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Padre ortodoxo e pessoa de intensa vida espiritual, Jean-Yves Leloup diz em entrevista exclusiva que o ser humano pode ser um pacificador num mundo em guerra, mas precisa, primeiro, investir na busca da paz interior e na entrega e confiança em Deus.
Todas as vezes que vem a Brasília, o padre ortodoxo francês
Jean-Yves Leloup hospeda-se na casa de seu velho amigo, o psicólogo e reitor da
Universidade da Paz (Unipaz), Pierre Weil. Anualmente, Leloup vem à capital
para proferir seminários organizados pela Unipaz.
Trajando vestes claras, este homem de 57 anos de idade e 35 anos
de sacerdócio, com formação em Psicologia Transpessoal, Filosofia e Teologia,
tem, como sua referência de vida, o Ser, que encontra-se presente no interior
de cada homem que busca a paz e o sentido da vida. Ora, o Ser é, nada mais nada
menos, que uma das várias alcunhas pelas quais ele denomina Deus. Leloup
refere-se à Suprema Divindade de diversas formas, com reverência surpreendente:
Clara Luz, Pura Consciência, Consciência Absoluta, Ser Essencial, Absoluto.
Autor de 43 livros, entre eles Terapeutas do Deserto, A
Arte de Cuidar e a
autobiografia O Absurdo e a Graça, Leloup
também traduziu e comentou os evangelhos de Felipe, de Tomé e de Maria
Madalena, considerados apócrifos na tradição cristã. Sua fé em Jesus Cristo não
o impede de ter um profundo respeito por outras crenças, numa postura
claramente ecumênica. Ele é pertencente a uma corrente espiritual da ortodoxia
cristã, chamada hesicasmo, que, em grego, significa: calma, paz, tranqüilidade
e ausência de preocupação. O sacerdote hesicasta procura devotar sua vida ao
recolhimento interior e à oração.
Nesta entrevista ao Comunidade VIP, Jean-Yves Leloup revela como
descobriu a espiritualidade em sua vida e mostra que a busca pelo
aperfeiçoamento interior é a chave para pacificar as “guerras” que cada um
trava em seu cotidiano.
Como descobriu a espiritualidade?
Nasci numa família de ateus. Tive formação muito racionalista.
Saí da casa de meus pais para conhecer o mundo. Com apenas 19 anos, fiquei
muito doente em Istambul (Turquia), em decorrência de uma comida estragada. E
ali, naquela cidade, vivi uma experiência impressionante. Fui declarado
clinicamente morto e até quiseram me enterrar. Quando voltei ao meu corpo,
comecei a me interrogar: “O que não morre, quando todo o resto morre?”. Há o
momento em que o pássaro sai da gaiola, e também há o momento em que o vôo sai
do pássaro. Nesse momento em que o vôo sai do pássaro, tem um instante de luz e
de presença que permanece. Em Istambul, encontrei o patriarca Atenágoras, da
Igreja Ortodoxa, que me levou até um ícone do Cristo. Ao lado desse ícone
estava uma inscrição em grego, que dizia “Eu Sou”. Naquele momento, o “Eu Sou”
não eram meras palavras, mas o que eu tinha acabado de viver, durante a morte
clínica. E foi a partir desse momento que me interessei pelo Cristianismo.
Nas chamadas “experiências de quase morte”, há relatos de
pessoas que vêem um túnel de luz ou imagens referentes a sua crença. O que o
senhor viu, naquela hora?
Vi apenas a vastidão, pois meu inconsciente não guardava nenhuma
imagem religiosa. Foi até normal não ter visto nada. Senti apenas o espaço que
contém todas as coisas. É como se estivesse vendo o dia, ao invés das coisas
que aparecem no dia. E o dia permanece. Em latim, a palavra “dia” quer dizer
dies, que, por sua vez, significa Deus. Essas palavras têm a mesma raiz, no
latim. Então, ver o dia é ver Deus.
Após o encontro com Atenágoras, o que ocorreu?
Fui para o Monte Athos, na Grécia. Lá, encontrei a tradição
cristã-ortodoxa, as raízes do Cristianismo. Para mim, ele é a síntese entre o
interior e o exterior, entre os lados material e espiritual. São duas coisas
que não podem ser separadas. É a síntese da encarnação. O visível e o invisível
devem ser mantidos unidos; a eternidade e o tempo; o finito e o infinito.
Precisamos sair da dualidade.
Como surgiu a vocação para ser padre?
Quando descobri Cristo, ao invés de ser apenas um professor de
Psicologia e Filosofia preferi ser também padre, onde pude transmitir também
essa dimensão espiritual. Não apenas de ensinamentos intelectuais, mas também
através da prática, de forma a levar a transformação interior ao ser humano.
Como descobriu a Unipaz e conheceu Pierre Weil?
Na França eu era diretor de um centro internacional chamado
Sainte Baume. Convidei Pierre a visitar o local e a participar de colóquios
sobre Psicologia Transpessoal. Foi em Sainte Baume que concretizamos a visão da
Universidade Holística Internacional, cujo princípio é o de uma educação que
leve em conta todos os componentes do ser humano: físico, afetivo, emocional,
religioso e intelectual.
O que recomenda para desenvolvermos a paz interior e sermos
também pacificadores?
A primeira coisa é descobrir a paz interior. É importante, nesse
aspecto, cultivar práticas que acalmem a nossa mente, pois é aí que residem
todas as espécies de medos e resistências. Na prática hesicasta do cristianismo
ortodoxo damos muita atenção à respiração, pois, quando ela está calma, a mente
encontra-se calma também. Nessas condições, podemos encontrar esse lugar de paz
dentro de nós mesmos. Mas tudo isso ainda são práticas externas. Talvez o mais
importante seja o abandono, não tentar controlar nada. Devemos confiar no Ser
Essencial que nos ajuda. E é nessa confiança, nessa fé, que descobrimos um
centro que nos ajuda a atravessar as dificuldades da existência. Uma vida que
não tem sentido é uma vida sem centro. Podemos fazer as mesmas coisas estando
centrados ou não. E aí a gente consegue observar as diferenças.
A prática hesicasta é semelhante à meditação oriental?
Sim. É o mesmo princípio, porque o ser humano é igual, não
importa onde esteja. A respiração não pertence a nenhuma religião em
particular. E a luz também. A abertura do coração também pertence a todos. O
ser humano está em busca da verdade, não importa se ele está no Oriente ou
Ocidente. Ele está orientado em direção a esta mesma realidade. No evangelho de
São João está escrito que o Verbo, o Logos, é aquele que esclarece e ilumina todo
homem que vem a esse mundo, não apenas os cristãos.
Ultimamente, surgiu uma onda de livros em defesa do ateísmo,
vindos de autores como o biólogo inglês Richard Dawkins e o jornalista inglês
Christopher Hitchens. O que acha desse movimento?
Depende de qual imagem de Deus estamos rejeitando. Em nível
psicológico, muitos ateus estão rejeitando aquilo que eles viveram no passado.
Mas o Deus que eles estão rejeitando muitas vezes não tem nada a ver com o Deus
verdadeiro. É, simplesmente, uma certa imagem ou representação divina que eles
estão rejeitando. A questão é o que fazer com a religião, Deus e a razão. Com a
mesma flor a abelha pode fazer o seu mel e a vespa pode fazer o seu veneno. E a
culpa não é da flor.
O livro O Segredo, de Rhonda Byrne é um sucesso de vendas, ao
relatar como funciona a chamada Lei da Atração. Como o senhor conceitua esse
fenômeno?
O poder mental é algo conhecido há muito tempo e depende
basicamente do que pensamos. Um antigo provérbio diz que, quando Deus quer
punir alguém, Ele cumpre todos os seus desejos. Na realidade, não sabemos o que
é verdadeiramente bom para a nossa vida. No filme O Segredo, um menino consegue
a bicicleta vermelha que ele tanto desejava. Mas depois não é dito que ele pode
ter tido um acidente com aquela mesma bicicleta. Da mesma forma, alguém que
obtém uma casa imensa, enorme, pode ser, à primeira vista, maravilhoso. Mas
depois, o que ocorre naquela casa pode ser algo muito destrutivo. Essa prática
é muito superficial, porque, na verdade, a questão é saber o que é realmente
bom para o ser humano.
Então, como devemos pedir o que queremos?
Temos nossos próprios pensamentos e desejos, mas devemos
colocá-los nas mãos de uma Vontade maior. O Pai-Nosso diz: “Que seja feita a
Vossa Vontade”. Eu quero isso, mas será que realmente será bom para mim? Que
seja feita a vontade da Vida. Que seja feita a vontade do Amor. Que muitas
vezes nossos desejos são egoístas e esta é uma maneira de colocarmos nosso ser
dentro de um Ser Maior. Eu tenho o poder do pensamento, mas devemos também
confiar numa força maior, mais elevada.
Ou seja, é uma entrega a Deus?
É um abandono, uma entrega, uma confiança em Deus.
Os anjos são referências constantes nos textos bíblicos,
inclusive no episódio da vinda de Jesus. Qual o papel desses seres na nossa
vida?
Da mesma forma que entre o ser humano e a matéria existem mundos
intermediários, o vegetal e o animal, entre o ser humano e a Clara Luz, a Pura
Consciência, também existem níveis de consciência intermediários. Os anjos são
esses planos de consciência, esses níveis de ser que podem fazer esse elo entre
a consciência ordinária e a Consciência Absoluta. Muitas vezes somos mais
inteligentes do que a inteligência que temos, como se nossa consciência
entrasse em contato com uma de âmbito mais elevado. E é isso que chamamos de
anjos. Num nível mais humano, o anjo também pode ser um mestre interior, uma
voz que nos guia. Ou seja, é nossa inteligência que está aberta a uma dimensão
mais ampla.
Existem anjos da guarda, na sua concepção?
Cada ser humano tem uma maneira particular de entrar em relação
com o Absoluto. E é essa maneira particular que chamamos de nosso anjo. Isso
tem relação com o Absoluto, o Infinito Real. Quando a gente está nessa
abertura, inteligência e fé, certas manifestações nos mostram que estamos
acompanhados, guiados. A gente pode chamar a isso de anjo da guarda. Em outras
tradições, recebem outros nomes. O importante não é o nome que damos, mas a
realidade que está por trás das experiências que vivemos. A tradição cristã diz
para não idolatrarmos esses mundos intermediários. E hoje em dia muitas pessoas
tomam experiências do tipo psicológicas por experiências espirituais, e
experiências do mundo intermediário como experiências do mundo absoluto. A
gente deve colocar cada coisa em seu lugar.
É difícil diferenciar uma coisa da outra – o intermediário e o
absoluto?
Não, não é difícil. Aquilo que faz parte do mundo intermediário
faz parte do mundo terreno. São coisas que passam. São coisas emotivas,
intelectuais, mas fazem parte do mundo mortal. O mundo do Absoluto está além do
tempo. É aquilo que não conseguimos agarrar ou compreender, que a gente não
consegue reduzir a nossas pequenas experiências.
As religiões cristãs em geral são caracterizadas como
dogmáticas. Como funciona essa questão para você?
Na origem, o dogma era um paradoxo. Era algo feito para
despertar a consciência para além do funcionamento binário do cérebro. Por
exemplo, o dogma que diz que Cristo é verdadeiramente homem e verdadeiramente
Deus tem o sentido de ultrapassar, ir além da consciência ordinária. O dogma
então é um pouco como o Koan, do japonês. Ou seja, um paradoxo que nos ajuda a
ir além da razão, mas sem perder a razão. Mas hoje em dia o dogma é confundido
com dogmatismo, que significa obrigar alguém a acreditar em algo. Isso é
destrutivo. O dogma, na realidade, foi criado para que saíssemos do dogmatismo.
É um convite para que verifiquemos se isto é verdade.
Poderia deixar uma mensagem de Natal?
Pouco
importa se Cristo nasceu há 2 mil anos, se Ele não nascer hoje, no interior de
mim mesmo. O Natal é o momento onde podemos aceitar o nascimento do Ser no
interior de nós mesmos, para o nosso bem-estar e o bem-estar de todos.
Devemos lembrar que somos poeira e ao pó
retornaremos. A meditação diária sobre essas realidades tem sido sustentada
pelos Padres do Deserto como essencial para a vida espiritual e como um meio de evitar o pecado; mas
sobretudo como forma de atender às palavras de nosso Senhor, que nos adverte
que não conhecemos nem o dia nem a hora. Aqui está a reflexão de
um homem bem formado na sabedoria e tradição dos Santos Padres:
"Nunca
devemos nos privar da contemplação da morte ou
destas meditações... Todas estas contemplações criam vigilância na
alma e purificam a mente... Essa contemplação é uma barreira para os maus
pensamentos... Quando essa contemplação espiritual está dentro de nós, fechamos
as portas aos maus pensamentos... Não deveriamos nunca parar de
nos Lembrar da Morte. Os Santos Padres disseram que eles não foram
dominados pela negligência em suas celas, porque traziam a Lembrança
da Morte diante de Si, noite e dia. Os Padres continuamente pensavam: "Se hoje ou amanhã for o
meu último dia, o que devo fazer?". Desta forma, essa
Lembrança mantinha a mente no temor de Deus, e o temor de Deus iluminava sua
consciência. O que virá com mais certeza do que a morte? É a coisa mais certa
que cada pessoa encontrará... Devemos manter a Lembrança da Morte viva dentro
de nós constantemente, para que, por meio desta lembrança salvífica, possamos
evitar a morte da alma... Comprometa-se violentamente, diz o Senhor no
evangelho, pois você não sabe quando o Noivo da vossa alma vos visitará, e ai
daquele que Ele achar indolente e negligente da sua salvação: A verdade de Deus
soa como uma trombeta de poder e diz: "Vaidade das vaidades, tudo é
vaidade!" Pois,
que aproveita o homem se ganha o mundo inteiro e perde a sua própria alma, ou o
que dará o homem em troca da sua alma? Lembre-se do seu fim e não pecará pelos
séculos. "As riquezas não permanecem, a glória não acompanha
ninguém ao outro mundo, porque quando a morte vem, todas estas coisas são
obliteradas." Eis a verdade, que esmaga a mentira... Quando
visitarmos nossa morada final, nossa sepultura, veremos com nossos próprios
olhos toda a vaidade do homem, como fez Abba Sisoes quando viu o túmulo de
Alexandre, o Grande, e clamou: "Ai, ai, ó morte! O mundo inteiro não era
grande o suficiente para ti, Alexandre." Como então te encaixaste em
dois metros de terra agora? "Minha
criança, tenha cuidado com este mundo que é como um teatro. Pessoas ignóbeis no
palco do teatro usam roupas de reis, magnatas, etc. e parecem ser diferentes do
que realmente são e enganam o público. Mas quando o show acaba e eles
tiram suas máscaras, então suas verdadeiras faces são reveladas". (Élder Efraim - Conselhos da
Montanha Sagrada)
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