O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

25 de fevereiro de 2020

Eu encontrei Jesus!

J Ricardo A de Oliveira
Eu encontrei Jesus!Não, não pense que fiz algum retiro do tipo Cursilho da Cristandade, ou entrei para alguma igreja pentecostal. Não, eu o encontrei, simplesmente.
Eu estava indo para o consultório, andava distraído pela rua ainda um pouco deserta, era cedo, e o vi. Ele estava deitado, num banco da praça, tinha a seu lado um grande saco preto repleto de latinhas de alumínio. Tinha uma aparência sofrida, o rosto marcado e aparência de quem há muito não toma um banho. Não me viu, dormia profundamente. Segui...



 Mais adiante tornei a encontrá-lo, estava também deitado, mas desta vez no chão. A despeito do calor estava coberto com um pano imundo. Tinha a seu lado uma cadeira de rodas muito velha em estado lastimável. Não pude ver seu rosto, estava voltado para a parede. Segui meu caminho e não muito distante na porta da padaria, ele novamente. Estava acordado e me estendeu a mão. Não era um cumprimento, era uma súplica. Tão humilde estava que cheguei a duvidar que pudesse se tratar do filho de Deus. Mas não havia dúvida era ele. Me pediu que pagasse um café e um pão, não tinha comido nada desde a véspera. Convidei-o a vir comigo à padaria. Ao entrarmos um segurança truculento pareceu não me notar, mas foi direto a Ele e segurando-O  pelo braço disse em alto e bom som, “cai fora!“
Ele tentou argumentar e com voz mais forte o brucutu gritou:
”tá querendo levar uma porrada ?”
Interferi, disse que estava comigo e só então acho que o segurança me percebeu, mas foi logo atalhando, não “dotô, aqui ele não entra”. Perguntei O porquê  e o homem se encrespou e logo alguns  clientes vieram e seu auxilio contra mim argumentando que  ele fedia, estava imundo... Ví que neste novo Brasil não adiantava argumentar,  alguém já ensaiava as costumeiras  frases: “ leva pra casa”, “só pode ser petralha”, “esses comunistas de merda...”
Não resisti. Fui até Ele e disse, não adianta Senhor, me espere ali fora que eu compro a sua média com pão e manteiga e levo ali fora.
Eu estava visivelmente envergonhado da forma como trataram o filho de Deus e certamente parecia bem transtornado. Ele não, talvez já esteja acostumado a esse tipo de ofensas, afinal para quem foi coroado de espinhos e pendurado numa cruz, isso deve ser coisa pequena. Levei até ele a média, o pão e pude perceber, pelo brilho de seus olhos diante daquela visão, que a fome era realmente muito maior do que eu imaginava.  Me despedi e ele esboçou um obrigado, mas estava como que extasiado com aquelas que para ele deviam ser iguarias...
Segui, um pouco ainda aturdido com aquela cena e caminhei.  


Bem na porta da igreja ele estava sentado, visivelmente drogado, murmurava algo em sentido,  um misto de lamento, súplica e revolta.
A porta da igreja, ou melhor, meia porta estava  entreaberta. Lembrei que depois que o sacerdócio passou a ser tratado como profissão, a segunda feira é dia do reposo remunerado dos sacerdotes, e a maioria das igrejas  ou não abrem ou fecham cedo...

Já estava quase chegando ao meu prédio e pude ouvir uma gritaria, um corre- corre e gritos de pega! Pega! Passou por mim um Jesus adolescente, correndo, olhos esbugalhados. Ficou frente a frente comigo, nossos olhares, por fração de segundos se cruzaram.  Pude notar neles o medo, o pavor.  Só tive tempo de lhe dizer disfarçadamente: Corre! Vai!  Ele foi...
Logo os que vinham atrás me perguntaram por que não o segurei. Respondi que não sabia que ele era o assaltante...
Subi para o meu consultório, ainda com a respiração meio ofegante e com o coração aos pulos.

 Estas coisas têm me acontecido quase que cotidianamente. E eu tenho tentado entender.  Sei que muitos me condenam, falam aquelas coisas de ensinar a pescar , mas eu argumento que na atual situação em que nos colocaram não há varas de pesca e nem redes disponíveis. Tenho certeza de que pescariam se houvesse oportunidade.
Lamento muito que isso aconteça em uma cidade em que o prefeito é um bispo, de uma igreja que se diz cristã.  É triste ver que cenas como estas aconteçam nas portas das igrejas, sem que os ditos fiéis consigam reconhecer seu Deus e senhor. 
Ando  preocupado por que as aparições de Jesus tem se multiplicado recentemente.  Antes eu O via esporadicamente, hoje,  há dias que O vejo mais de 20 vezes.
Certamente seria mais cômodo para mim adorá-lo nas espécies consagradas, ajoelhar-me diante da hóstia transubstanciada.  Ou ainda diante de uma bela imagem do coração divino de Jesus ou até diante  do crucifixo, incomodo e desafiador. Temo que a maioria de nós, tenha parado na sexta feira da paixão, e não tenha conseguido realizar em nós o mistério da ressurreição.  Não conseguimos perceber o Jesus manso e humilde que caminha no meio de nós. Mas ele está no meio de nós, e apesar da maioria de nós repetir isso mecanicamente, não realizamos  isso no dia a dia.
Ele está no meio de nós!
Ele é o mendigo, o ladrão, a prostituta, o pastor e o padre, a mãe e o pai de santo, o traficante, o miliciano, o policial, o prefeito o governador e o presidente da república, eu e você.
Por mais absurdo que isso seja, por mais que muitos  estejam me considerando um herege, essa é a pura realidade que não queremos encarar. O mundo seria outro e bem melhor se acordássemos para essa realidade, se manifestássemos esse Deus que se encarnou na humanidade. Esse é o mistério da salvação. Essa é a redenção almejada. Que todos sejam UM, “como eu e o pai somos um”

Me veio a ideia de que Natal poderia ser todo dia, se deixassemos Jesus nascer através de nós.  Se nos dispuséssemos a dar a luz, a ser como a silenciosa Maria, ouviríamos os anjos anunciando que Jesus, veio promover a Paz na terra, entre os que têm a boa vontade de promover o seu nascimento.

3 comentários:

  1. Me fez chorar...
    Como tem sido constante, constrangedor e difícil encontrar Jesus todos os dias .
    Ótimo texto e reflexão

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  2. Muito lindo, comovente e cruel o texto.
    Nos resgata da ilusão da vida boa e feliz, convivendo com a dor e sofrimentos de tantos ao nosso lado.
    Conviver não é compartilhar.
    Gostei muito.

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  3. Sensacional! Homilia de Prima. Teologia da Libertação na veia...Tanto o Papa Francisco como este que escreve assinam embaixo... Zezito de Oliveira

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