O absurdo e a Graça

Na vida hoje caminhamos entre uma fome que condena ao sofrimento uma enorme parcela da humanidade e uma tecnologia moderníssima que garante um padrão de conforto e bem estar nunca antes imaginado. Um bilhão de seres humanos estão abaixo da linha da pobreza, na mais absoluta miséria, passam FOME ! Com a tecnologia que foi inventada seria possível produzir alimentos e acabar com TODA a fome no mundo, não fossem os interesses de alguns grupos detentores da tecnologia e do poder. "Para mim, o absurdo e a graça não estão mais separados. Dizer que "tudo é absurdo" ou dizer que "tudo é graça " é igualmente mentir ou trapacear... "Hoje a graça e o absurdo caminham, em mim lado a lado, não mais estranhos, mas estranhamente amigos" A cada dia, nas situações que se nos apresentam podemos decidir entre perpetuar o absurdo, ou promover a Graça. (Jean Yves Leloup) * O Blog tem o mesmo nome do livro autobiográfico de Jean Yves Leloup, e é uma forma de homenagear a quem muito tem me ensinado em seus livros retiros, seminários e workshops *

30 de maio de 2024

Corpus Christi-como será que anda este corpo de Deus revelado em nós?

     De que forma devemos comemorar esse Corpus Christi ?


Um pouco de história:

A festa religiosa começou a ser celebrada há mais de sete séculos e meio, em 1246, na cidade belga de Liège, tendo sido alargada à Igreja universal pelo Papa Urbano IV através da bula "Transiturus", em 1264, dotando-a de missa e ofício próprios.

Até ao século XI, a linguagem sobre a presença real de Jesus Cristo na Eucaristia não tinha conotação fisicista, ou seja, não se cogitava a hipótese da transubstanciação.

Utilizava-se normalmente a designação de corpo real de Cristo para a Igreja e Corpo místico para a Eucaristia.                                                       
Não deixa de ser curioso notar que no século XI se opera uma mudança radical, ao ponto de se inverterem os termos.

Esta mudança foi desencadeada por um teólogo chamado Berengário.

Ao tratar dos sacramentos, Berengário diz que estes são símbolos. O pão e o vinho, portanto, são símbolos do corpo e sangue de Cristo. Berengário é acusado de herege e teve de se retratar, a fim de não ser queimado como acontecia a todos os que eram considerados hereges.Berengário acaba por assinar um documento que continha a síntese doutrinal, a qual é o começo da linguagem fisicista posterior.
Para a Bíblia, a Humanidade forma um todo orgânico cuja cabeça era Adão.
 Quando a cabeça não tem juízo o corpo é que paga. É este o sentido do pecado de Adão que atinge a Humanidade inteira. O pecado original, na visão bíblica, é uma mutilação ou uma distorção operada na Humanidade por Adão, sua cabeça. 
O Novo Testamento vê em Cristo o Novo Adão. Assim como pelo primeiro Adão  veio a morte, diz São Paulo, pelo segundo veio a vitória sobre a morte(Rm 5, 17-19).
 
Esta visão bíblica desaparece da linguagem teológica e é substituída pela linguagem das filosofias platonica e aristotélica. O documento assinado por Berengário é um texto elaborado em linguagem tipicamente aristotélica. 

Nos primórdios do século XIII, Inocêncio III diz que o pão e o vinho da Eucaristia são o verdadeiro corpo e sangue de Jesus Cristo. O acto da consagração é visto como um rito com efeitos automáticos que opera, pelas palavras de Cristo, a mudança da substância do pão e do vinho na substância do corpo e do sangue de Cristo. Como o corpo e a alma são inseparáveis da divindade de Cristo, a divindade de Cristo está também presente na Eucaristia. 

O Concílio de Latrão utiliza a terminologia “substância” e “espécies”. Espécie é aquilo que não subsiste por si e é variável. O corpo de Cristo permanece oculto sob as espécies do pão e do vinho [Denz. 430]. 

Segundo o aristotelismo, as espécies não podem subsistir sem a sua substância própria. Aqui, a substância muda e as espécies permanecem. 


Naturalmente que é fácil resolver este problema, dizendo que se trata de um milagre.

Urbano IV diz que a Eucaristia é a comemoração de Cristo. Nesta comemoração, o Senhor torna-Se presente com a Sua substância [Denz. 459]. Neste tipo de linguagem já não existe a noção de que a Eucaristia não é uma questão biologica mas sim espiritual. Por outras palavras, a Eucaristia que corporiza o Cristo histórico, mas o Cristo ressuscitado, como diz o evangelho de São João: “Isto escandaliza-vos? E se virdes o filho do Homem subir para onde estava antes? O Espírito é quem dá vida, a carne não serve para nada. Ora, as palavras que vos disse são Espírito e Vida” (Jo 6, 62-63). 
No século XV, o Concílio de Constança diz que sob o véu do pão e do vinho, está o próprio Jesus que sofreu na cruz e está sentado à direita do Pai [Denz. 666].

Por seu lado, o Concílio de Florença afirma que, em cada pedacinho da hóstia consagrada, bem como em cada gota do vinho, está Cristo inteiro [Denz. 698].


Não acredito que seja importante discutir a transubstanciação a esta altura da história. São mais de mil anos repetindo a fórmula e colocando na mente do povo essa verdadeira imagem arquetípica.
 

Mesmo que não houvesse transubstanciação, Jesus ama tanto o seu povo que Ele se faz presente nas espécies consagradas, mesmo que esta não tenha sido a sua ideia original. O seu amor é tanto que ele passou a estar presente em cada celebração, para não desapontar o seus fiéis e para ter mais essa oportunidade concreta de amá-los.


A leitura sacrificial da Eucaristia representa um retorno ao culto sacrificial do Antigo Testamento. Esta interpretação sacrificial da Eucaristia é fruto da sacerdotização do ministério.
Como sacerdotes, os ministros da Eucaristia estão dotados de um poder que os capacita para fazerem este sacrifício cultual.Como consequência desta leitura, a presença dos fiéis não é fundamental. Em rigor, o padre pode realizar este culto sacrificial sozinho.
No sacrifício da missa Jesus Cristo oferece-se todos os dias como vítima de propiciação a Deus, a fim de o aplacar e obter o perdão dos pecados, tanto para os vivos como para os mortos
Trata-se, portanto, de um sacrifício propiciatório, a fim de tornar Deus benévolo aos homens.
Esta linguagem do Concílio de Trento contraria a linguagem do Novo Testamento. 

A Carta aos Hebreus diz expressamente que os
crentes da Nova Aliança já não têm necessidade de oferecer sacrifícios pelos pecados(Heb,10-18)
Além disso, afirma que Cristo não entrou no santuário definitivo, isto é, no Céu, para se oferecer muitas vezes:“Cristo não entrou num santuário feito por mão do homem, o qual é apenas figura do verdadeiro. Ele entrou no próprio céu, para Se apresentar agora diante de Deus por nós.E não entrou para se oferecer muitas vezes a si mesmo, como o sumo-sacerdote entra, cada ano, no santuário com sangue alheio. Nesse caso, ser-lhe-ia necessário padecer muitas vezes desde o início do mundo” (Heb 9, 24-26).
São Paulo defende esta mesma perspectiva. Cristo ressuscitado já não morre mais, diz ele.Quanto ao morrer pelo pecado, ele morreu apenas uma vez. Agora,a Sua vida é uma vida com e para Deus (Rm 6, 9).
Temos de dizer que a perspectiva teológica da Eucaristia como sacrifício se desvia da visão do Novo Testamento.

A teologia tradicional fez da Eucaristia um sacrifício para justificar o ministério como sacerdócio.
No século XII Inocêncio III diz que o sacrifício da missa só pode ser oferecido pelo presbítero ordenado pelo bispo [Denz. 424].
Só o presbítero é sacerdote. Portanto, só ele pode oferecer o sacrifício do altar.Além disso, o Concílio de Trento diz que, na última ceia, Cristo instituiu o sacrifício da missa.Citando a Carta aos Hebreus, Trento diz que o sacerdócio levítico foi insuficiente. Por isso, Deus anunciou um outro sacerdócio segundo a ordem de Melquisedec (cf. Gen 14, 18; Sl 110, 4; Heb 7, 11).
Este sacerdote foi Cristo, diz o Concílio. No entanto, para que não se extinguisse com a sua morte, constituiu, na última ceia, os apóstolos como sacerdotes (Denz. 938).  

É curioso que:
 A 
argumentação do Concílio de Trento vai no sentido contrário ao da Carta aos Hebreus.
Esta diz que, enquanto esteve na terra, Cristo nem sequer tinha funções sacerdotais.
Já existiam os sacerdotes levitas que exerciam essas funções segundo a Lei (Heb 8, 4).
Cristo foi constituído sumo-sacerdote pela ressurreição (Heb 7, 
).
Ele não precisa de substitutos, pois está eternamente junto de Deus como único medianeiro entre Deus e os homens (1Tim 2,5)

Jesus Cristo, continua a Carta aos Hebreus, não pertencia à tribo sacerdotal, isto é, à tribo de Levi.Pelo contrário, ele pertencia à tribo de Judá.
Ora, como sabemos, os membros desta tribo não tinham funções cultuais (Heb 7, 13-14).Mas, pela sua ressurreição, Cristo foi constituído sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec e não segundo a ordem de Aarão (Heb 7, 11).Mudado o sacerdócio, devia mudar-se também a lei e as normas (Heb 7, 12).
Esta mudança consistiu em abolir os sacrifícios, os quais foram superados pela morte e ressurreição de Cristo (Heb 10, 5-10)
.

Deste modo, Cristo estabeleceu o novo culto que é fazer a vontade de Deus (Heb 10, 8-9).

Este novo culto não consiste em oferecer vítimas a Deus para o aplacar e obter o perdão do pecado, mas é um culto em Espírito e Verdade, diz o evangelho de São João (Jo 4, 22-23).
A primeira carta de São Pedro diz que a comunidade é o templo da Nova Aliança.

O  sacramento dos altares é também a vitima oferecida para aplacar um Deus, que Jesus apresentou como Pai amoroso. 

Mas um Deus Pai amoroso precisa ser aplacado?

Diante disto, como fica a festa do Corpo de Deus ?



Quando Deus criou o homem, Ele disse: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Gn: 1,26

 Então se o homem tem uma forma 
ela é uma réplica daquela que lhe serviu de modelo

O corpo de Deus !.

Quando nos referimos ao Corpo de Deus,
normalmente pensamos na Sagrada Eucaristia.

Mas será que o corpo do Deus vivo
está somente na Eucaristia sobre o altar? 
.
Lembro-me de uma música, cuja letra é bem oportuna:
.
"TU NÃO HABITAS EM TENDAS,
NEM EM TEMPLOS FEITOS POR MÃOS.
ETERNO, PERFEITO, PRINCÍPIO E FIM,
ACIMA DAS RELIGIÕES.
NÃO HÁ NADA NO CÉU,
NA TERRA OU NO MAR,
SEMELHANTE A TI, SENHOR.
TUA IMAGEM ESTÁ, REVELADA EM NÓS
EXPRESSÃO DO TEU AMOR
INCOMPARÁVEL,
SENHOR TU ÉS
MINH'ALMA ESTÁ APEGADA A TI,
SENHOR INCOMPARÁVEL ÉS. "
.


Sendo assim como será que anda
este corpo de Deus revelado em nós ?



Como podemos permitir que esta seja
a imagem e semelhança de nosso Deus?
.
.
 Se onde há amor e caridade, Deus aí está,
porque que andamos espantando Deus ?
.
.
"Em verdade eu vos declaro:
todas as vezes que fizestes isto
a um destes meus irmãos mais pequeninos,
foi a mim mesmo que o fizestes"
Mt 25,40


Que mãos seriam dignas de tocar 
este corpo de Deus?


.


Mãos feridas e imundas  de um cortador de cana? 







Estarão limpas as nossas mãos ?


Pai nosso, dos pobres marginalizados
Pai nosso, dos mártires, dos torturados.


Teu nome é santificado
naqueles que morrem defendendo a vida,
Teu nome é glorificado,
quando a justiça é nossa medida
Teu reino é de liberdade,
de fraternidade, paz e comunhão
Maldita toda a violência
que devora a vida pela repressão.
Queremos fazer Tua vontade,
és o verdadeiro Deus libertador,
Não vamos seguir as doutrinas
corrompidas pelo poder opressor.
Pedimos-Te o pão da vida,
o pão da segurança,
o pão das multidões.
O pão que traz humanidade,
que constrói o homem em vez de canhões
Perdoa-nos quando por medo
ficamos calados diante da morte,
Perdoa e destrói os reinos
em que a corrupção é mais forte.
Protege-nos da crueldade,
do esquadrão da morte,
dos prevalecidos
Pai nosso revolucionário,
parceiro dos pobres,
Deus dos oprimidos
Pai nosso, revolucionário,
parceiro dos pobres,
Deus dos oprimidos.

Pai nosso,
dos pobres marginalizados
Pai nosso,
dos mártires, dos torturados.


   De que forma devemos então 
comemorar esse   Corpus Christi  ?


Corpus Christi - Ir. Marcelo Barros


Creio que tal celebração deveria ser revertida num momento para se repensar com toda seriedade possível o mistério da Eucaristia. Deveríamos sair das pompas, ostentações e luxo e nos voltarmos para o silêncio contemplativo e reflexivo.

O primeiro momento deste processo reflexivo deveria ser um repensar a própria solenidade de Corpus Christi. Sabemos que esta festa surgiu no auge de uma violenta crise pela qual passava a Igreja Católica. A liturgia havia se sofisticado e se distanciado do povo. Era celebrada em latim, língua não mais falada pelas comunidades. Além de serem celebradas numa língua incompreensível, as liturgias eram pomposas, luxuosas, uma verdadeira afronta aos pobres. Tinham se tornado uma coisa para o clero, pois o povo fora reduzido a mudo espectador. Neste contexto corria solta a simonia: a celebração dos sacramentos, especialmente da Eucaristia, dependia de muito dinheiro. Assim, por exemplo, o preço da missa dependia do modo como o padre erguia a hóstia consagrada durante a anamnesis,  chamada de "consagração”, e considerada o momento mais importante da missa. Quanto mais alta a elevação, mais cara era a missa.
Por essa e outras razões a liturgia ficou reduzida a mero devocionalismo.  As pessoas não mais participavam da Eucaristia e a tinham apenas como simples devoção. Iam às igrejas para adorar o Santíssimo Sacramento e não para participar da Ceia do Senhor. A situação ficou tão grave que a própria hierarquia determinou que se comungasse pelo menos uma vez por ano, durante o período da Páscoa. Foi neste contexto que o papa Urbano IV, em 1264, fixou a solenidade de Corpus Christi: uma festa para adorar pública e pomposamente a hóstia consagrada. Portanto, a festa de Corpus Christi, como veremos a seguir, é um desvirtuamento radical do significado litúrgico do mistério do Corpo e do Sangue do Senhor. Ou, se preferirmos, uma traição do pedido do Mestre: "Tomai e comei, tomai e bebei”.
Considero a festa de Corpus Christi, na forma como ainda é celebrada atualmente, um desvirtuamento litúrgico e uma traição do mandato de Cristo por várias razões. Antes de tudo porque Jesus não deixou dito que ele queria ser adorado pomposamente num ostensório luxuoso nas igrejas e pelas vias públicas de uma cidade. Colocar a Eucaristia, sacramento do simples e pobre pedaço de pão, num ostensório de ouro é, recordando São João Crisóstomo, ofender aquele que não tinha onde reclinar a cabeça.
Em segundo lugar porque o cerne da Eucaristia está não na adoração, mas na refeição, na comida, na ceia. Ou, se quisermos, o modo correto de adorar a Eucaristia é participar da ceia, é comer do pão e beber do cálice. De fato, Jesus não disse "tomem e adorem, mas tomem e comam, tomem e bebam”. A adoração eucarística surgiu por meio do costume de se levar um pedaço do pão eucarístico para os doentes impedidos de participar da celebração litúrgica dominical. E como se acreditava que aquele pedaço de pão era o sacramento do Corpo e Sangue de Cristo, enquanto ele não era levado e consumido pelo doente, era adorado como sacramento da real presença de Cristo no meio da comunidade cristã.
O hábito de consagrar hóstias apenas para trancá-las num "cofre dourado” e ser adorado pelas pessoas é um costume que nasce no contexto de crise antes mencionado, quando se havia perdido por completo a noção do mistério eucarístico. Portanto, é algo que destoa do significado da Eucaristia para a comunidade cristã. As normas para o culto à Eucaristia fora da missa, emanadas pelo próprio Vaticano, são muito claras a este respeito. Chegam inclusive a dizer que se deve evitar neste culto tudo aquilo que possa tirar da Eucaristia a sua natureza de alimento, de comida, de refeição. Por rigor de lógica as espécies eucarísticas, quando colocadas para a veneração dos fiéis, deveriam ser postas em pratos de comida e não em ostensórios luxuosos. Porém, as próprias autoridades eclesiásticas são as primeiras a não obedecer aquilo que escrevem para os outros.
Em consonância com o que acabou de ser dito, a festa de Corpus Christi deveria ser uma oportunidade para uma profunda catequese sobre o que é, de fato, a Eucaristia. Infelizmente a crise antes mencionada levou a se pensar na Eucaristia como o sacramento da "carne” do homem histórico Jesus de Nazaré. Assim a concepção comum presente na mente de bispos, padres e fiéis é que os termos "carne”, "corpo”, "sangue” se refiram exclusivamente ao corpo biológico de Jesus. A Eucaristia seria a transformação de algumas hóstias e de um pouco de vinho num amontoado de células e moléculas do corpo físico do Jesus histórico que viveu na Palestina há dois mil anos.
Porém, quando nos voltamos para os textos bíblicos não é essa a compreensão que temos. O termo "corpo” (em hebraico "basar” e em grego "soma”) não significa apenas o aspecto biológico, mas a pessoa inteira na sua condição de corporalidade. Trata-se da pessoa na sua totalidade revelada em sua forma visível e em comunicação com os outros. Jesus, segundo Marcos (14,22-24), o mais antigo dos evangelhos, ao dizer na última ceia "éstin tò somá mon” ("isto é o meu corpo”) e "éstin tò haîmá mon” ("isto é o meu sangue”), não está se referindo apenas ao seu corpo biológico, às células do seu corpo físico, mas à totalidade da sua pessoa de Filho de Deus encarnado. E quando convida os discípulos a comerem do seu "corpo” e a beberem do seu "sangue” Jesus não está pensando num ritual antropofágico ou canibal, mas num gesto de comunhão e de adesão plena à sua pessoa.
O biblista italiano Settimio Cipriani, que estudou profundamente esta questão, afirma que as palavras de Jesus poderiam ser traduzidas da seguinte maneira: "O que estou fazendo (partindo o pão e distribuindo-o) significa a oferta da minha pessoa por vocês”. De fato, nas culturas antigas, especialmente na cultura judaica, o ato de comer e de comer juntos não tem apenas o significado biológico de ingerir substâncias para saciar a fome e manter-se vivo. Comer e comer juntos tem um significado simbólico, sacramental: significa que os comensais participam da mesma sorte, estão unidos pelo mesmo destino, estão em comunhão entre si. Assim sendo, a participação na Eucaristia, na Ceia do Senhor, é um gesto sacramental através do qual o cristão e a cristã manifestam a sua adesão total à pessoa de Jesus e se dispõem a participar da mesma sorte do Mestre. Portanto, reduzir a Eucaristia a um significado meramente biológico, a um pedaço da carne biológica de Cristo (como se tem feito em alguns casos de supostos milagres eucarísticos) é desvirtuá-la completamente do seu verdadeiro significado sacramental.
Isso pode ser confirmado pelo texto eucarístico do Evangelho de João (6,51-56). Mesmo não narrando a instituição da Eucaristia, João apresenta Jesus convidando seus ouvintes a comerem a sua carne e a beberem o seu sangue. Sabemos que na Bíblia o termo "carne” (em hebraico "basar” e em grego "sárx”) não significa apenas o elemento físico, biológico, mas a pessoa humana, na sua totalidade, existindo como ser frágil e mortal. É o ser humano total na sua condição de caducidade. Por sua vez o "sangue” (em hebraico "dam” e em grego "haîma”) não significa apenas o líquido vermelho que escorre nas veias do ser humano, mas a sua vida, o seu existir pleno. O convite de Jesus feito a seus ouvintes significa um convite a entrar em plena sintonia com a sua pessoa e o seu projeto de vida. Participar da Eucaristia é aderir ao mistério do Filho de Deus que "se fez carne” (Jo 1,14), ou seja, que abriu mão da sua condição divina para viver entre nós como "simples homem” (Fl 2,7-8). Participar da Eucaristia não é participar de um rito antropofágico, no qual se come um pedaço da carne biológica do Jesus histórico, mas comungar da sua fragilidade, da sua fraqueza, da sua encarnação. Se entendêssemos isso causaríamos uma verdadeira revolução no cristianismo e contribuiríamos para o advento de uma nova humanidade.

Por fim, a festa de Corpus Christi deveria ser um momento para se pensar numa solução definitiva para o problema daquelas milhares de comunidades cristãs espalhadas pelo mundo e que são privadas da celebração eucarística dominical, por falta de um ministro ordenado que a presida. Se a Eucaristia é o centro e o cerne da vida cristã, deixar uma comunidade sem celebração eucarística dominical é impedi-la de viver a sua verdadeira identidade. Soluções já existem como já tive oportunidade de mostrar, mas a hierarquia resiste e não quer adotá-las. Se a hierarquia não resolve, cabe às comunidades cristãs abandonadas encontrarem uma solução. E Tertuliano, um escritor cristão do final do II e início do III século, propôs uma solução muito simples. Mesmo reconhecendo que em circunstância normais cabe ao bispo e seu conselho presbiteral presidir a Eucaristia, Tertuliano afirmava: "Onde não há um colégio de ministros inseridos, tu, leigo, deves celebrar a Eucaristia e batizar; tu és, então, o teu próprio sacerdote, pois, onde dois ou três estão reunidos, aí está a Igreja, mesmo que os três sejam leigos”.

Marcelo Barros é autor de Antropologia da formação inicial do presbítero, pela Editora Loyola além de muitas outras obras.
fonte:  marclobarros.com