De que forma devemos comemorar esse Corpus Christi ?
Um pouco de história:
A festa religiosa começou a ser celebrada há mais de sete séculos e meio, em 1246, na cidade belga de Liège, tendo sido alargada à Igreja universal pelo Papa Urbano IV através da bula "Transiturus", em 1264, dotando-a de missa e ofício próprios.
Até ao século XI, a linguagem sobre a presença real de Jesus Cristo na Eucaristia não tinha conotação fisicista, ou seja, não se cogitava a hipótese da transubstanciação.
Utilizava-se normalmente a designação de corpo real de Cristo para a Igreja e Corpo místico para a Eucaristia.
Não deixa de ser curioso notar que no século XI se opera uma mudança radical, ao ponto de se inverterem os termos.
Esta mudança foi desencadeada por um teólogo chamado Berengário.
Ao tratar dos sacramentos, Berengário diz que estes são símbolos. O pão e o vinho, portanto, são símbolos do corpo e sangue de Cristo. Berengário é acusado de herege e teve de se retratar, a fim de não ser queimado como acontecia a todos os que eram considerados hereges.Berengário acaba por assinar um documento que continha a síntese doutrinal, a qual é o começo da linguagem fisicista posterior.
Para a Bíblia, a Humanidade forma um todo orgânico cuja cabeça era Adão. Quando a cabeça não tem juízo o corpo é que paga. É este o sentido do pecado de Adão que atinge a Humanidade inteira. O pecado original, na visão bíblica, é uma mutilação ou uma distorção operada na Humanidade por Adão, sua cabeça.
O Novo Testamento vê em Cristo o Novo Adão. Assim como pelo primeiro Adão veio a morte, diz São Paulo, pelo segundo veio a vitória sobre a morte(Rm 5, 17-19).
Esta visão bíblica desaparece da linguagem teológica e é substituída pela linguagem das filosofias platonica e aristotélica. O documento assinado por Berengário é um texto elaborado em linguagem tipicamente aristotélica.
Nos primórdios do século XIII, Inocêncio III diz que o pão e o vinho da Eucaristia são o verdadeiro corpo e sangue de Jesus Cristo. O acto da consagração é visto como um rito com efeitos automáticos que opera, pelas palavras de Cristo, a mudança da substância do pão e do vinho na substância do corpo e do sangue de Cristo. Como o corpo e a alma são inseparáveis da divindade de Cristo, a divindade de Cristo está também presente na Eucaristia.
O Concílio de Latrão utiliza a terminologia “substância” e “espécies”. Espécie é aquilo que não subsiste por si e é variável. O corpo de Cristo permanece oculto sob as espécies do pão e do vinho [Denz. 430].
Segundo o aristotelismo, as espécies não podem subsistir sem a sua substância própria. Aqui, a substância muda e as espécies permanecem.
Naturalmente que é fácil resolver este problema, dizendo que se trata de um milagre.
Urbano IV diz que a Eucaristia é a comemoração de Cristo. Nesta comemoração, o Senhor torna-Se presente com a Sua substância [Denz. 459]. Neste tipo de linguagem já não existe a noção de que a Eucaristia não é uma questão biologica mas sim espiritual. Por outras palavras, a Eucaristia que corporiza o Cristo histórico, mas o Cristo ressuscitado, como diz o evangelho de São João: “Isto escandaliza-vos? E se virdes o filho do Homem subir para onde estava antes? O Espírito é quem dá vida, a carne não serve para nada. Ora, as palavras que vos disse são Espírito e Vida” (Jo 6, 62-63).
No século XV, o Concílio de Constança diz que sob o véu do pão e do vinho, está o próprio Jesus que sofreu na cruz e está sentado à direita do Pai [Denz. 666].
Por seu lado, o Concílio de Florença afirma que, em cada pedacinho da hóstia consagrada, bem como em cada gota do vinho, está Cristo inteiro [Denz. 698].
Não acredito que seja importante discutir a transubstanciação a esta altura da história. São mais de mil anos repetindo a fórmula e colocando na mente do povo essa verdadeira imagem arquetípica.
Mesmo que não houvesse transubstanciação, Jesus ama tanto o seu povo que Ele se faz presente nas espécies consagradas, mesmo que esta não tenha sido a sua ideia original. O seu amor é tanto que ele passou a estar presente em cada celebração, para não desapontar o seus fiéis e para ter mais essa oportunidade concreta de amá-los.
A leitura sacrificial da Eucaristia representa um retorno ao culto sacrificial do Antigo Testamento. Esta interpretação sacrificial da Eucaristia é fruto da sacerdotização do ministério.
Como sacerdotes, os ministros da Eucaristia estão dotados de um poder que os capacita para fazerem este sacrifício cultual.Como consequência desta leitura, a presença dos fiéis não é fundamental. Em rigor, o padre pode realizar este culto sacrificial sozinho.
No sacrifício da missa Jesus Cristo oferece-se todos os dias como vítima de propiciação a Deus, a fim de o aplacar e obter o perdão dos pecados, tanto para os vivos como para os mortos.
Trata-se, portanto, de um sacrifício propiciatório, a fim de tornar Deus benévolo aos homens.
Esta linguagem do Concílio de Trento contraria a linguagem do Novo Testamento.
A Carta aos Hebreus diz expressamente que os
crentes da Nova Aliança já não têm necessidade de oferecer sacrifícios pelos pecados(Heb,10-18)
Além disso, afirma que Cristo não entrou no santuário definitivo, isto é, no Céu, para se oferecer muitas vezes:“Cristo não entrou num santuário feito por mão do homem, o qual é apenas figura do verdadeiro. Ele entrou no próprio céu, para Se apresentar agora diante de Deus por nós.E não entrou para se oferecer muitas vezes a si mesmo, como o sumo-sacerdote entra, cada ano, no santuário com sangue alheio. Nesse caso, ser-lhe-ia necessário padecer muitas vezes desde o início do mundo” (Heb 9, 24-26).
São Paulo defende esta mesma perspectiva. Cristo ressuscitado já não morre mais, diz ele.Quanto ao morrer pelo pecado, ele morreu apenas uma vez. Agora,a Sua vida é uma vida com e para Deus (Rm 6, 9).
Temos de dizer que a perspectiva teológica da Eucaristia como sacrifício se desvia da visão do Novo Testamento.
A teologia tradicional fez da Eucaristia um sacrifício para justificar o ministério como sacerdócio.No século XII Inocêncio III diz que o sacrifício da missa só pode ser oferecido pelo presbítero ordenado pelo bispo [Denz. 424].
Só o presbítero é sacerdote. Portanto, só ele pode oferecer o sacrifício do altar.Além disso, o Concílio de Trento diz que, na última ceia, Cristo instituiu o sacrifício da missa.Citando a Carta aos Hebreus, Trento diz que o sacerdócio levítico foi insuficiente. Por isso, Deus anunciou um outro sacerdócio segundo a ordem de Melquisedec (cf. Gen 14, 18; Sl 110, 4; Heb 7, 11).
Este sacerdote foi Cristo, diz o Concílio. No entanto, para que não se extinguisse com a sua morte, constituiu, na última ceia, os apóstolos como sacerdotes (Denz. 938).
É curioso que:
A argumentação do Concílio de Trento vai no sentido contrário ao da Carta aos Hebreus.
Esta diz que, enquanto esteve na terra, Cristo nem sequer tinha funções sacerdotais.
Já existiam os sacerdotes levitas que exerciam essas funções segundo a Lei (Heb 8, 4).
Cristo foi constituído sumo-sacerdote pela ressurreição (Heb 7, ).
Ele não precisa de substitutos, pois está eternamente junto de Deus como único medianeiro entre Deus e os homens (1Tim 2,5)
Jesus Cristo, continua a Carta aos Hebreus, não pertencia à tribo sacerdotal, isto é, à tribo de Levi.Pelo contrário, ele pertencia à tribo de Judá.
Ora, como sabemos, os membros desta tribo não tinham funções cultuais (Heb 7, 13-14).Mas, pela sua ressurreição, Cristo foi constituído sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedec e não segundo a ordem de Aarão (Heb 7, 11).Mudado o sacerdócio, devia mudar-se também a lei e as normas (Heb 7, 12).
Esta mudança consistiu em abolir os sacrifícios, os quais foram superados pela morte e ressurreição de Cristo (Heb 10, 5-10).
Deste modo, Cristo estabeleceu o novo culto que é fazer a vontade de Deus (Heb 10, 8-9).
Este novo culto não consiste em oferecer vítimas a Deus para o aplacar e obter o perdão do pecado, mas é um culto em Espírito e Verdade, diz o evangelho de São João (Jo 4, 22-23).
A primeira carta de São Pedro diz que a comunidade é o templo da Nova Aliança.
O sacramento dos altares é também a vitima oferecida para aplacar um Deus, que Jesus apresentou como Pai amoroso.
Mas um Deus Pai amoroso precisa ser aplacado?
Diante disto, como fica a festa do Corpo de Deus ?
Quando Deus criou o homem, Ele disse: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Gn: 1,26
Então se o homem tem uma forma
ela é uma réplica daquela que lhe serviu de modelo
O corpo de Deus !.
Quando nos referimos ao Corpo de Deus,
normalmente pensamos na Sagrada Eucaristia.
Mas será que o corpo do Deus vivo
está somente na Eucaristia sobre o altar?
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Lembro-me de uma música, cuja letra é bem oportuna:
.
"TU NÃO HABITAS EM TENDAS,
NEM EM TEMPLOS FEITOS POR MÃOS.
ETERNO, PERFEITO, PRINCÍPIO E FIM,
ACIMA DAS RELIGIÕES.
NÃO HÁ NADA NO CÉU,
NA TERRA OU NO MAR,
SEMELHANTE A TI, SENHOR.
TUA IMAGEM ESTÁ, REVELADA EM NÓS
EXPRESSÃO DO TEU AMOR
INCOMPARÁVEL,
SENHOR TU ÉS
MINH'ALMA ESTÁ APEGADA A TI,
SENHOR INCOMPARÁVEL ÉS. "
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Sendo assim como será que anda
este corpo de Deus revelado em nós ?
Como podemos permitir que esta seja
a imagem e semelhança de nosso Deus?
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Se onde há amor e caridade, Deus aí está,
porque que andamos espantando Deus ?
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"Em verdade eu vos declaro:
todas as vezes que fizestes isto
a um destes meus irmãos mais pequeninos,
foi a mim mesmo que o fizestes"
Mt 25,40
Que mãos seriam dignas de tocar
este corpo de Deus?
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Mãos feridas e imundas de um cortador de cana?
Estarão limpas as nossas mãos ?
Pai nosso, dos pobres marginalizados
Pai nosso, dos mártires, dos torturados.
Teu nome é santificado
naqueles que morrem defendendo a vida,
Teu nome é glorificado,
quando a justiça é nossa medida
Teu reino é de liberdade,
de fraternidade, paz e comunhão
Maldita toda a violência
que devora a vida pela repressão.
Queremos fazer Tua vontade,
és o verdadeiro Deus libertador,
Não vamos seguir as doutrinas
corrompidas pelo poder opressor.
Pedimos-Te o pão da vida,
o pão da segurança,
o pão das multidões.
O pão que traz humanidade,
que constrói o homem em vez de canhões
Perdoa-nos quando por medo
ficamos calados diante da morte,
Perdoa e destrói os reinos
em que a corrupção é mais forte.
Protege-nos da crueldade,
do esquadrão da morte,
dos prevalecidos
Pai nosso revolucionário,
parceiro dos pobres,
Deus dos oprimidos
Pai nosso, revolucionário,
parceiro dos pobres,
Deus dos oprimidos.
Pai nosso,
dos pobres marginalizados
Pai nosso,
dos mártires, dos torturados.
De que forma devemos então
comemorar esse Corpus Christi ?