios os ricos e enche de bens os pobres! E nós não temeríamos que o profeta nos repetisse aquilo: “faz tempo que somos os que Tu não reges, e os que não levamos teu Nome” (IS 63, 19).
Em resumo: acabamos de celebrar um natal herético. Assim, simplesmente. E, se a Igreja tem uma Congregação da Fé, incumbida de velar para que não nos contamine a heresia, tem também aqui uma tarefa sobre a qual pensar ao longo deste 2011, até que cheguemos a um novo dezembro.
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